As Fraudes do Médium Mirabelli (Parte 16)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.

Correio Paulistano – Sábado, 17 de junho de 1916, página 2 

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério 

O sr. Carlos Mirabelli, a nosso ver, não passa de um hábil prestidigitador 

O “Correio Paulistano” iniciará amanhã a publicação da sua vasta e sensacional reportagem 

Temos chegado, enfim, ao término das experiências relativas à força mediúnica do intrujão mais audacioso de que temos notícia nestes últimos tempos. Carlos Mirabelli realizou ontem a quinta e última sessão das estabelecidas no repto lançado pelo “Correio Paulistano” e com a maior sem-cerimônia aceito pelo imperturbável ilusionista.  

A quinta prova, ou quinta provação, como disse acertadamente o dr. Reynaldo Porchat, realizou-se finalmente ontem, à avenida Água Branca, nº 17, residência do sr. José da Fonseca Osório, e a qual se achavam presentes os srs. drs. Reynaldo Porchat, dr. Bueno de Miranda, Horácio de Carvalho, Nestor Pestana, redator-secretário do Estado de S. Paulo”; dr. Euclides Gomes, pelo sr. Carlos de Castro; coronel Fortunato Goulart; Miele, pela “Gazeta”; Ângelo Silvio, pelo “Commercio de S. Paulo”; Manuel Leiroz, redator do “Estado de S. Paulo”; dr. Aufristo Gouvêa, João Figueiredo de Freitas, José Christino da Fonseca, dr. Arnaldo Porchat, Guedes de Magalhães, Aleyr Porchat, João Fonseca, Arthur Bittencourt, major Arthur Osório, Antônio Carlos da Fonseca, Plínio Reys e Aristéo Seixas, do “Correio Paulistano”.  

O trabalho de concentração foi iniciado às 20 horas, e só terminou às 22, com o mais completo fracasso, não para o sr. Mirabelli, cuja responsabilidade perante a nossa engrenagem social é assaz limitada; mas fracasso, sim, para os que, resignada e corajosamente, emprestaram nomes respeitáveis a esta tremenda farsa de trazer das misteriosas paragens de além-túmulo, por um fio de cabelo, “espíritos” que se punham na roda dos mortais a cometer banalidades de toda a sorte, e só banalidades, e só banalidades. 

Deve estar sendo um desaponto para estes cavalheiros, aliás ilustres, o resultado absolutamente negativo das experiências mirabéllicas, cinco vezes repetidas e cinco vezes totalmente goradas. 

As pessoas de responsabilidade que, mau grado a nossa cultura, andaram a emprestar forças misteriosas ao sr. Mirabelli, não faltou somente argúcia: faltou coisa mais apreciável em homens de ciência – faltou-lhes prudência.  

Se quando as platéias, pejadas de espectadores, batem palmas aos maiores ilusionistas, perguntarmos aos que se confundem no tumulto dos aplausos se perceberam o “truque”, a resposta será uma única, e será negativa, embora os assistentes sejam mil ou dez mil. E não importa que essa assistência se componha de médicos, engenheiros, químicos, físicos, geólogos, feiticeiros, ocultistas, o diabo. A ilusão é completa; e, todavia, ninguém pensa ao deixar da casa de diversão, em almas do outro mundo, em poder misterioso, em forças sobrenaturais. É que o mágico afirmou apenas a sua agilidade de homem cá da Terra, sem invocar desrespeitosamente as almas das “mamãs” e dos “papás”. 

Entretanto, só porque Mirabelli negasse a existência do truque, afirmando, de olhos esbugalhados e com suores frios, a presença de futilíssimos espíritos, tanta gente, das mais elevadas e cultas da sociedade paulista, se deixou para logo colher nas malhas de um petulantíssimo intrujão. 

Isto prova bem que a humanidade propende ainda, à míngua de um raciocínio seguro e independente, para tudo que engana dolorosamente, e dolorosamente mistifica. É preciso, portanto, que haja uma reação; e esta, em que muito nos orgulha, partiu do “Correio Paulistano”, que, sem outro intuito que não fosse o de castigar o embuste, saiu a campo e terçou armas contra a pungente credulidade de alguns dos nossos homens de mais reconhecida cultura espiritual. 

Como dessa nobre empresa nos saímos, di-lo a ata que mais adiante publicamos, ontem lavrada e assinada pelos que, evangelicamente tolerantes, nos auxiliaram em cinco tormentosas sessões a patentear ao público de S. Paulo o audacioso prestimano de Botucatu. 

Antes de finalizar esta notícia, cumpre assinalar que a direção deste jornal se houve, nesse caso, com a mais completa lealdade, já permitindo que o prestidigitador escolhesse o salão desta folhas para suas primeiras experiências, e acedendo aos desejos do júri em realizar a última das provas no local em que ontem teve fim a prolongada farsa mirabéllica. 

*          * 

Após a sessão referida, que, como as anteriores, foi absolutamente infrutífera, quanto à produção de qualquer fenômeno, lavrou-se, como dissemos, a seguinte 

ATA 

Aos dezesseis dias do mês de junho de mil novecentos de dezesseis, os abaixo assinados, constituídos em júri para apreciarem os fenômenos que se diz ter já produzido o sr. Carlos Mirabelli, compareceram à avenida Água Branca, nº 17, residência do sr. José de Fonseca Osório, onde se realizou a quinta e última sessão da série estipulada no repto lançado pelo “Correio Paulistano”, à qual teve início às oito horas da noite. A experiência prolongou-se até onze horas, não tendo sido produzido nenhum fenômeno, o que aliás foi igualmente verificado nas quatro sessões anteriormente realizadas no salão do “Correio Paulistano”, em dias diversos e por espaço de duas horas cada uma. Para todos os efeitos, lavrou-se a presente ata, S. Paulo, 16 de junho de 1916. 

Reynaldo Porchat

Nestor Rangel Pestana

Dr. Bueno de Miranda

Horacio de Carvalho

Euclydes Gomes, ratificando as atas anteriores.

Porinnato Goulart, com a mesma declaração.

Euclydes Gomes, pelo sr. Carlos de Castro, com a mesma declaração.

João Figueira de Freitas, de acordo com o dr. Euclydes Gomes.

Ângelo Silvio, pelo “Commercio de S. Paulo”

Antônio Carlos da Fonseca

Plínio Reys

Aristéo Seixas 

*          * 

Ainda, para testificar a nossa lealdade neste debatido caso damos a seguir uma [ilegível] comprida pelo sr. Carlos Mirabelli a Nuto Sant’Anna, nosso companheiro de trabalho, e cuja publicação reservamos para o dia em que as suas afirmativas, enganosas e ridículas pudessem, como agora, contrastar então mais completa [ilegível] imperturbável [ilegível]. 

Tendo notícia de um grande médium, dotado de uma força excepcional que se encontra nesta cidade, realizando sessões espíritas, verdadeiros prodígios que têm assombrado os mais incrédulos, procuramos aproximar-nos dessa estranha individualidade. Um dos nossos amigos, das relações do notável médium em questão, acedendo ao nosso pedido, prontificou-se, gentilmente, a apresentar-nos ao autor de tantas maravilhas. Conhecendo-o pessoalmente, com [ilegível], por várias vezes, longas palestras, tendo tido mesmo ensejo de assistir às suas sessões, pelo que podemos afirmar que são verdadeiramente dignas de estudo, admiráveis, extraordinárias. Antes de enumerar alguns dos fenômenos obtidos por esse médium, que está sendo objeto dos mais afamados comentários e, ao que nos consta, estudado por algumas competências na matéria transcendente das ciências ocultas, daremos algumas notas que aliás não deixam de ser interessantes, em se tratando dessa singularíssima personagem.  

Em princípio, tratando exclusivamente do  

HOMEM, 

Podemos dizer que se chama ele Carlos Mirabelli. Nasceu em Botucatu, neste Estado, no ano de 1883, sendo filho do sr. Luiz Mirabelli e d. Christina Scacciota Mirabelli, ambos de nacionalidade italiana. Conta, pois, 33 anos de idade. É um tipo insinuante, de altura mediana, magro, cabeleira e barbas negras, a sua fisionomia pálida tem alguma coisa de mística e evocativa, os seus olhos grandes de um azul claro brilhante, ao invés de despedirem brilhos como os de um alucinado, são calmos, profundos, de uma expressão pacífica, [ilegível] melancólica. 

Carlos Mirabelli estudou até a idade de 15 anos no grupo escolar da cidade natal. Mais tarde, freqüentou, durante cerca de seis meses, o Colégio Cristóvão Colombo, desta capital. Uma forte saudade de seus pais, que jamais pôde olvidar um único instante, levou-o a abandonar os estudos naquele estabelecimento. Regressou, por isso, com a alma transbordante das mais nobres alegrias, ao coração da família, onde reentrou a fruir venturosamente o amor e o carinho dos seus pais. Teria então 20 anos. Era preciso fazer pela subsistência. Assim refletindo, pensou em colocar-se, pensou em adquirir meios com que pudesse manter-se, auxiliando também aos seus progenitores. 

Animado por esses ideais, fez-se viajante tratando de negócios seus e de outros, como representante de algumas casas comerciais, pelo interior de S. Paulo e outros Estados vizinhos. Neste mister, empregou-se ativamente até aos 23 anos, idade em que se transportou para esta capital, onde fixou residência. Isto foi lá por 1904-1905, em cuja data se colocou na Companhia de Gás, onde se demorou por espaço de um ano, mais ou menos.

 

Algum tempo depois, com as economias que logrou acumular, mercê dos seus esforços e da vida regrada que levava conseguiu estabelecer-se à rua Abranenes, nº 33 com uma pequena casa de artigos elétricos, lâmpadas, fios e outros petrechos filiados a este ramo.  

Residia nesse tempo numa vila que há naquele ponto, na casa nº 4. Foi por essa ocasião que contraiu núpcias.  

Mal sucedido nos negócios, veio a perder, alguns anos depois, tudo o que possuía. Empregou-se então na Companhia de Calçados Clark, em 1913, cuja colocação abandonou, para estabelecer-se novamente, mas já agora com uma charutaria, à rua da Boa Vista, nº 11. Os fados não lhe foram menos adversos. Mau grado todos os seus esforços e empreendimentos, os prejuízos financeiros foram fatais. Foram tantos e tais, que em pouco tempo se via completamente arruinado. 

Esses últimos insucessos comerciais datam de 1914. Nesse ano, sentiu que se passava alguma coisa de anormal no seu organismo. Eram os prenúncios dos 

FENÔMENOS 

que mais tarde se deveriam manifestar, como em mais tarde se manifestaram, e ainda se manifestam, com uma precisão assombrosa. Carlos Mirabelli, que havia pouco se vira arruinado na rua da Boa Vista, passara a residir no largo do Arouche, nº 50, onde, como acima dissemos, começava a sentir-se doente. Dores de cabeça, tontura, excitação nervosa, toda uma série de sintomas mórbidos. Concomitantemente, tinha insônias, via vultos estranhos, sentia repelões, puxavam-no a todo instante pela roupa. Andava aterrorizado. A sua família perdera a tranqüilidade. Vieram dias de sofrimento morais; no seu lar já não havia a paz e o encanto de outrora. Pouco a pouco, porém, fora se dominando. Muito não tardou e, já mais senhor de si, Carlos Mirabelli, que não era um demente, nem apresentava, em verdade, sintomas de males patológicos, analisou-se com firmeza e entrou a suspeitar que, sem saber como, nem porquê, se transformara em médium espírita.  

Isto ouvimos dos seus próprios lábios. Nessa altura, atalhamos: 

– V. era espírita?

– Não.

– Conhecia algumas obras nesse gênero?

– Muito poucas.

– Freqüentava sessões, cuidava dessa doutrina?

– Nada, absolutamente.

– Mas como suspeitou que o seu caso tinha relações com os espíritos?

– Porque já então eu os distinguia.

– E reconhecia-os?

– Perfeitamente. Eram os de meu pai, minha mãe, uma filhinha minha, minha sogra e um tio. 

Mas, era preciso trabalhar. Carlos Mirabelli voltou a procurar serviços. Isso foi agora, no ano findo. Depois de alguns empenhos e pedidos, entrou para a Companhia de Calçados Villaça, à rua Direita, 6-A. Era a primeira casa em que trabalhava, depois de se lhe manifestar a mediunidade. Nesse estabelecimento não pôde demorar-se, pois as  

MANIFESTAÇÕES ESPÍRITAS 

continuaram. As caixas de sapatos, as cadeiras, vários objetos começaram, com grande alarme da freguesia, a ter movimentos próprios e inteligentes. Foi então que o sr. Martins Pontes, gerente daquele conceituado estabelecimento, em palestra, referiu esse caso ao farmacêutico  sr. Assis Ribeiro. Então, convidando algumas pessoas para assistirem aos fenômenos, convocaram uma sessão, que se realizou naquela loja e que foi a primeira realizada por Carlos Mirabelli.  

– Demorou-se muito na Casa Villaça? inquirimos.

– Não. A falta de serviço, como também as manifestações, que assustavam os que a estas assistiam, levaram-me a deixar a colocação. 

Nesta altura da palestra, notamos que o sr. Carlos Mirabelli, muito pálido, tinha uma expressão contrafeita. Apertava com as mãos um dos lados, na altura dos rins. 

– Estás incomodado? perguntamos-lhe.

– Não, não é nada. É um espírito. 

Um calor nos subiu ao rosto, sentimo-nos arrepiados. 

– Isso não é nada; vai-se já.

– E depois daquela casa entrou para alguma outra?

– Sim.

– Há tempos?

– Não. Há algumas semanas.

– Em que casa esteve?

– Na Farmácia Queiroz, à rua Líbero Badaró. Lá se reproduziram os mesmos fenômenos. Houve os mesmos sustos. Deixei esse lugar há quinze dias.

– De modo que só dificilmente se poderá colocar?

– Talvez. O que preciso é de colocação em que esteja em constante atividade, pois que, concentrando-me, reproduzem-se os fenômenos.

– Mas, desculpe-nos a curiosidade, e em sua casa?

– Voltamos à antiga paz. Os meus já se habituaram às manifestações. Às vezes, dão-se fatos até interessantes. Quando minha senhora porventura se acha adoentada, e falta quem a sirva, os espíritos servem-na. Oferecem-lhe até chá no leito. Para ela tudo anda por si, como por encanto, pois que nada vê; eu, porém, reconheço perfeitamente os espíritos, e vejo-os transportando os objetos.Vivemos agora muito bem, graças a Deus.

– E os espíritos aparecem sempre?

– Sim. Já agora não me fatigam. A princípio, sofri muito. Dei inúmeras quedas, passei privações, traguei até às fezes a taça do Infortúnio.

– De modo que a sua primeira sessão foi na Casa Villaça…

– Sim. Mas antes disso, 

NOS CAFÉS E NAS RUAS, 

outras manifestações se davam comigo. Num desses cafés, logo que me sento, um espírito costuma trazer-me a xícara e o açucareiro.  

– Com grande espanto dos presentes?

– Sim.

– V. tem realizado muitas sessões?

– Inúmeras por toda a parte. 

De fato, a presença do sr. Carlos Mirabelli tem sido muito reclamada. Já tiveram oportunidade de apreciá-lo, muitos deles em seus próprios lares, inumeráveis cavalheiros da nossa melhor sociedade, entre os quais se contam os srs. dr. Alberto [ilegível], José Fortunato de Sousa, conselheiro Antônio Prado, dr. Martinho Botelho, dr. [ilegível] Vidigal, farmacêutico Assis Ribeiro, dr. Almeida e Silva, Antônio Carlos da Fonseca, Nuto Sant’Anna, professor Bicado, farmacêutico Malhado Filho, dr. Capote Valente, Horácio de Carvalho, dr. Eduardo Guimarães, dr. Enjolras Vampré, dr. Vital Brasil, dr. Washington Luis, dr. Spencer Vampré, dr. Anthero [ilegível], dr. Alarico Silveira, Luiz Fonseca, Benedicto Jorge Flaquer, Brasiliano Gonçalves, professor Cardita, dr. Oscar Thompson e muitos outros.  

No Hospício do Juquery, na presença do sr. dr. Franco da Rocha e vários médicos daquele estabelecimento, o sr. Carlos Mirabelli realizou interessantes experimentos durante três dias, como sejam o fazer mover-se os objetos inanimados, entre os quais figurava uma caveira, e outros fenômenos já sobejamente conhecidos do nosso público. 

Não pára aí a série curiosíssima de  

REVELAÇÕES 

devidas a esse notável médium. Entre as muitas sessões que tem realizado, uma das que maior interesse revestiram foi a realizada na residência do sr. Brasiliano Gonçalves, onde os habitantes do espaço rasgaram papéis, ferveram água contida num copo sobre uma mesa e por fim abriram uma porta trancada a chave. 

Dos fenômenos a que assistimos contam-se a movimentação de copos e [ilegível], e este fato curiosíssimo: foi introduzida uma tira de papel dentro de uma garrafa. À ordem do médium o papel saiu lentamente, sem que ninguém o tocasse. Este fenômeno foi repetido por três vezes. Assim também fez mover a uma grande distância as páginas de um livro. E outros. 

A este propósito, com permissão do autor, um distinto clínico desta capital, reproduzimos aqui alguns períodos que melhor elucidarão estas linhas de noticiário: 

(Seguia-se um artigo publicado na “Platéa” e assinado – C. C.)

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