AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 37)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.

Correio Paulistano – Domingo, 9 de julho de 1916, página 3 

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério

O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador

TRÊS SENSACIONAIS DEPOIMENTOS

O falso médium pilhado em flagrante na prática de seus “truques”

O FIO DE CABELO É OBSERVADO POR UM DOS CIRCUNSTANTES

Um jovem advogado descobre um dos “fenômenos” e consegue reproduzi-lo diante do próprio “médium”

DE COMO UM ALFAIATE DESMASCARA UM SAPATEIRO 

Terminamos hoje esta parte do nosso inquérito, na qual já figurou, em brilhante destaque, o testemunho insuspeito de muitos dos nossos mais ilustres homens de ciência. 

Precedendo as interessantes palestras que se vão ler, vêm a propósito algumas linhas elucidativas. Disseram, segundo ouvimos, alguns dos últimos ingênuos que ainda se admiram diante das pelotiquices do ex-médium de Botucatu, que este não havia sido pegado em flagrante e que os seus truques, até o presente, se mantinham invisíveis. Ora, como se tem visto e como temos provado à farta, não é de hoje que o solerto intrujão se dá à pratica de escamoteações: completando essas informações, com uma série de entrevistas que gentilmente nos concederam distintíssimos cavalheiros, esclarecemos exuberantemente todos os recantos do famoso mistério. Até mesmo a última lenda, aquela a que acima nos referimos e que dava como invisíveis os truques do intrujão, já foi, QUANDO PARA DESFAZÊ-LA NÃO BASTASSE O FATO DE HAVERMOS ENCONTRADO NO TAPETE DO NOSSO SALÃO NOBRE UM DOS “APARELHOS DAS MANDIGAS”, reduzida a expressão mais simples por alguns dos nossos entrevistados. O dr. Pereira de Rezende, cavalheiro finíssimo, referindo-nos, em síntese, o que pensava sobre o ex-médium, disse-nos HAVER SENTIDO NAS MÃOS UM FIO, quando o espertalhão operava. Não bastasse esse testemunho INSUSPEITO E VALIOSÍSSIMO, para desfazer o boato da intangibilidade da “força mirabellica”, e teríamos, como de fato os temos, para nele por um ponto final definitivo, os documentos que abaixo se vão ler e nos quais, como verão, o célebre fio e também outro truque do audacioso prestímano FORAM DESCOBERTOS por alguns dos seus espectadores.

Cremos que não é preciso absolutamente mais nada para provar a existência dos truques; salvo, porém, se desejam os ingênuos QUE O PRÓPRIO PRESTIDIGITADOR MOSTRE COM AS SUAS MÃOS os instrumentos com que opera, iludindo arrojadamente a boa fé dos incautos… 

Em que se vê que vão sendo descobertos os truques do homem prodígio 

[FIGURA]

 

SR. ENÉAS DE CARVALHO 

O dr. Enéas M. de Carvalho foi também dos que assistiram às magias do ex-médium, as quais por aí correram de boca em boca como revelações sobrenaturais. 

O distinto advogado relatou-nos, em poucas palavras, as suas impressões sobre o audacioso prestímano.

– Logo que chegou a nossa casa o sr. Mirabelli, para realizar uma experiência a nosso pedido, disse estar presente o espírito de um mano meu já falecido. Como uma prova da presença, na sala, de uma pessoa de todos nós tão cara, o sr. Mirabelli fez GIRAR NO GARGALO DE UMA GARRAFA O CÉLEBRE PAPELÃO, de todos já tão conhecido. Notei que o “homem misterioso” não PERMITIA QUE QUALQUER PESSOA SE APROXIMASSE da garrafa nem de si. Realizou também a conhecida levitação do lápis, tal qual como o faz o secretário do “Correio Paulistano”.

– Mas o dr. nada notou?

– Causou espécie aos presentes o seguinte: o sr. Mirabelli só operava com os objetos nos quais tocava. Quanto à descrição do meu mano falecido, não hesitou em fazê-la o “médium”, pois que este entretivera, em relação àquele, UMA CONVERSA COM UM PARENTE DA NOSSA CASA, o qual lhe FORNECERA OS SINAIS POR ELE DESCRITOS.

A seguir, pediu-se que abrisse um bule. Aquiesceu, mas antes disso NELE PEGOU ABRINDO E FECHANDO PRIMEIRAMENTE a sua tampa. Fez mais. Uma moeda que tinha nas mãos, depois de esfregá-la na manga do paletó do braço esquerdo, desapareceu como que por encanto. Não foi feliz, porém, o mágico: DESCOBRI-LHE ESTE TRUQUE, TANTO QUE O REPRODUZI PERFEITAMENTE, DIANTE DO PRÓPRIO SR. MIRABELLI, sem a habilidade do profissional, está visto.

– Então para o dr. o homem prodígio…

– … é um artista… em matéria de prestidigitação, isso é. NÃO PASSA ELE DE UM HÁBIL PRESTIDIGITADOR. Tudo o que mais sei a respeito do “homem misterioso” foi já largamente noticiado pelos srs. e não vale a pena insistir sobre coisas de tão pouca valia. 

O jovem advogado, atendendo a um pedido nosso, reproduziu, numa das salas da redação desta folha, o “fenômeno” do níquel, que é de fato muito interessante.  

O fio de cabelo é visto por um acadêmico 

[FIGURA]

EVANDRO SILVEIRA 

O talentoso jovem sr. Evandro Silveira, acadêmico de direito e filho do brilhante literato dr. Valdomiro Silveira, teve ocasião de presenciar várias sessões do sr. Carlos Mirabelli. Desconfiado, porém, não se prontificou a acreditar nos fenômenos surpreendentes. E foi dominado pelo desejo de não se deixar ludibriar que o jovem resolveu comparecer, há tempos, a uma sessão do EX-MÉDIUM, em casa de uma pessoa de suas relações. O que viu e constatou vai abaixo, em palestra que nos concedeu: 

– O sr. Mirabelli embirrou comigo desde a primeira vez que me viu. Dizia sempre que eu era “fluido contrário”, e assim não consentia que eu assistisse às suas sessões. Uma vez, em casa de um amigo de meu avô dr. João Silveira, o sr. Mirabelli, pondo de lado os seus preconceitos de não me deixar vê-lo trabalhar, consentiu que eu fosse testemunha do que ele chama “os seus fenômenos”. Levou-me para um quarto da casa, e aí me disse que virasse as costas para o lado contrário em que ele se achava. Enquanto permanecia nessa posição, o “homem misterioso” colocou uma cadeira na ponta de uma mesa e depois, virando-se, exclamou: – “Já vem, já vem…” Referia-se ao espírito de meu tio Brenno Silveira, que dizia estar presente.

E Carlos Mirabelli, o nosso “herói”, começou a dar pulos, mas pulos desesperados, assim como se virasse em caboclo e, ainda inexperiente, tentasse dançar num fandango. Irra! Fiquei encafifado! Um homem assim a pular, a pular! Não era sem motivo a minha admiração. Mas esta se tornou ainda maior quando Mirabelli, continuando com os seus pulos, gritou: – “Veja, a cadeira vai cair…”

– “Coisa espantosa!” – diziam os crédulos mirabellicos; uma cadeira cair assim, sem mais nem menos”.

Eu, porém, é que não concordei com o “negócio”. Pois como é que a cadeira não havia de cair, se estava colocada bem na ponta da mesa, e o homem, com os seus saltos, sacudia toda a casa?

Protestei logo. Disse-lhe que aquilo nada era, nada provava. Isso me grangeou mais um pouco a inimizade de Mirabelli, que esbravejou, chamou-me de incrédulo, de criança, afirmando ter eu fluido contrário e uma porção de coisas mais, de que nem me lembro.

Não sei o que me diria se soubesse que, certa vez, quando ele tentava realizar uma sessão em casa do dr. Leopoldo Ferreira, à rua da Liberdade, e que estava eu presente, fiz uma descoberta, que não lhe agradaria nada: VI, NA PONTA INFERIOR DO SEU PALETÓ, NA FRENTE, UM FIO DE CABELO, ENROLADO…

– Mas era mesmo cabelo?

– SE ERA! E DE UM LOIRO BELÍSSIMO, afirmo-lhe.

COMO ERA NATURAL, OLHEI UM POUCO INDISCRETAMENTE PARA O PRECIOSO ACHADO, O “HOMEM” PARECE QUE DESCONFIOU, POIS QUE, ATO CONTÍNUO, FEZ UMNS GESTOS, ENCOLHENDO O PALETÓ E ESCONDENDO ASSIM O FIOZINHO, QUE OS MEUS OLHOS ATÉ BEM POUCO TEMPO HAVIAM DEVORADO.

TAMBÉM FIZ, NESSA OCASIÃO, OUTRA DESCOBERTA, QUE PARECE TER ALGUMA IMPORTÂNCIA: o sr. Mirabelli, DEPOIS DE TER ENCOLHIDO O PALETÓ, CONFORME LHE REFERI, LEVANTOU AS MÃOS E FEZ UNS GESTOS CARACTERÍSTICOS COM OS DEDOS: COMO QUE AMASSAVA ALGUMA COISA, UM PEDACINHO DE CERA, TALVEZ, pois que nada posso afirmar, quanto a este particular: só o vi mexer os dedos.

Depois dessa sessão, NUNCA MAIS MIRABELLI QUIS QUE EU ASSISTISSE às suas experiências. Quando eu desejava isso fazer, dizia-me sempre:

– “Você não pode, tem fluido contrário, e é criança…”

E é só o que sei. 

Mirabelli pilhado em flagrante 

O famoso “homem misterioso”, antes da sua celebridade, não tinha segredos com as suas mágicas,    antes, cheio de vaidade, se comprazia em mostrar a todos as suas habilidades de prestímano. Gozava com a estupefação dos seus espectadores e, muita vez, não se furtava ao prazer de dizer aos que o viam trabalhar: “Aqui está o segredo”. E mostrava os seus truques. 

Um dos lugares favoritos para a sua exibição foi uma alfaiataria. O sr. Mirabelli fizera conhecimento com o dono a casa por causa de um terno que encomendou. 

Depois, tornando-se frequentador assíduo das oficinas, o nosso homem não levou muito tempo a ser um motivo de risotas dos alfaiates. Sim, porque não passava dia que lá aparecesse sem que desse provas da sua agilidade: eram níqueis que passavam de um dos bolsos dos assistentes para o de outros e várias sortes, que os divertiam bastante. Nesse tempo, o sr. Mirabelli não se dizia o MÉDIUM EXTRAORDINÁRIO que hoje se intitula: fazia tudo como um simples mortal que levou grande parte de sua vida num circo de cavalinhos, operando “prodígios como pelotiqueiro” e que, mediante algumas lições de um compêndio de mágicas, se aperfeiçoou, a ponto de se tornar um habilíssimo prestidigitador. 

Nas oficinas citadas todos lhe conhecem a história. 

Algumas das pessoas da alfaiataria prestaram-nos esclarecimentos sobre o “homem”. 

A primeira com quem conseguimos falar foi com o sr. Juvenal Vianna, residente à rua Sete de Abril, nº 64, que respondeu à nossa pergunta!

– Conheço bem o sr. Mirabelli. Era um freqüentador habitual duma alfaiataria em que eu trabalhei. Quase todos os dias lá estava, E FAZIA SORTES DE ESPANTAR mesmo.

Mas, uma coisa eu vi ele fazer que me admirou extraordinariamente. Imagine o sr. Mirabelli, que até então tinha se limitado a fazer prestidigitação com moedas, lenços, etc., propôs-se a tirar um lápis de dentro de uma garrafa.

– Que! Ele fazer aquilo, dissemos todos os presentes, era impossível.

– Pois não é, disse Mirabelli. Já lhes vou provar o contrário.

– Pois se fizer acreditaremos que você é um prestidigitador extraordinário. – dissemos-lhe.

Mirabelli começou a trabalhar. Arregalou os olhos, fez uns gestos, e, coisa espantosa, o lápis começou a sair vagarosamente da garrafa.

Todos os olhares estavam voltados para o homem, que fazia tal maravilha. E ninguém percebia nada, ou quase ninguém, pois que um dos nossos companheiros, num dado momento, aproximando-se do sr. Mirabelli, disse-lhe:

– MAS QUE É ISSO QUE TENS AÍ PRESO NO BOTÃO DO COLETE?

O homem mudou de cor, tentou recuperar a calma perdida. Depois, meio “encafifado”, exclamou:

–OH! VOCÊS DESCOBRIRAM PORQUE A COISA FOI FEITA COM UM FIO DE RETROZ PRETO. SE FOSSE EMPREGADO UM CABELO, COMO DEVE SER, NUNCA DESCOBRIRIAM NADA.

E aí está, meu senhor, como o sr. Mirabelli se viu atrapalhado numa simples alfaiataria… 

Duas perguntas ao dr. Anthero Bloem 

O sr. dr. Anthero Bloem, ao que nos parece, faz parte do reduzidíssimo grupo dos que se obstinam em manter dúvidas sobre o caso do “homem prodígio”. Isso explica-se, porém. O nosso prezado amigo é um caráter puro, um coração generoso, uma alma branda e cheia dos mais altos sentimentos; não concebe, por isso, a idéia de que um indivíduo, arvorado em médium, tenha a audácia de andar a impingir em todo o mundo as suas trampolinagens. Tão de boa fé é o nosso distinto amigo e ilustre homem de letras, que foi ele um dos que mais fervorosamente acreditaram, e não sabemos se ainda acredita, no refinadíssimo intrujão professor Bacu, que a polícia, com os aplausos da população paulistana, escurraçou de S. Paulo. 

Ora, assim sendo, não nos surpreenderam as suas opiniões sobre o ex-grande médium. Mas, pelo muito que nos merece o dr. Anthero Bloem, não podemos deixar sem uns ligeiros reparos a sua vasta carta explicativa, na qual avultam, de distância a distância, períodos grafados em veranes. Antes de fazermos duas inofensivas perguntas ao distinto taquígrafo da Câmara dos Deputados, permita-nos s. s. que transcrevamos aqui este tópico da sua missiva:

– “… Foi-lhe trazida uma caixa de chapéu de senhora, CAIXA REDONDA, que o experimentador NÃO ACHOU ADEQUADA ao fim que tinha em vista: preferia uma caixa de calçado, por exemplo.” 

Ora, tão bem como nós, conhece o esclarecido dr. Anthero, que sabe reproduzir com habilidade os fenômenos mirabellicos, o MOTIVO porque o charlatão reclamava uma caixa de calçado. É porque a outra, a redonda, e, portanto, sem ângulos em que pudesse apoiar o seu aparelho invisível, não poderia, como não pode, dar resultados satisfatórios. Assim, esse tópico da sua carta não é mais do que um testemunho QUE MUITO COMPROMETE a “mediunidade” do homem-prodígio… 

A seguir, diz ainda o dr. Bloem, em caracteres garrafais, pertencer ao número “dos que acreditam na possibilidade de tais manifestações, sejam elas produzidas por Mirabelli, Sancho ou Martinho. O que me preocupa é tão somente o fenômeno e não a pessoa de quem os provoca.” 

É precisamente o que temos sempre procurado acentuar. Não discutimos, como já temos dito um milhão de vezes, os fenômenos sob o ponto de vista científico, se são ou não realizáveis; apenas afirmamos que o sr. Mirabelli os realiza por meio de truques. Assim, também não nos preocupa a pessoa do prestímano, mas tão somente os falsos fenômenos, que diz realizar com a ajuda de espíritos. Não fosse isso e não fosse estarem envolvidos no caso algumas pessoas de responsabilidade social e científica e NÃO TENHAMOS CONSAGRADO UMA LINHA SEQUER as escamoteações do prestidigitador. 

Agora as duas perguntas ao nosso prezado amigo dr. Anthero Bloem: 

1a) S. s. referiu-se ao fenômeno das avencas que se agitaram num vaso “como se uma ligeira brisa soprasse sobre elas”.  

Esse trecho da sua carta vem em dezesseis linhas, em tipos grandes, naturalmente porque o achou de suma importância. Pois bem: o dr. VIU  aquele fenômeno?

2a) Outro trecho: 

“Estive presente a muitas experiências do sr. Mirabelli e confesso, sem o menor constrangimento, que não vi sombra de “truque” nos fenômenos que se operaram à minha vista.”

Não viu nem sombra de truque, disse, agora faça o simpático literato o especialmente obséquio de responder-nos se, ao assistir a nossa experiência, SABENDO QUE SE TRATAVA DE TRUQUE, PREVENDO DE QUE O OPERADOR ESTAVA PREPARADO, CONHECENDO O MODO POR QUE SE REALIZAM OS FENÔMENOS, CONVENCIDO DE QUE NÃO TÍNHAMOS AO NOSSO SERVIÇO NENHUM ESPÍRITO, etc., etc., – PERCEBEU ELE OU ALGUM DOS ASSISTENTES o “truque” com que realizamos as mesmas magias do ex-maior médium destes últimos tempos? 

Estamos certos de que nos satisfará nestes desejos, como certo estamos de que, mais dia menos dia, o nosso distinto amigo se convencerá da verdade, não procurando imitar aquele advogado na sua afirmação de que, embora o ousado prestímano confessasse usar de truques, ainda assim continuaria a acreditar nos seus fenômenos… 

* *

MIRABELLICES

A voz da Fama num clangor propale

O espantoso poder do Mirabelli

Nada há na Terra que essa força iguale

Nem mesmo lá no céu há quem o excele! 

Há lá por cima quem por ele vele,

E basta que ele os olhos arregale!

Há cá por baixo quem se descabele,

Dando-lhe o fluido astral que tanto vale… 

O Mirabelli é belo, mas tem bile.

Se você as patranhas não engole

Cale-se, antes que ele se encabule: 

Pois não queremos que o homem se inquiete!           

Vamos fazê-lo herói de um Rocambole

E receamos que o maroto azulo…

Beato da Silva 

Para amanhã:

Uma prova irretorquível das intrujices do “homem misterioso” – O falso médium cai numa hábil cilada que o “Correio” lhe preparou

Mirabelli põe-se em contato com o espírito de uma pessoa que nunca existiu

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