Derrubado um dos Pilares do Espiritismo: O Livre-Arbítrio –Parte 5

Segue matéria que saiu na Scientific American Brasil de julho/2014 sobre a inexistência do livre-arbítrio e as possíveis consequências disso para a sociedade.

CIÊNCIA COGNITIVA

O Mundo Sem Livre-Arbítrio

O que ocorre numa sociedade com membros sem controle consciente sobre suas ações?

Por Azim F. Shariffe Kathleen D. Vohs 

EM JULHO DE 2008 o metalúrgico    aposentado Brian Thomas e sua esposa, Christine, viajaram com seu trailer para um pequeno vilarejo litorâneo no País de Gales. Incomodados por motoqueiros que faziam manobras barulhentas, o casal se mudou para o estacionamento de uma pousada próxima Mais tarde naquela noite Thomas sonhou que um dos motociclistas havia invadido o trailer. Enquanto dormia, ele confundiu sua mulher     com o motoqueiro imaginário e a estrangulou. Ou, pelo menos, foi assim que relatou o caso.

No ano seguinte, um júri teve de decidir se Thomas era culpado de assassinato. Os jurados ficaram sabendo que ele era propenso ao sonambulismo desde a infância. Um perito em psiquiatria explicou que Thomas não estava ciente do que fazia quando sufocou sua mulher e que não havia decidido atacá-la conscientemente. Thomas foi inocentado.

Casos como esse forçam as pessoas a considerar o que significa livre-arbítrio. Durante um episódio de sonambulismo o cérebro claramente pode direcionar as ações das pessoas sem envolver sua plena cooperação consciente. Recentemente um número crescente de filósofos e neurocientistas têm argumentado que, com base na atual compreensão do cérebro humano, todos, de certa forma, estamos sonambulando o tempo todo. Em vez de sermos os autores intencionais de nossas vidas, somos simplesmente manipulados por acontecimentos passados e por maquinações ocultas de nossas mentes inconscientes. Mesmo quando estamos perfeitamente acordados, o livre-arbítrio é apenas uma ilusão.

Filósofos com esse ponto de vista argumentam que todos os organismos são regidos pelas leis físicas de um universo onde cada ação é o resultado de eventos anteriores. Humanos são organismos e, assim, o comportamento que apresentam resulta de uma complexa seqüência de causa e efeito completamente fora de controle. O Universo simplesmente não permite o livre-arbítrio. Recentes estudos neurocientíficos intensificaram essa noção ao sugerir que a experiência da escolha consciente é o resultado dos processos neurais subjacentes que produzem ações humanas, não sua causa. Nossos cérebros decidem tudo o que fazemos sem a “nossa” ajuda — é apenas aparente a idéia de que temos voz ativa.

Nem todos concordam, é claro, e os debates sobre a existência do livre-arbítrio continuam acalorados. Mas nós dois estamos intrigados com uma questão relacionada e de igual importância: o que acontece quando a crença das pessoas em livre-arbítrio, justificada ou não, é abalada? Qual será o aspecto de uma sociedade pós-livre-arbítrio, ou melhor, uma sociedade pós-crença em livre-arbítrio? Nossa pesquisa sobre essa questão oferece algumas vagas idéias de uma resposta, algumas delas perturbadoras. Em particular, vemos sinais de que uma falta de crença no livre-arbítrio pode acabar desmantelando a organização social.

EXONERAÇÃO PARA CRIMINOSOS

ALGUNS DE NOSSOS EXPERIMENTOS, no entanto, indicaram um resultado mais ameno, ao sugerirem que uma sociedade que abandonou a crença no livre-arbítrio seria menos punitiva que nosso mundo atualmente. Em pesquisas de opinião constatamos que quanto mais as pessoas duvidam do livre-arbítrio, menos favorecem a punição “retributiva” — castigo não imposto principalmente para impedir crimes futuros, mas para fazer as pessoas arcarem com suas transgressões. Mas, o que as pessoas acreditavam sobre o livre-arbítrio não diminuiu o apoio delas à punição “consequencialista”, que abandona a noção de castigo justo ou merecido, e, em vez disso, concentra-se nos meios mais eficazes para desencorajar o crime e reabilitar os perpetradores. De fato, céticos do livre-arbítrio tratam pessoas que infringem a lei como fariam com vírus, inundações violentas ou outros fenômenos naturais: eles querem se proteger contra mais danos, mas não têm o desejo de buscar vingança.

Uma pesquisa posterior chegou a uma conclusão similar. Metade dos nossos participantes leu um trecho de um livro argumentando que uma visão racional dos humanos não deixa espaço para o livre-arbítrio. A outra metade leu uma passagem do mesmo livro não relacionada à liberdade de tomar decisões. Como esperávamos, o primeiro grupo ficou mais reticente quanto à existência do livre-arbítrio. Posteriormente, todos os participantes leram uma história sobre um homem hipotético condenado por matar alguém em uma briga de bar. A história deixava claro que o encarceramento não ajudaria a reformá-lo. Os que tinham sido expostos a argumentos contra o livre-arbítrio recomendaram metade do tempo de prisão que os voluntários do outro grupo.

Em experimentos de acompanhamento, descobrimos que nem era necessário mencionar explicitamente o livre-arbítrio para mudar o modo como as pessoas pensam sobre o assunto e, consequentemente, como elas decidem uma punição apropriada para um crime. Depois de lerem artigos de revistas científicas populares em papel-cuchê descrevendo os mecanismos neurais subjacentes a ações humanas, sem menção explícita de livre-arbítrio, as pessoas consideraram um criminoso imaginário menos culpado que os voluntários não expostos a esses materiais. Participantes que leram sobre ciência cerebral também recomendaram cerca da metade do tempo de prisão para homicídio. Aprender sobre o cérebro em uma aula na faculdade parece ter efeitos similares. Um recente experimento conduzido por Lisa G. Aspinwall, da University of Utah e seus colegas, se acrescenta a essa linha de evidência. Eles mostraram que quando um transtorno mental de um suposto criminoso é explicado em linguagem científica como algo que essencialmente domina o cérebro de uma pessoa, juízes se mostram particularmente propensos a sentenciar o acusado a uma pena de prisão mais curta.

Embora uma leniência maior por duvidar do livre-arbítrio possa ser uma coisa boa em muitos casos, abandonar completamente a punição criminal seria desastroso. Esse castigo é vital para o bom funcionamento de uma sociedade. Uma pesquisa experimental de Bettina Rockenbach, da Universidade de Colônia, na Alemanha, mostrou que, embora poucas pessoas gostem da idéia abstrata de pertencer a um grupo que pune seus membros por delitos, na prática a maioria esmagadora prefere isso. Rockenbach e seus colegas pediram a voluntários que se envolvessem com jogos de cooperação e lhes deram a opção de participar de um grupo que podia tanto punir como não seus membros. De início, apenas um terço dos participantes optou pelo grupo que podia penalizar seus integrantes, mas após 30 rodadas, quase todos haviam mudado para a equipe que punia. Por quê? Porque esses experimentos confirmaram o que sociedades humanas constataram incontáveis vezes ao longo da história: quando leis não são estabelecidas e executadas, as pessoas têm pouca motivação para trabalhar em conjunto para um bem maior. Em vez disso, elas se colocam acima dc todas as outras e se esquivam de toda responsabilidade, mentindo, trapaceando e roubando em seu caminho para o colapso social.

Mas o ceticismo em relação ao livre-arbítrio pode ser perigoso até para uma sociedade que tem leis. Parte de nossa pesquisa revela que essa dúvida, que enfraquece um senso de responsabilidade por nossas ações, incentiva as pessoas a abandonarem regras. Em estudos realizados com Jonathan W. Schooler, da University of California em Santa Barbara, participantes que leram uma passagem contra o livre-arbítrio trapacearam 50% mais em um teste acadêmico — optando por espiar as respostas — que os voluntários que leram um trecho neutro. Além disso, em outro estudo, em que os participantes foram remunerados por cada questão de um teste que haviam respondido corretamente, os que tinham lido declarações contra o livre-arbítrio alegaram ter acertado mais respostas e aceitaram o pagamento correspondente.

IMPULSOS PERIGOSOS

IGUALMENTE PERTURBADOR para a coesão social, uma crença reduzida no livre-arbítrio também parece liberar impulsos para prejudicar outros. Uma das formas aceitas com que psicólogos medem agressão no laboratório é dar às pessoas a oportunidade de colocar pimenta ou molho picante de tomate em um lanche que eles sabem será servido a alguém que detesta alimentos condimentados. Roy F. Baumeister, da Florida State University, e seus colaboradores, pediram a um grupo de voluntários que lessem argumentos pró e contra a existência do livre-arbítrio antes de prepararem pratos de chips de milho (tortillas) e um molho claramente rotulado como picante a outro voluntário que, antes, havia rejeitado todos os membros do grupo recusando-se a trabalhar com eles. Todos sabiam perfeitamente que essa mesma pessoa arrogante não era fã de nada picante e que teria de comer tudo o que lhe fosse servido. Os voluntários que leram textos questionando a existência do livre-arbítrio usaram quase o dobro da quantidade de molho apimentado.

A neurociência revelou que pelo menos uma forma como o ceticismo quanto ao livre-arbítrio deteriora o comportamento ético é enfraquecendo a força de vontade. Antes de as pessoas fazerem um movimento, como pegar uma xícara, um determinado padrão de atividade elétrica, conhecido como potencial de prontidão, ocorre no córtex motor do cérebro que ajuda a regular movimento. Ao colocarem eletrodos no couro cabeludo de voluntários, Davide Rigoni, da Universidade de Pádua, na Itália, e seus colaboradores, mostraram que reduzir a crença das pessoas no livre-arbítrio diminuía essa atividade elétrica. Em um estudo de acompanhamento pessoas cuja convicção na existência do livre-arbítrio havia sido abalada foram menos capazes de inibir reações impulsivas durante um teste computadorizado de força de vontade. Tudo indica que, quanto menos acreditamos em livre-arbítrio, menos força temos para nos abster do impulso de mentir, trapacear, roubar e servir molho apimentado a pessoas que não gostam de condimentos.

Como a sociedade vai reagir se a pesquisa neurocientífica continuar desafiando a convicção das pessoas de que elas têm livre-arbítrio?

Vemos três possibilidades. A história está repleta de exemplos de como normas morais evoluem com novos conhecimentos do mundo. Em seu recente livro Os anjos bons da nossa natureza — Por que a violência diminuiu (Companhia das Letras, outubro de 2013), o psicólogo Steven Pinker, da Harvard University, documenta uma “revolução humanitária” ao longo dos últimos 300 anos em que práticas previamente institucionalizadas, como a escravidão e a punição cruel e incomum, foram amplamente vilipendiadas como moralmente repugnantes. Pinker atribui a mudança, em parte, ao conhecimento expandido de diferentes culturas e ao comportamento humano resultante do grande aumento de alfabetização, aprendizagem e troca de informações na época do Iluminismo.

Novas descobertas sobre o mecanismo biológico por trás do pensamento e ação humanos podem inspirar uma mudança também drástica em opiniões morais. Essa é a primeira possibilidade. Como já ocorreu antes, transformações em sentimentos morais podem ajudar a aprimorar o sistema penal americano. Atualmente, a punição criminal é impulsionada principalmente pela desforra “olho por olho”, tipo de castigo apoiado por pessoas que acreditam no livre-arbítrio, e que, talvez como resultado, é lamentavelmente ineficiente para dissuadir crimes futuros. A sociedade deveria evitar punir as pessoas unicamente para vê-las sofrer e, em vez disso, se concentrar em meios mais eficazes para prevenir a atividade criminal e transformar infratores passados em cidadãos produtivos — estratégias que se tornam mais atraentes quando as pessoas questionam a realidade do livre-arbítrio. Apesar dos riscos ocasionais, duvidar do livre-arbítrio poderá ser um tipo de dor de crescimento da sociedade enquanto alinha intuições morais e jurídicas a novos conhecimentos científicos, tornando-nos mais fortes.

Mas pode ser que não ocorra assim. Como nossa pesquisa sugeriu, quanto mais as pessoas duvidam do livre-arbítrio, mais indulgentes se mostram em relação aos acusados de crimes, e mais dispostas elas mesmas se tornam a quebrar as regras e prejudicar outros para conseguir o que querem. Portanto, a segunda possibilidade é que o recém-descoberto ceticismo quanto ao livre-arbítrio pode ameaçar a revolução humanitária, potencialmente culminando no caos.

A mais provável é a terceira possibilidade. No século 18, Voltaire afirmou que se Deus não existisse, precisaríamos inventá-lo, porque a noção dc Deus é vital para manter a lei e a ordem na sociedade. Considerando o fato de que a crença no livre-arbítrio coíbe as pessoas de se envolver nos tipos de delitos que poderiam desfazer uma sociedade organizada, o paralelo é óbvio. O que nossa sociedade fará se descobrir que não tem o conceito de livre-arbítrio? Ela pode muito bem reinventá-lo. SI

EM SÍNTESE

Na última década um número crescente de neurocientistas e filósofos têm argumentado que o livre-arbítrio não existe. Em vez disso, somos manipulados por nossas mentes inconscientes com a ilusão de controle consciente. Paralelamente, estudos recentes sugerem que quanto mais as pessoas duvidam do livre-arbítrio, menos apoiam a punição criminal e menos eticamente se com portam entre si. Na realidade, a dúvida do livre-arbítrio, baseada em informações científicas, poderia nos ajudar a aprimorar o sistema jurídico ao concentrar a aplicação de sentenças de prisão para desencorajar futuros crimes, diminuindo penas puramente por desforra.           

Ilustração por Kyle Bean, fotografia por Mitch Payne 

PARA CONHECER MAIS

Free will and punishment: diminished belief in free will reduces retribution. A. F. Shariff, J. D. Greene, J. C. Karremans, J. Luguri. C. J. Clark, J. W. Schooler, R. F. Baumeister e K. D. Vohs, em Psychological Science (em processo de impressão).

Who’s in charge? Free will and the science of the brain. Michael S. Gazzaniga. Ecco. 2011.

3 respostas a “Derrubado um dos Pilares do Espiritismo: O Livre-Arbítrio –Parte 5”

  1. Larissa Diz:

    “Os voluntários que leram textos questionando a existência do livre-arbítrio usaram quase o dobro da quantidade de molho apimentado.”
    .
    Fizeram uma escolha voluntária?

  2. Marciano Diz:

    Conforme comentou GORDUCHO em outro tópico, este é um exemplo monumental de mau uso da estatística.
    .
    Também fico pensando que, se os que negam o livre-arbítrio tiverem razão, não têm mérito nenhum em negá-lo, pois não foi uma decisão livre.
    Vale o mesmo para o que pregam o livre-arbítrio.
    Os pesquisadores não tiveram escolha ao decidirem (?) fazer a pesquisa e quanto ao resultado, pois, fosse qual fosse este, sua conclusão foi pré-determinada.
    Inclusive o comentário acima, não tenho nada a ver com ele, foi coisa do meu cérebro.

  3. Wander Vitale Diz:

    A Ciência Espírita vem de acordo com o texto. O Espiritismo afirma que o livre-arbítrio só pode ser exercido antes da reencarnação, quando o Espírito escolhe a vida que terá na Terra. Uma vez encarnado, o Espírito cria uma espécie de destino, porém difere do fatalismo, pois durante a sua jornada na Terra, o Espírito continua realizando escolhas, porém, dentro do destino já traçado antes da reencarnação. Assim, as escolhas dos humanos não podem possuir o livre-arbítrio dentro do conceito Espírita, pois suas vidas já estão pautadas em função da ação do livre-arbítrio exercido no mundo espiritual antes da reencarnação. Além disto o Espiritismo afirma que o Espírito é o modelador biológico do corpo físico. Pré- disposições orgânicas para o sonambulismo são condições já estabelecidas pelo Espirito antes da reencarnação. As famílias consanguíneas são constituídas no mundo espiritual antes da reencarnação e nos atraímos por sintonia e afinidade. Anomalias físicas são efeitos da mente do espírito. Como você pode ver, o Espiritismo é uma ciência e como tal, convida a ciência da Terra a avaliar os fatos sob uma perspectiva muito mais abrangente.
    Desta forma, a mente inconsciente está estruturada em experiências passadas desta encarnação e de encarnações passadas. A evolução seria um mecanismo de reentrada no sistema denso com a finalidade de dar prosseguimento ao conhecimento que se atualiza no espaço/tempo. Ao desencarnarmos, interrompemos o ganho efetivo de conhecimento o qual deverá ser adquirido em um próxima reencarnação. Os papéis exercidos no passado permanecem na mente inconsciente a qual deve liberar seus pulsos no presente a medida que os estímulos do mundo sensorial disparam circuitos neuronais que atingem as estruturas do hipocampo e do sistema límbico. Assim, de fato, para evoluirmos e nos adaptarmos ao presente, o qual sempre será mais evoluído que o passado em termos de informação, precisamos evocar o inconsciente pois ele é o gancho que irá conectar o presente. Neste sentido, podemos pensar que vivemos manipulados por acontecimentos passados e assim, sob o ponto de vista material, o livre-arbítrio é discutível. Porém, sob a perspectiva de Espírito, quando retornamos ao mundo espiritual, realizamos uma espécie de balanço geral, uma contabilidade entre erros e acertos e a partir do resultado efetivo, iniciamos um planejamento reencarnatório que nos possibilite quebra de paradigmas e novos conhecimentos. Este planejamento será realizado com o auxílio de Espíritos mais esclarecidos e as tomadas de decisões são de nossa livre vontade. Desta forma, segundo o Espiritismo, é no mundo espiritual que realizamos o livre-arbítrio. É evidente que a medida que o espírito evolui e se torna mais consciente da sua Natureza, exerce o livre arbítrio em escala maior e com maior independência. Desde aqueles que não apresentam condições de escolhas até os Superiores, o livre-arbítrio apresenta uma escala infinita de abrangência. Entenda que estou colocando aqui a visão filosófica do Espiritismo com relação ao livre-arbítrio. Sob o ponto de vista material, a matéria é interessante ;porém, segundo o Espiritismo, os humanos são Espíritos encarnados. Esta matéria ficaria completa se abordasse o comportamento do homem holístico.

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