ESTUDO DA APARÊNCIA FÍSICA DE JESUS – PARTE 3

Para comemorar o Natal, o “Obras Psicogradas” traz a 3ª parte do estudo do Senhor José Carlos Ferreira Fernandes sobre a aparência física de Jesus, que é na verdade uma continuação de sua análise sobre o livro “Há Dois Mil Anos”, de Chico Xavier.

Para fazer o download do estudo, os links são

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III.3.2) O “Cristo Pantocrátor” de Óstia:

            A mais antiga representação, num contexto cristão, duma imagem semelhante àquela posteriormente associada, canonicamente, ao tipo físico de Cristo – ou seja, o mosaico da absidíola oeste em Santa Constança – referia-se, como visto, a Deus Pai, e não ao Salvador.  Portanto, é lícito estatuir que, nos meados do séc. IV dC, aproximadamente (ou mesmo no 3o quartel do séc. IV, c. 350-375 dC), ainda não estava associada a Jesus a imagem posteriormente tornada a mais comum e conhecida universalmente.  E tal situação pode ser mesmo considerada como certa, e como a usual em todo o mundo mediterrânico, já que, numa construção oficial, ligada intimamente à própria família imperial (Santa Constança), o novo cânone ainda não era utilizado.  Não obstante, na própria cidade de Roma, ou arredores, e referindo-se a uma época apenas um pouco posterior, qual seja, aos finais do séc. IV ou inícios do séc. V dC (mais ou menos a vintena de anos compreendida entre c.390 e c.410 dC), há três testemunhos sobreviventes justamente dessa nova imagística.

            Portanto (e usando números redondos, e aproximados), entre os anos 350 dC e 380 dC ocorreu, pela 1a vez, a gestação e a fixação duma outra imagem de Jesus, que não a do jovem imberbe sob a forma do Bom Pastor, do Taumaturgo ou do Mestre – a imagem dum homem adulto, barbado, de cabelos longos, numa atitude de majestade, ou seja, de autoridade, imagem essa que, imediatamente antes, havia sido utilizada para representar não o Salvador, mas sim Deus Pai.  A partir de agora, tratar-se-ão dos três testemunhos sobreviventes desse novo tipo somático de Cristo; depois, tecer-se-ão algumas considerações sobre a possível razão de sua gênese.

            Os três espécimes sobreviventes serão apresentados em ordem aproximadamente cronológica.  O 1o deles é a imagem de Cristo, em marchetaria policrômica de mármore (opus sectile), encontrada em escavações em Óstia, o antigo porto de Roma, na foz do Tibre[1].

            A imagem foi encontrada numa sala situada num bloco de construções (insula) denominado atualmente “insula VII”, na 3a região administrativa de Óstia – daí a designação Regio III Insula VII[2].  A edificação, que na época de sua construção situava-se a beira-mar, foi escavada inicialmente entre 1938-1942, parando-se quando as equipes encontraram evidências de decorações em opus sectile, reiniciando-se entre 1959-1961, quando então tais decorações de marchetaria de mármore foram desenterradas e restauradas.  As referidas decorações, que levaram vários anos para serem cuidadosamente remontadas, ficaram inicialmente no Museu Arqueológico de Óstia, tendo sido transferidas em 2006 para o Museu da Alta Idade Média (Museo dell’Alto Medioevo), em Roma.  O relatório final das escavações foi publicado por Giovanni Becatti em 1969.

            Verificou-se que apenas uma parte dos trabalhos em marchetaria de mármore das paredes (especificamente a parte superior, duma altura aproximada de 2½ metros a quase 8 metros) havia sido concluída, o que demonstra que o prédio foi, por alguma razão, abandonado antes de terminada a sua decoração.  Ao longo das escavações foram encontradas algumas moedas, que ajudaram a datar com bastante precisão o edifício e a sua decoração.  Uma delas, uma pequena moeda de bronze que, por acaso, prendeu-se na argamassa, havia sido emitida pelo usurpador Magno Máximo (que governou no Ocidente entre 383-388 dC, até ser derrotado por Teodósio o Grande).  Várias outras, encontradas nos escombros, eram de data um pouco mais recente, mas nenhuma posterior ao ano 394 dC – isto é, nenhuma posterior à usurpação de Eugênio (que ocorreu entre 392-394 dC no Ocidente, tendo sido ele também derrotado por Teodósio o Grande).

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            Portanto, as construções, em geral, e a sala com a decoração em opus sectile, em particular, haviam sido iniciadas depois de 383 dC; as estruturas já deviam ter sido terminadas, mas a decoração ainda estava em andamento c. 394 dC, quando o prédio foi repentinamente abandonado, para não ser novamente utilizado.  É bastante provável que as obras de construção, e mesmo a encomenda da decoração em marchetaria de mármore, se devam à atuação do prefeito da anona[3] Ragônio Vicente Celso, que exerceu seu cargo entre 385-389 dC e que mostrou-se bastante ativo durante a sua prefeitura, especialmente no que se refere a construções ou restaurações em Óstia.  Sabe-se, com efeito, que a referida personagem restaurou o teatro da cidade, bem como os banhos públicos situados no fórum[4].  É plausível que a edificação de que aqui se trata estivesse, de algum modo, ligada à administração da prefeitura da anona – os trabalhos em opus sectile descobertos nas paredes são por demais elaborados, e de alta qualidade, e indicam uma encomenda oficial, ou, de qualquer modo, ligada a alguma personagem muito importante.  A parte da parede que contém a representação de Cristo é mostrada a seguir[5].

 

            A imagem de Cristo encontra-se ladeada por duas peltas.  O aspecto de Jesus é o do homem adulto, com barba e cabelos longos; a barba é bifurcada, e Ele ergue a mão direita numa atitude de bênção (a chamada “bênção grega”, com o dedo polegar apoiado no anular).  O fundo da composição, bem como os cabelos e a barba, é de pórfiro vermelho-escuro (purpúreo) egípcio; o rosto e as mãos, de mármore amarelo da Numídia (atual Argélia).  A cabeça é realçada por uma auréola (nimbo) em mármore branco de Luna (Carrara).  Cristo veste uma túnica (chiton) branca, na qual é visível uma das faixas (clavus lat.; stichos gr.) largas, de cor púrpura (em pórfiro), tendo por cima um manto (himation), ou melhor, uma toga, branca – as vestes são em mármore branco de Luna.  A moldura do quadro é, sucessivamente, do exterior para o interior, em mármore amarelo númida, pórfiro e mármore de Luna.  O detalhe da imagem encontra-se a seguir.

 

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            Mesmo levando-se em conta as naturais imperfeições da fisionomia, características da técnica utilizada (a marchetaria de mármore não é um mosaico; utiliza fragmentos relativamente grandes de materiais e, assim, não se presta muito bem a um tratamento pormenorizado e personalizado do rosto, p.ex.), a imagem já exibe praticamente todos os atributos que depois seriam fixados no typos de Cristo conhecido na arte bizantina como o “Pantocrátor” (i.e., o “Todo-Poderoso”).  Trata-se da figura de Jesus adulto, com cabelos e barba longos, olhando o espectador de frente, com amplos olhos abertos; Sua face é destacada por um halo; veste uma túnica e um manto; tem a mão direita erguida em bênção.  Faltaria apenas, na mão esquerda, os rolos (ou o códice) dos Evangelhos, e, na auréola, a inserção duma cruz (a “auréola crucífera”).  As cores do manto e da túnica também variariam.  Nesta representação, especificamente, Cristo é mostrado com as vestes dum senador (túnica de lã branca, com as faixas largas de cor púrpura, ou seja, a “túnica laticlava”; manto, mais especificamente toga, de lã branca)[6]; posteriormente, para efeitos de realce, a túnica e o manto de Jesus ganhariam, nas representações artísticas, cores mais vivas e mais brilhantes (usualmente azul para o manto e vermelho ou dourado para a túnica).

            A imagem do Cristo de Óstia (cuja confecção pode ser seguramente datada entre os anos 385 e 394 dC, mais provavelmente c. 390 dC[7]) é, muito provavelmente, a mais antiga representação artística sobrevivente na qual Jesus aparece inequivocamente com o tipo somático que depois se tornaria o usual.  Portanto, pelos finais do séc IV dC uma nova representação de Cristo já havia surgido.  Dessa nova tipologia há ainda dois outros testemunhos, que serão estudados a seguir.

 

III.3.3) O Cristo Entronizado na Abside da Igreja de Santa Pudenciana:

            A mais antiga representação de Jesus numa igreja, na sua iconografia tradicional como o adulto barbado e de cabelos longos, encontra-se no mosaico do Cristo Entronizado na abside da igreja de Santa Pudenciana, em Roma.  Essa igreja está situada dentro do perímetro murado de Aureliano, na rua que nos tempos antigos era denominada Vicus Patricius (“a rua patrícia”, i.e., “nobre”), e hoje é conhecida como a Via Urbana, entre o Viminal e o Esquilino.

            Por tradição, o lugar hoje ocupado pela igreja é associado à antiga mansão do senador Pudente, que teria hospedado São Pedro e São Paulo quando se encontravam em Roma.  Após o martírio dos dois Apóstolos, ao menos algumas dependências da casa teriam passado a ser utilizadas para as reuniões da congregação cristã de Roma, por disposição das duas filhas e herdeiras de Pudente[8], Santa Praxedes e Santa Pudenciana.  Assim reza a tradição, velha pelo menos do séc. IV dC.  Uma observação constante nalguns manuscritos do Liber Pontificalis assevera que, sob o episcopado de São Pio I (c.140-c.155 dC), os banhos de Novato, lá localizados, foram transformados num edifício dedicado às celebrações religiosas cristãs (o manuscrito usa o termo ecclesia, mas, se o fato for verdadeiro, tratava-se de fato dum titulus)[9].

            Escavações realizadas no local, sob a nave e o claustro lateral da igreja, nos anos de 1870, de 1894, de 1928-30 e de 1960, puderam descobrir duas estruturas anteriores: a) uma casa particular, talvez com dois andares, com restos de pavimentos de mosaico num peristilo datáveis do séc. I dC, e com tijolos que exibiam selos dos séculos I e II dC (os mais recentes do ano 129 dC, nas paredes do lado leste); e b) edificações de banhos, numa estrutura posterior, dos meados do séc. II dC, construída sobre a casa; esses banhos, que podem talvez ter sido os “banhos de Novato” citados no Liber Pontificalis[10], possuíam uma sala absidada (um caldarium), e sua planta orientaria a da futura igreja, sendo que a sala absidada das antigas termas norteou a abside da atual igreja.

            Como quer que fosse, parece certo que os antigos banhos já eram utilizados no séc. IV dC (se não antes) como um titulus, denominado justamente titulus Pudentis (“local de reunião de Pudente”), depois denominado ecclesia Pudentiana (“igreja de Pudente”).  Pode ser que “Pudente” fosse o primitivo dono dessas construções, mais especificamente dos banhos, já utilizados para reuniões de fiéis, e que as houvesse legado à igreja romana.  Se era um “senador”, ou se era um descendente do “Pudente” mencionado na 2a carta de São Paulo a Timóteo, se teve realmente duas filhas, Praxedes e Pudenciana, é algo que, em termos estritamente históricos, não há como saber, com os atuais dados disponíveis[11].

            O que se pode afirmar com certeza é que, no ano 384 dC, já havia estabelecida uma ecclesia Pudentiana (“igreja de [Santa] Pudenciana”, ou, mais provavelmente, “igreja de Pudente”) fixa no local, com clero constituído.  Com efeito, conservou-se, por intermédio do estudioso Lélio Pasqualini, contemporâneo do cardeal Barônio, um epitáfio hoje desaparecido, referente a um certo Leopardo, lector de Pudentiana (“leitor [das Escrituras nas cerimônias, ligado ao clero] da igreja Pudenciana”), morto aos 24 anos de idade, sob o consulado de Ricomeres e Clearco (384 dC)[12].

            Um outro Leopardo, quase certamente parente desse finado lector, foi, juntamente com Ilício e Máximo, presbítero da referida igreja.  Eles foram responsáveis por uma total remodelação da mesma, sob o pontificado de São Sirício (384-399 dC).  Dessa época data o mosaico do Cristo Entronizado, na abside.  Com efeito, uma série de blocos marmóreos no interior do templo, com fragmentos de inscrições, ainda vistos na época renascentista, antes das obras efetuadas em 1588-1590 sob o patrocínio do cardeal Enrico Caetani e em 1699-1701 sob o do cardeal Giuseppe Maria Gabrielli (obras que, como muitas outras da espécie, eliminaram uma série de testemunhos mais antigos de várias igrejas romanas, impondo um casquete renascentista, maneirista ou barroco a esses edifícios), permitiram restaurar uma parte da inscrição comemorativa: “ (…) SALVO SIRICIO EPISC(opo) ECLESIAE SANCTAE ET ILICIO LEOPARDO ET MAXIMO PRESBB(yteris) (…)”, ou seja, “… estando vivos [i.e., no tempo de] Sirício, bispo da Santa Igreja [de Roma], e Ilício, Leopardo e Máximo, presbíteros, [tal e qual obra foi efetuada]”[13].

            Mais especificamente, no que concerne ao mosaico da abside, ainda foi possível a Suárez, bispo de Vaison, sob o pontificado de Urbano VIII (1623-1644), copiar a parte do texto (hoje totalmente desaparecido) que originariamente encontrava-se no livro às mãos da imagem de São Paulo Apóstolo e que, em sua época, ainda subsistia, ao menos em parte: “FVND(ata) A LEOPARDO ET ILICIO VALENT(iniano) AVG(usto) ET (nnn) [CO(n)S(ulibu)S PERFECTA HONORIO AVG(usto) IIII ET] EYTICIANO CO(n)S(ulibu)S”, ou seja, “Iniciadas as obras por Leopardo e Ilício sob o (no) consulado de Valentiniano Augusto e (nnn); terminadas sob o 4o consulado de Honório Augusto, com Eutiquiano como colega”[14].

            Do fragmento da inscrição copiada por Suárez, e subsistente ainda em sua época, tem-se que as obras, a cargo de Leopardo e de Ilício (que, como se viu, eram presbíteros em Santa Pudenciana), iniciaram-se num ano em que o Imperador Valentiniano foi cônsul, e terminaram num em que Eutiquiano foi cônsul.  Ora, de acordo com os Fastos, Eutiquiano foi cônsul apenas uma vez, no ano 398 dC, tendo por colega o Imperador ocidental Honório, então no seu 4o consulado.  O Valentiniano em questão é o imperador ocidental Valentiniano II, que exerceu o ofício de cônsul em 376 (com seu tio Valente, Imperador oriental, como colega), de novo em 377 (também com o tio como colega), em 387 (tendo Eutrópio por colega) e em 390 (com Neotério como colega).  Como Leopardo, Ilício e Máximo realizaram suas obras em Santa Pudenciana sob o pontificado de Sirício (384-399 dC), o consulado de Valentiniano a que se referia a inscrição ou foi o 3o (em 387, com Eutrópio) ou o 4o (em 390, com Neotério).

            Portanto, as obras levadas a cabo em Santa Pudenciana pelos referidos presbíteros, incluindo a decoração do edifício e a confecção do mosaico da abside, estenderam-se de 387 (ou 390) a 398 dC, sob o pontificado de Sirício, sendo que a feitura do mosaico, especificamente, talvez se tenha dado mais próxima da última data[15].

            Pode-se agora, já que a sua data de composição foi detalhadamente estabelecida, partir para a descrição do mosaico.  Uma visão geral, bem como um detalhe da figura de Cristo, encontram-se a seguir[16].

           

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            A composição, como um todo, é uma representação escatológica da Jerusalém Celeste, que desce à terra por ocasião da Segunda Vinda, e também é carregada de muitas mensagens e simbolismos.  Cristo, sentado em majestade num trono de ouro ornado de pedras preciosas e pérolas, encontra-se no centro de toda a cena, e a domina.  Logo abaixo dele, e dos dois lados, encontram-se os Doze Apóstolos (os Onze e mais São Paulo); as obras de 1588-1590 fizeram com que as duas últimas figuras do lado esquerdo de quem olha (à direita do Cristo), e a última do lado direito de quem olha (à esquerda do Cristo), fossem destruídas; e várias partes das figuras subsistentes dos quatro Apóstolos no lado direito de quem olha (à esquerda de Cristo), exceto São Pedro, foram também restauradas na mesma ocasião.  Ao lado direito de Cristo (esquerdo de quem olha), São Paulo (de perfil) é coroado pela personificação da Igreja dos Gentios (ecclesia ex gentibus); ao lado esquerdo de Cristo (direito de quem olha), São Pedro (também de perfil) é coroado pela personificação da Igreja dos Judeus (ecclesia ex circumcisione).  Atrás de Cristo, uma visualização da Jerusalém Celeste, em dois níveis: por primeiro um longo pórtico, e acima vários edifícios; talvez estivessem simbolizados os próprios monumentos cristãos contemporâneos erguidos na cidade de Jerusalém (p.ex., a estrutura circular, na parte esquerda de quem olha, poderia representar o Martyrion constantiniano do Santo Sepulcro, ao passo que a estrutura imediatamente à esquerda de Cristo, à direita de quem olha, poderia querer representar o octógono da Eleona no Monte das Oliveiras).  Acima de Cristo, dominando a representação da Jerusalém Celeste, o Gólgota, coroado com uma Cruz de ouro ornamentada de gemas preciosas – símbolo do Sacrifício Expiatório de Cristo e da redenção da Humanidade.  É bem possível que, acima da Cruz, estivesse uma pomba (representando o Espírito Santo) e, acima da pomba, um antebraço e mão em atitude de bênção, simbolizando Deus Pai; nesse caso, o mosaico da abside representaria todas as três Pessoas da Santíssima Trindade.  Nos céus encontram-se os Quatro Animais Alados, que simbolizam os Quatro Evangelistas; da esquerda para a direita, o Homem (São Mateus), o Leão (São Marcos), o Touro (São Lucas) e a Águia (São João)[17] – é a mais antiga representação artística dos Quatro Animais simbolizando os Evangelistas que sobreviveu; o Homem e a Águia estão apertados, por causa das obras do final do séc. XVI, que destruíram a parte mais externa do mosaico (e talvez tenham eliminado as figuras representativas do Espírito Santo e de Deus Pai, acima da Cruz).  No livro que São Paulo tem em mãos estava, originariamente, escrita a dedicatória aos presbíteros Leopardo e Ilício, que Suárez ainda pôde copiar; a inscrição, que em sua época já se encontrava incompleta e fragmentada, como se viu, foi posteriormente substituída, provavelmente nas reformas de 1699-1701.

            Cristo, adulto, com barba, cabelos compridos, na caracterização que hoje é tão familiar, veste uma túnica e um manto dourados; na túnica, as faixas largas, num azul brilhante.  O braço esquerdo sustenta um códice aberto, com a inscrição, original, “DOMINVS CONSERVATOR ECCLESIAE PVDENTIANAE” (“O Senhor, Protetor [ou: Garantidor] da Igreja Pudenciana [ou: de Pudente]”); o braço direito e a mão direita exibem um gesto misto de bênção e de alocução de ensinamento, mesclando misericórdia e autoridade.  O Cristo Entronizado de Santa Pudenciana é retratado como um Imperador, sentado em seu trono, usando vestes douradas, dirigindo-se, benevolente mas com firmeza e autoridade, da Jerusalém Celeste, a Seus Apóstolos, vestidos como senadores (esse detalhe é melhor percebido nos Apóstolos à esquerda de quem olha, que conservaram o desenho original).  O estilo é cuidado e monumental, típico duma arte oficialmente sustentada.  Já se está bem distante dos afrescos das catacumbas!



[1] Os detalhes podem ser obtidos no endereço eletrônico http://www.ostia-antica.org/regio3/7/7-8.htm.

[2] Uma insula (literalmente, “ilha”) era uma parte duma construção coletiva dotada de individualidade jurídica; não era, como muitos supõem, um edifício inteiro de construções coletivas, menos ainda um quarteirão.  A melhor tradução seria “apartamento”, desde que se guardem as devidas proporções.  A uma insula opunha-se uma residência não integrada num prédio coletivo, ou seja, uma casa (domus), termo que pode ser traduzido como “palácio”, ou “palacete”, ou “casa de família de certa afluência”, também guardadas as devidas proporções.  Para a cidade de Roma, sobreviveram duas recensões (conhecidas como a Notitia e o Curiosum) dum cadastro oficial (“Regionário”) de meados do séc. IV dC; com algumas discrepâncias, informam que havia na Cidade Eterna 46.602 insulae e 1.790 domus; também são listados, p.ex., os seguintes itens: 10 basílicas civis, 11 termas, ou banhos públicos, 856 banhos privados, 11 fóruns, 3 teatros, 2 anfiteatros, 2 circos, 28 bibliotecas, 8 pontes, 19 aquedutos, 46 prostíbulos, 144 latrinas públicas, etc..  A Notitia Urbis Constantinopolitanae, talvez compilada c. 447-450 dC, lista para a nova capital 4.388 domus, embora não informe o número de insulae; também lista, p.ex., 14 palácios diversos, 14 igrejas, 8 termas, ou banhos públicos, 153 banhos privados, 4 fóruns, 2 teatros, um circo, ou hipódromo, etc.  O número maior de domus em Constantinopla talvez signifique uma situação social mais equilibrada na nova cidade, com maior presença duma classe média capaz de possuir uma domus para a família.  Talvez o número de insulae andasse à roda de 20.000, ou menos.

[3] Na época, era o funcionário de alto nível encarregado do abastecimento de trigo e de azeite para a cidade de Roma.  Como tal, exercia suas funções, principalmente, em Óstia (o antigo porto de Roma) e na vizinha Porto Augusto (o novo e abrigado porto da Metrópole).  O lento assoreamento dos ancoradouros de Óstia levou o Imperador Cláudio, em 42 dC, a iniciar a construção dum novo porto, denominado “Porto Augusto”, a uns poucos quilômetros ao norte de Óstia, ligado ao curso principal do Tibre por canais artificiais.  A construção foi terminada em 64 dC, sob Nero.  Entre 100-112 dC Trajano ampliou as instalações e os canais, construindo um segundo e magnífico ancoradouro, hexagonal, abrigado.  O conjunto dos dois portos (Óstia e Porto Augusto) distava c. 35 km de Roma.  Óstia era ligada à capital pela via Ostiense; Porto Augusto (ou “Porto”, como era usualmente chamada), pela nova via Portuense.  O progressivo assoreamento dos canais que ligavam Porto ao curso principal do Tibre acabou, ao longo duma lenta decadência, inutilizando enfim a cidade para fins portuários por volta do final do séc. IX dC.

[4] Para Ragônio e seus atos de benemerência há inúmeros testemunhos epigráficos em Óstia, p.ex. AE 1928, 131; CIL XIV, 138, 139, 173 (=CIL VI, 1.760 e 31.924), 4.716 (=AE 1910, 196), 4.717 e 4.718 (=AE 1955, 287).

[5] A ilustração, bem como a seguinte, é retirada do portal sobre Óstia antes mencionado, sendo aqui reproduzida dentro da expectativa do “fair use”, tendo em vista o caráter não comercial deste trabalho.

[6] As vestes de Pedro, Paulo e Moisés nos mosaicos de Santa Constança, como se pode notar, são também as vestes dos senadores: túnica laticlava e toga.

[7] Já que em 385 dC deve ter começado a construção do prédio, e não a sua decoração, e em 394 dC a decoração do prédio construído estava em sua fase final, tendo sido já efetuado o opus sectile das partes superiores das paredes.  É difícil saber precisamente a razão do abandono do edifício; não foram encontrados vestígios de incêndio.  Talvez se possa ligar tal fato aos distúrbios ocorridos por ocasião da usurpação de Eugênio.  Aventou-se a hipótese de que a construção teria sido destruída por pagãos num motim anticristão.  De fato, Eugênio apoiou-se na aristocracia pagã – foi a última tentativa dos pagãos, no Império, de recuperar as rédeas do poder político.  Seu principal general (e, na prática, quem o pôs no trono) foi o mercenário germano (franco) e pagão Arbogastes; seu prefeito pretoriano para a Itália, Ilíria e África foi o aristocrata pagão romano Vírio Nicômaco Flaviano; e o seu prefeito da anona foi o também pagão Numério Projeto.  Uma série de medidas a favor do paganismo foram tomadas, p. ex., a restauração do templo de Vênus e Roma, na capital, a recolocação do altar da deusa Vitória no Senado, e a celebração de festivais pagãos.  Especificamente quanto a Óstia, o prefeito da anona Numério Projeto restaurou, c. 393-394 dC, o templo de Hércules.  Não obstante, contra o argumento dos distúrbios anticristãos há o fato de que nenhum indício de violência, ou, mais especialmente, de incêndio, foi encontrado na Insula VII; o prédio parece ter sido demolido, o que não faz muito sentido, a não ser (e isso é o mais provável) que tenha ocorrido um tremor de terra, o qual teria danificado muitas construções em Óstia, inclusive o templo de Hércules, reparado então pelo prefeito da anona (pagão) Numério Projeto.  As construções da Insula VII, por sua vez, não foram restauradas, nem então e nem depois.

[8] Esse Pudente seria aquele citado na 2a carta de São Paulo a Timóteo, cap. 4o, vers. 21, e teria sido batizado pelos próprios Apóstolos.

[9] Liber Pontificalis, XI, 4: “Por pedido da bem-aventurada Praxedes, ele [Pio] dedicou uma igreja [sic] nos banhos de Novato, na rua Patrícia, em honra de sua irmã [dela, Praxedes], a bem-aventurada Pudenciana.  A esse local de culto Pio ofereceu inúmeras doações, sendo que lá oficiava frequentemente, celebrando o sacrifício do Senhor [i.e., rezando a missa].  Adicionalmente, lá fez construir uma fonte batismal, que com suas próprias mãos dedicou e abençoou, batizando em nome da Trindade muitos que se converteram à fé” (Hic ex rogatu beate Praxedis dedicavit ecclesiam thermas Novati, in vico Patricii, in honore sororis sue sanctae Potentianae [sic], ubi et multa dona obtulit; ubi sepius sacrificium Domino offerens ministrabat.  Inmo et fontem baptismi construi fecit, manus suas benedixit et consecravit; et multos venientes ad fidem baptizavit in nomine Trinitatis).

[10] Fica, contudo, um tanto difícil conciliar as datas: entre o martírio de Pedro e Paulo em Roma, sob Nero (c. 67 dC), quando as filhas de Pudente já deviam ser adultas, ainda que jovens, e a consagração dos banhos, sob Pio I (c. 150 dC) se passaram uns 70 anos, o que faria Praxedes contar com uns 90 anos na ocasião.  Não é intrinsecamente impossível, mas é um pouco forçado.  Isso, e mais o fato de que tal notícia não se encontra em todos os manuscritos do Liber Pontificalis, mas apenas nalguns, mais recentes, lança dúvidas sobre a veracidade da história, tal como narrada.

[11] A igreja, hoje dedicada a Santa Pudenciana, era originariamente (e isso está bem estabelecido) o titulus Pudentis, “local de reuniões de Pudente”; portanto, que houve um Pudente, dono do complexo de banhos, que o doou à igreja nalguma data após os meados do séc. II dC, é certo.  Provavelmente após a Paz da Igreja, os antigos banhos, agora titulus, foram, nalguma medida, remodelados e redecorados (mantendo contudo a estrutura básica das antigas termas, incluindo a abside do caldarium, que fez as vezes de abside duma estrutura semelhante a uma basílica), e passaram duma simples “sala de reuniões” (titulus) para uma “igreja” (ecclesia) – a ecclesia Pudentiana, sendo quase certo que as antigas instalações de água teriam sido reutilizadas como batistério.  A expressão ecclesia Pudentiana tanto pode significar “igreja de [Santa] Pudenciana” (Pudentiana como nome próprio) quanto “igreja de Pudente” (Pudentiana como adjetivo ligado ao substantivo feminino ecclesia – como, p.ex., basilica Traiana, “basílica de Trajano”, ou basilica Liberiana, “basílica de Libério”), sendo que a 2a alternativa configura-se como a mais provável, tendo em vista tanto a história anterior do edifício quanto a própria estrutura da língua latina.  O povo comum, contudo, com o tempo, pode ter interpretado a designação como a 1a alternativa, surgindo assim o nome próprio “Pudenciana”, como o de uma pessoa.  Na falta de mais dados, essa é a interpretação mais plausível.  Os eventos narrados no Liber Pontificalis preservam, assim, algo real (a transformação dos “banhos de Novato” no titulus Pudentis, inclusive com a instalação dum batistério aproveitando as antigas instalações balneárias do edifício), embora, talvez, deslocado no tempo.

[12] Mirae innocentiae adq(ue) eximiae / Bonitatis hic requiescit Leopardus / Lector de Pudentiana qui vixit / ann(os) XXIIII def(unctis) VIII Kal(endís) Dec(embris) / Ricomede et Clearco con(sulibus).  Cf. Giovanni Battista de Rossi, “Bulletino di Archeologia Cristiana”, ano V, nº 4, Roma, julho/agosto 1867, pág. 51.

[13] Cf. “Bulletino di Archeologia Cristiana”, loc. cit., págs. 51-53; também Marucchi, “Christian Epigraphy”, pág. 203, inscrição 211.

[14] Cf. “Bulletino di Archeologia Cristiana”, loc. cit., págs. 53-55.

[15] Outra inscrição, também desaparecida, abaixo do mosaico da abside, recordava ulteriores obras no tempo do papa Santo Inocêncio I (402-417), sob os mesmos Leopardo, Ilício e Máximo: SAL(vo) INNOCEN[tio episcopo Ili]CIO MAXIMO ET [nnn] / PRE(sby)TERIS LE[opardus presb(yter) sumptu] […].  Por isso, alguns aventam a possibilidade de o mosaico da abside datar dessa época.  No entanto, a inscrição constante no próprio mosaico, vista e copiada ainda por Suárez, é bastante clara no que diz respeito ao fato de que tal obra foi efetuada sob o pontificado de Sirício.  As obras do tempo de Inocêncio poderiam ter sido de restauração de elementos decorativos do edifício, provavelmente se seguindo ao saque de Roma pelos visigodos de Alarico (410 dC).

[16] As ilustrações foram tomadas do portal www.paradoxplaces.com, sendo aqui reproduzidas dentro da expectativa do “fair use”, tendo em vista o caráter não comercial deste trabalho.

[17] Segundo a associação mais aceita, a de São Jerônimo, que consta no início de seu Comentário (“prólogo”) a Ezequiel.  Santo Ireneu de Lião (“Contra os Hereges”, livro III, cap. 11, par. 8o) e Santo Agostinho (“Harmonia dos Evangelhos”, I, 6) propuseram outras associações.  Os Quatro Animais aparecem na visão de Ezequiel, capítulo 1o, versículo 10, bem como no Apocalipse, cap. 4o, versículo 7o.  Santo Ireneu foi o primeiro a ligar os Quatro Animais da visão de Ezequiel (repetida no Apocalipse) aos Quatro Evangelistas e seus Evangelhos, elaborando o argumento de que tal simbologia garantiria o fato de haver quatro, e apenas quatro, Evangelhos genuínos, rejeitando todos os demais como espúrios.

Uma resposta a “ESTUDO DA APARÊNCIA FÍSICA DE JESUS – PARTE 3”

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