Resposta ao Prof. Pinheiro Martins com referências iniciais a Pedro de Campos e a seu trabalho sobre a existência de Públio Lentulus/Emmanuel, guia de Chico Xavier

Esse artigo do Sr. José Carlos Ferreira Fernandes é uma resposta a alguns comentários feitos pelo Prof. Pinheiro Martins sobre sua pesquisa quanto à inexistência de Públio Lentulus. Na resposta já são fornecidas críticas ao livro “Lentulus – Encarnações de Emmanuel – Inquirição Histórica”, de autoria de Pedro de Campos, que busca defender a existência de tal personagem, mas, como se verá, há diversos problemas – aparentemente insolúveis – em tal defesa.

As Delícias da Pesquisa – Considerações ao Prof. Pinheiro Martins 

1. Amenidades Introdutórias: 

Prezado prof. Pinheiro Martins:

É com grande prazer que, a partir de agora, venho a tecer algumas considerações sobre sua última mensagem, referente a meu texto “Limites da História”, neste “blog” (ele mesmo uma reflexão acerca de ponderações suas). Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que não sou formado em História, nem sou professor de História, nem tenho mestrado em História (muito menos doutorado, como alguns outros andaram inadvertidamente espalhando…). Bem, fiz um curso “ginasial” e “colegial” (como se costumavam denominar) muito bom, e até acima da média, numa instituição federal de tradição e de renome, em cujos quadros (na época) se entrava exclusivamente mediante aprovação em concorridos testes, o Colégio Pedro II – minha verdadeira alma mater. Esse curso instilou em mim tanto o prazer pela precisão matemática e pela exatidão das figuras, das construções e das perspectivas bi e tridimensionais (ainda me lembro daquelas aulas de Álgebra, de Desenho Geométrico e de Geometria Descritiva…) quanto o amor pelos clássicos, pela investigação e pesquisa minuciosas, e pela História. Duas vertentes que me acompanham até hoje, para o bem e para o mal. E que também me brindou com um título (bem pomposo, aliás), “bacharel em Ciências e Letras”, que cito muito mais com carinho, e mesmo com saudades daqueles tempos tão bons, do que com vaidade. Mas, de qualquer modo, em termos estritamente formais, não sou um historiador; tento apenas, com o melhor de minhas forças, ser, nesse campo, um pesquisador cuidadoso.

Isso, é claro, para muitas pessoas de mente pequena, que idolatram os títulos mas não se importam com o conteúdo e nem com a solidez dos argumentos (provavelmente por não serem capazes de contrapor argumentos a argumentos, e fatos a fatos), é razão suficiente para desqualificação, já que, para seus cérebros microcéfalos, só historiadores poderiam escrever sobre História… Azar o delas, sem dúvida, mas, infelizmente, de nossa sociedade também, afogada, ainda hoje, num corporativismo retrógrado, apoiado numa “cartolatria” asfixiante, com os pseudo-sábios se prostrando diante de títulos, diplomas e “canudos”, como se esses artefatos, por si apenas, fossem os portadores de conhecimento e de sabedoria. Talvez, tendo em vista o formato de tais documentos, alguma necessidade de adoração fálica dessas mentes perturbadas possa explicar isso…                         

Claro, não há nessas minhas observações nenhum aviltamento à busca da qualificação técnica formal, seja no que for. Eu mesmo possuo vários “canudos”, e deles tenho muito orgulho. Mas não creio que sejam as únicas maneiras de se obter conhecimento, e, mais importante, não creio que me ponham como que num passe de mágica numa posição “superior” em relação aos “leigos”, desqualificando automaticamente o fato de outros, “descanudados”, poderem se mostrar tão ou mais “proficientes” do que eu. O que mais nos pode limitar é o embotamento intelectual, não a posse (ou a ausência de posse) de “certificados”. Quanto a isso, a instituição na qual trabalho, felizmente, é exemplar, e digna dos maiores elogios (talvez por causa disso esteja entre as poucas reconhecidas “ilhas de excelência” da administração pública): pessoas com várias formações, dos mais “técnicos” aos mais “humanistas”, labutam lado a lado, atacando os mesmos problemas – e problemas difíceis. Claro, isso deve ser um verdadeiro “horror” para alguns dos nossos mais empedernidos cartólatras…

Bem, peço-lhe desculpas por esse pequeno desabafo, que não se dirige, em absoluto, à sua pessoa. Mas, enfim, meu caro professor, o importante nisso tudo é que abdico do tratamento “professor”.

Meu texto (“Limites da História”), ele mesmo resposta a um seu “post” anterior, me foi de feitura agradável, porque (apesar de alguns pontos não totalmente “alinhados”, e de algumas, por assim dizer, “farpas”, aliás de ambos os lados…) suas considerações foram, no conjunto, muito interessantes, válidas, e merecedoras de reflexão. Claro, meu texto foi “extenso” e “minucioso”, porque essa é a minha característica. Há nisso vantagens e desvantagens; muitas vezes, os leitores podem talvez se sentir perdidos nas digressões, e, até mesmo, desencorajados de seguirem adiante, pela extensão e pelos detalhes apresentados, mas eu me permito continuar assim, já que não escrevo tais textos com vistas a qualquer tipo de tietagem, ou de retorno financeiro e material, mas sim, principalmente, para meu próprio deleite. Ou seja, mesmo quando respondo a alguém, escrevo de modo a me sentir, eu mesmo, convencido pela resposta. Escrevo para mim mesmo, com o grau de detalhe que gostaria de ver se aquele texto tivesse sido escrito por um terceiro, respondendo a uma dúvida minha.

Portanto, dependendo das circunstâncias, textos ou respostas minhas podem ser bastante longos, ou então demorar muito (ou mesmo as duas coisas). Paciência. Aparecerão quando EU sentir que estão bons, quando ME satisfizerem; e mais, quando o grau de dúvida que me restar acerca dos assuntos tratados for de tal modo pequeno que eu não hesite em defender minhas conclusões com toda a ênfase necessária.

Como o sr., também achei interessante (se não os textos, ao menos o assunto) a discussão recente sobre o livre arbítrio, e me senti tentado mesmo a participar do debate (para mim, existe o livre arbítrio, e toda a celeuma se prende à confusão acerca do uso das metodologias apropriadas para o estudo dos temas; não se pode reduzir um assunto filosófico a um esquema cientificista-materialista, simplesmente porque tal esquema não tem condições de explicar, filosoficamente, nada); mas isso terá que ficar para outra ocasião, já que eu teria de me desviar de obrigações já assumidas perante este “blog” – e que estão em andamento, e em bom andamento.

2. Lêntulo na “Lata de Lixo”: 

A leitura de suas últimas considerações, em resposta a meu “Limites da História”, me fez ver que nossas diferenças (que existem) são muito menores do que talvez venham a parecer inicialmente; provavelmente nos tenhamos ambos expressado, nalgumas ocasiões, em termos por demais “veementes” – ao menos, talvez EU me tenha expressado assim, e levado suas ponderações, professor, para limites aos quais elas não tencionavam, originariamente, chegar. Se foi isso, então somente me resta pedir-lhe que desculpe este diletante pesquisador, e que nele releve o entusiasmo pelo tema.

Nossas diferenças, então, parecem ser mais de ênfase do que de conteúdo, e passo a tecer alguns comentários a sua última mensagem.

O sr. fala em “conceder o benefício da dúvida” acerca da carta de Lêntulo, a fim de não jogá-la “na lata de lixo” sem mais nem menos. Sem dúvida, prof. Pinheiro Martins, a prudência é sempre necessária, mas é interessante verificar que, mesmo antes de um (suposto) espírito-guia chamado “Emanuel” reivindicar ter sido, outrora, essa personagem, o próprio consenso histórico, após muito estudo, já havia feito justamente isso. Num de meus textos neste “blog”, “Resposta aos Argumentos mais Comuns dos Espíritas sobre o Livro ‘Há Dois Mil Anos’, de Chico Xavier”, citei, à guisa de exemplo, três fontes gerais de consulta cronologicamente anteriores ao “affair” Emanuel (e que, portanto, não teriam nenhum interesse em “denegrir” o médium mineiro), que já consideravam o referido documento como apócrifo (no sentido de “falso”, “forjado”), e seu autor como inexistente; eram fontes gerais de consulta, todas conceituadas e representando o “estado da arte” consolidado dos estudos histórico-bíblicos na ocasião (início do séc. XX):

 a) o verbete “Publius Lentulus”, da Catholic Encyclopaedia, edição de 1913 (disponível, aliás, no endereço http://www.newadvent.org/cathen/09154a.htm);

Publius Lentulus is a fictitious person, said to have been Governor of Judea before Pontius, and to have written the following letter to the Roman Senate (…) The letter of Lentulus is certainly apocryphal: there never was a Governor of Jerusalem; no Procurator of Judea is known to have been called Lentulus, a Roman governor would not have addressed the Senate, but the emperor, a Roman writer would not have employed the expressions, "prophet of truth", "sons of men", "Jesus Christ". The former two are Hebrew idioms, the third is taken from the New Testament. The letter, therefore, shows us a description of our Lord such as Christian piety conceived him.

Públio Lêntulo é uma personagem fictícia, que teria sido governador da Judéia antes de Pôncio [Pilatos] e escrito a seguinte carta ao Senado romano (…) A carta de Lêntulo é certamente apócrifa: não houve nenhum “governador de Jerusalém”; nenhum procurador da Judéia chamado Lêntulo é conhecido; um governador romano [da Judéia] não teria endereçado [sua correspondência] ao Senado, mas ao Imperador; um escritor romano não usaria expressões como “profeta da verdade”, “filhos dos homens”, “Jesus Cristo” [que são utilizadas na carta]. As duas primeiras são hebraísmos, a terceira é tirada do Novo Testamento. A carta, portanto, mostra uma descrição de Nosso Senhor tal como a piedade cristã [posterior] a concebeu.

  b) o verbete sobre os Lêntulos constante em La Grande Encyclopédie (Paris, H. Lamirault et Cie. Éditeurs, publicada entre os anos 1886 e 1902), tomo 22, pág. 18, que, após a enumeração dos Lêntulos históricos, explicitamente assevera o seguinte:

Le Publius Lentulus, prédécesseur supposé de Pilate en Judée, auquel on a atribué une lettre au Sénat décrivant la physiognomie de Jésus-Christ, n’as pas de caractère historique.

O Públio Lêntulo suposto predecessor de Pilatos na Judéia, ao qual se atribui uma carta ao Senado em que se descreve a fisionomia de Jesus Cristo, carece de existência histórica.

c) o Dictionnaire de la Biblie, de F. Vigouroux et al., Letouzey & Ané Éditeurs, Paris, 1908, 4o volume, cols. 167-172, s.v. “Publius Lentulus”, que expressa o mesmo parecer.

Publius Lentulus: personnage immaginaire auquel on attribué une lettre apocryphe décrivant la personne de Notre Seigneur. Il est pensé avoir été gouverneur de la Judée, avant Ponce Pilat, et avoi écrit la lettre qui suit au Sénat romaine (…)L’Epistula Lentuli se trouve en manuscrit dans de nombreuses bibliothèques (…) Elle a eté souvent réimprimée depuis, en particulier dans plusieurs collections de livres apocryphes du Nouveu Testament. L’auteur de cette lettre s’était visiblement proposé de satisfaire la pieuse curiosité des fidèles, avides de détails sur la personne de Notre-Seigneur (…) 

La lettre de Lentulus est une composition apocryphe; la caractère apocryphe de cette lettre est indubitable. Les copistes savent trop quel titre donner à son auteur prétendue; ce titre varie dans la plupart des manuscrits qu’on en connait; les uns l’appelent “proconsul”, d’autres gouverneur ou “praeses Hierosolymitanorum”, etc. Leur embarras provient de ce qu’il n’y a jamais eu à Jérusalem ni en Judée de gouverneur de nom Lentulus (…) 

D’ailleurs, un Romain n’aurait jamais pu employer plusieurs des expressions qu’on lit dans la lettre: “propheta veritatis, “filii hominum”; ce sont là des hébraïsmes, et le dernier est emprunté au Ps. XLIV, 3. La dénomination de Jesus Christus trahit aussi une époque postérieure et est emprunté au Nouveau Testament. Enfin, sans relever d’autres détails, notons que, si elle avait été écrite par um procurateur de Judée, elle aurait été adressée non au Sénat, mais à l’empereur, parce que la Syrie, dont faisait partie la Judée, était une province impériale, et non une province sénatoriale (…) 

Aucun ancien écrivain ecclésiastique n’a parlé de la lettre de Lentulus, quoiqu’ils aient si souvent cité les autres écrits apocryphes connues de leur temps

Públio Lêntulo: personagem imaginária, à qual se atribui uma carta apócrifa descrevendo as feições de Nosso Senhor. Pensa-se ter sido governador da Judéia, antes de Pôncio Pilatos, e ter escrito a carta seguinte ao Senado romano (…) A carta de Lêntulo chegou-nos em vários manuscritos, presentes em inúmeras bibliotecas (…) Foi reimpressa várias vezes depois, particularmente em numerosas coleções de apócrifos do Novo Testamento. O autor de tal carta propunha-se claramente a satisfazer a curiosidade piedosa dos fiéis, ávidos de detalhes acerca da fisionomia de Nosso Senhor (…) 

A carta de Lêntulo é uma composição apócrifa; o caráter apócrifo de tal carta é indubitável. Os copistas mal sabiam ao certo que titulatura utilizar para seu pretendido autor, que varia, na maior parte dos manuscritos conhecidos, quer de “procônsul”, quer de “governador”, ou de “chefe dos Hierosolimitanos”, etc. Seu embaraço provinha de que jamais houve em Jerusalém, ou na Judéia, um governador de nome Lêntulo (…) 

Ademais, um romano jamais empregaria algumas das expressões que constam na carta; “propheta veritatis” [profeta da verdade], “filii hominum” [filhos dos homens] – são hebraísmos, e a última expressão é tomada emprestada do Salmo 44, vers. 3. A denominação de “Jesus Cristo” trai também uma época posterior, e é um empréstimo do Novo Testamento. Enfim, sem entrar noutros detalhes, note-se que, se tal carta tivesse mesmo sido escrita por um procurador da Judéia, estaria endereçada não ao Senado, mas ao Imperador, porque a Síria, donde fazia parte a Judéia [como apêndice administrativo], era uma província imperial, e não uma província senatorial (…) 

Nenhum escritor eclesiástico antigo menciona a carta de Lêntulo, apesar de mencionarem inúmeros outros escritos apócrifos, conhecidos em seu tempo

E essa continuou (e continua) sendo a posição dos historiadores; desde então, se algo ocorreu, foi no sentido de reforçar ainda mais esse consenso. Quando o documento é mencionado pelos especialistas que dele se ocuparam ou ocupam, mesmo recentemente, sempre se informa tratar-se dum apócrifo, duma falsificação forjada na Idade Média (as datas usualmente fornecidas para a origem do texto e/ou do autor, e que se constituem em dois estágios distintos da formação do documento, situam-se entre os sécs. XIII e XV; de fato, a origem do texto do documento, como se verá, situa-se nos meados do séc. XIV, e a sua atribuição a um “Lêntulo”, do primeiro quartel do séc. XV).

Apenas para citar alguns exemplos: a) por Cora Elizabeth Lutz, em seu ensaio “The Letter of Lentulus Describing Christ”[1]; b) por Giles Constable, em “Forged Letters in the Middle Ages”, onde a “epistula Lentuli” aparece inequivocamente como sendo uma dessas “forged letters”; c) por Zbigniew Izydorczyk, em “The Medieval Gospel of Nicodemus: Texts, Intertexts and Contexts in Western Culture”; d) por Irena Backus, em “Historical Method and Confessional Identity in the Era of Reformation [1378-1615]”; e) por Sabrina Corbellini, em seu “paper” “The Italian ‘Quattuor Unum’ – Holy Writ and Lay Readers, na Analysis of Tuscan Gospel Harmonies”, apresentado no “workshop” “Retelling the Bible – Literaty, Historical and Social Contexts”, realizado em Praga em 2008, sobre a literatura apócrifa cristã). Várias vezes, a peça é francamente descrita como “the letter of the Pseudo-Lentulus”.

O mesmo se repete em coleções de apócrifos do Novo Testamento, como, p.ex., na de James Keith Elliot[2]:

This thirteenth-century text is given the form of a letter purporting to have been written by a Roman oficial, Lentulus, at the time of Tiberius Caesar. This detail is found in some (but not in the oldest) of the manuscripts. The original language is Latin, but a Syriac Letter of Lentulus was found in the Mingana collection (…). Persian and Armenian translations also exist. The text became famous because of its description of Christ’s physical appearance, which probably had a direct influence on later icnongrapy.

Esse texto do séc. XIII tem a forma duma carta pretensamente escrita por um oficial romano, Lêntulo, no tempo de Tibério César. Esse detalhe [acerca da autoria] encontra-se nalguns manuscritos, mas não nos mais antigos. A língua original [do documento] é o latim, mas uma carta de Lêntulo em siríaco foi encontrada na Coleção Mingana. O texto tornou-se famoso por causa de sua descrição da aparência física de Cristo, a qual provavelmente influenciou a iconografia posterior.

Mais exatamente, o documento surgiu na primeira metade do séc. XIV, e suas duas mais antigas testemunhas são: a) a descrição da figura de Cristo (“physiognomia Christi”) constante no Prólogo da “Vida de Cristo” (“Meditações sobre a Vida de Cristo”) de Ludolfo o Cartuxo (c.1300-1378), obra composta por volta de 1350, e b) a descrição praticamente verbatim constante no opúsculo “Ex Gestis Anselmis colliguntur Forma et Mores Beatae Mariae et eius Unici Filii Iesus”, da mesma época, e que seria anexado à edição impressa das obras de Santo Anselmo da Cantuária (Nuremberg, 1491). Note-se que em NENHUM desses dois testemunhos mais antigos o texto é atribuído a um autor específico; foi apenas a partir do 1o (ou talvez 2º) quartel do séc. XV que a “physiognomia Christi” assim descrita por Ludolfo e pelo pseudo-Anselmo ganhou vida própria e forma de “carta” (quer endereçada ao Senado, quer ao Imperador, sendo esse Imperador quer Augusto, quer Tibério…), e passou a ser explicitamente atribuída a um (até então NUNCA citado, e totalmente desconhecido) “Públio Lêntulo”, “oficial nas partes da Judéia” (o mais antigo testemunho obtido até ao presente dessa forma “clássica” da carta dataria de 1421 ou 1422, de acordo com o assim denominado Segundo Manuscrito de Iena; o seguinte, ao que parece, é de 1436, e consta no Códice 437-439 da Abadia de Monte Cassino, um Evangeliário da 1a metade do séc. XI, iluminado, quase certamente de origem anglo-saxã, a cuja última página a carta foi anexada, em caligrafia gótica do séc. XV e com a indicação explícita da data antes mencionada: Anno domini 1436. Publius lentulus in iudea preses salutem dicit tiberio cesari senatiu populoque romano. Apparuit temporibus nostris et adhuc est…)[3].

Portanto, caro prof. Pinheiro Martins, muito antes (e independentemente) de um José Carlos “sem canudo” ter dito que Públio Lêntulo, para todos os fins práticos e racionais, nunca havia existido, e que apócrifa (falsa, forjada) era a sua carta, essa era a conclusão, e conclusão sólida, e documentada, e detalhada, e antiga, e sedimentada, do próprio consenso histórico, justamente dos portadores dos “canudos” e dos “títulos”. Os que não concordam com isso, então, que apresentem argumentos para sustentar essa convicção – se possível, embasados também por evidências em manuscritos, e por estudos efetuados por portadores de “canudos” e de “títulos”, já que gostam tanto desses fetiches. Mas não apresentaram, e não apresentam, e, provavelmente, não apresentarão, porque, sim, a carta de Lêntulo já foi jogada na lata de lixo da História, há bastante tempo, e não foi por mim. Qualquer pessoa minimamente racional, que investigue a situação com isenção, seja ela crente ou céptica, espírita ou cristã, chegará a essa conclusão. A única coisa que impede os espíritas kardecistas brasileiros (ao menos, vários dentre eles) de se renderem a essa evidência esmagadora é, na minha opinião, o fato de que todo um imponente edifício foi erguido, ao longo de décadas, em cima desse equívoco (claro, somente num país culturalmente subnutrido como o Brasil isso seria possível, e na escala a que se chegou): um edifício que dá muito poder, e influência, e prestígio, e recursos, e consolo, e sentido de vida, a vários “encarnados”; um edifício que de tal modo permeou não só o tecido do Espiritismo, mas também o de outras correntes (se o sr. me permite a comparação, como um matapau que sufoca, a pouco e pouco, a árvore que lhe serve de suporte) que, agora, admitir a situação real, quer para si próprios, quer para os outros, é virtualmente impossível… too big to fail… A meu ver, é por isso, meu caro professor, E SOMENTE POR ISSO (não por terem qualquer tipo de argumento defensável), que “alguns” sempre negarão, e que sempre recorrerão a falácias, a calúnias, a ataques “ad hominem”, e a todo o tipo de manobras diversionistas, para sustentar o insustentável. Há os que farão isso para defender um “status quo” que lhes é favorável; e há os que farão isso simplesmente para defenderem uma crença consoladora que lhes dá, ao menos aparentemente, algum sentido a suas vidas[4].

Obviamente, nada disso precisaria ocorrer, se, NO INÍCIO DE TUDO, a Federação Espírita Brasileira, ou alguns dos mais ilustres dentre os intelectuais espíritas, tivessem feito uma simples e primária pesquisa acerca daquele tal “Públio Lêntulo”. Das três referências que citei no meu “Resposta aos Argumentos mais Comuns…”, pelo menos duas (a da “La Grande Encyclopédie” e a do dicionário bíblico de Vigouroux, então uma obra de referência bem conhecida para estudos bíblicos em geral) encontravam-se disponíveis no Brasil em 1938 – e eu mesmo as manuseei, a ambas, na Biblioteca Nacional, na Cinelândia, Rio de Janeiro, depois de poucas horas de busca no setor de obras de referência. Mas talvez não houvesse interesse em se procurar a verdade – afinal, se a crença é bonita e consoladora (e, quanto mais melosa, melhor), para quê a Verdade? Aliás, com “Públio Lêntulo”, quem precisa da Verdade?[5] 

A todas essas evidências verdadeiramente esmagadoras (e, convém mais uma vez insistir, elencadas pelos especialistas, pelos “encanudados” tão endeusados por alguns, e que eu, as mais das vezes, apenas pesquisei, compilei e elenquei), os defensores da existência de “Lêntulo” (e, claro, do fato de que essa personagem FICTÍCIA teria sido uma das encarnações passadas do “espírito-guia” “Emanuel”[6]) nada podem opor – e NADA DE CONCRETO, efetivamente, opuseram até agora. De fato, recusam-se a analisar a questão como ela deve ser analisada, ou seja, a partir de fatos concretos e de pontos específicos, insistindo, ao contrário, numa série de manobras diversionistas, as quais, todas elas, visam encobrir sua incapacidade de opor argumentos a argumentos. Sua estratégia (às vezes, até mesmo inconscientemente) é desviar a questão para os campos dos ataques pessoais, dos subterfúgios, dos argumentos generalistas e erísticos.

Dizem, p.ex., que a metodologia empregada em minhas pesquisas é falha, mas não dizem onde ela é falha, por quê é falha, e como então se deveria proceder. Argumentam que não pode haver certeza dos fatos, quando o que se tem (como, aliás, creio que ficou patente ao longo do resumo apresentado neste próprio texto) é um conjunto enorme, consistente e coerente de elementos mais do que necessários para um altíssimo grau de certeza acerca da inexistência de “Lêntulo” e de sua carta, a par da ausência de elementos correspondentes que, mesmo levemente, pudessem confirmar a tese oposta; procuram desqualificar, de mil maneiras possíveis, o pesquisador, já que, assim, não precisam se preocupar com a análise dos argumentos apresentados, e nem em apresentar, eles próprios, contra-argumentos; apelam para a “bondade” de Xavier, ou para a “qualidade” e “verdade” da “mensagem” veiculada, como se essas coisas estivessem sendo objeto de análise, ou como se elas fossem, por si mesmas, garantia da autenticidade da existência de “Lêntulo” e de sua carta (os bons também se enganam, não? E mensagens “belas” podem ter como base uma ficção, não?); afirmam que somente com “ajuda espiritual” Xavier, um pobre-coitado semi-analfabeto, poderia escrever tanto, e com tantos detalhes, quando deliberadamente não levam em conta: a) as características do próprio Xavier, de seu esforço e de sua sede de conhecimentos, como se apenas via instrução formal as pessoas pudessem adquirir conhecimentos e/ou sabedoria[7]; b) a limitação dos conhecimentos a que o próprio Xavier poderia ter acesso, e que explica os erros (históricos e factuais) existentes nas suas psicografias do “ciclo de Emanuel”, mais especialmente “Há Dois Mil Anos”, que ocorrem justamente quando o “médium” teria de mostrar conhecimento muito específico, além do “usualmente obtenível” em sua época e/ou lugar – ou seja, justamente quando “Emanuel”, o “senador Lêntulo”, o contemporâneo de Cristo, a testemunha ocular de tudo o que narra (e que não seria ficção…), teria de lhe fornecer dados que provassem suas alegações[8]… Enfim, de concreto, de específico, diretamente relacionado aos argumentos apresentados, nada conseguem apresentar…

E isso tudo, claro, sem se levar em conta um fato primordial, e diretamente referente ao ônus da prova: não sou eu (ou qualquer outro que pense como eu) que tenho que provar que “Lêntulo” não existiu – esse é o consenso histórico, esse é o “estado da arte”; SÃO OS ESPÍRITAS QUE TÊM DE PROVAR QUE “LÊNTULO” EXISTIU, E QUE FOI UMA DAS ENCARNAÇÕES PASSADAS DO “ESPÍRITO-GUIA” “EMANUEL”. Pois o ônus da prova reside em que afirma; e, MUITO ANTES DE MEUS QUESTIONAMENTOS, muito antes deles, na longínqua década de 1930, os espíritas kardecistas (ao menos, uma grande parte dentre eles), CONTRARIANDO O CONSENSO HISTÓRICO JÁ ENTÃO FIRMEMENTE ESTABELECIDO, o consenso dos “ENCANUDADOS”, ao endossar “Emanuel”, afirmaram ipso facto: a) que existiu um “Públio Lêntulo”, contemporâneo de Cristo, que havia escrito ao Imperador (ou ao Senado?) um informe sobre Cristo; e b) que “Emanuel”, o espírito-guia de Francisco Cândido Xavier, tinha sido, numa de suas encarnações passadas, precisamente esse “Lêntulo”, bisneto de Lêntulo Sura, em “missão” na Judéia, membro do conselho de guerra de Tito, morto em Pompéia na erupção do Vesúvio, etc., etc., etc. E mais: não apenas afirmaram, mas ergueram todo um edifício magnífico de doutrina, de ação e de persuasão em cima desses pés de barro. Eu pergunto: onde se encontram os estudos (solidamente embasados, tecnicamente impecáveis, inclusive respaldados pelos pareceres dos “encanudados”) que demonstrem, inequivocamente: a) que “Lêntulo” existiu?; e b) que “Emanuel”, de fato, foi esse “Lêntulo”? Onde estão? Minha pergunta é retórica, e a resposta, meu caro professor, que eu mesmo posso fornecer, é simples: NÃO EXISTEM. Creio que apenas muito recentemente o sr. Pedro de Campos resolveu cobrir essa lacuna (só isso já faz com que tenha o meu respeito). Mas disso falarei depois.

Responder a esses “ataques diversionistas” é simplesmente fortalecê-los, e contribuir para afastar a discussão de seu verdadeiro cerne – a apresentação de evidências sólidas e historicamente embasadas para a existência de “Lêntulo”, e para o fato de que “Emanuel” foi, efetivamente, numa de suas encarnações, essa personagem. Portanto, venho optando por simplesmente ignorar tais farpas; se houver indagações (ou contestações) específicas, e fundamentadas, terei sempre o maior prazer em as considerar, em as investigar e, eventualmente, se for o caso, em admiti-las como verdadeiras, e fazer as correções que se fizerem necessárias em meus estudos (como já fiz, aliás, e qualquer um pode verificar isso, no caso do duplo gentílico “Sulpício Tarquínio”, em meu texto “Os Nomes das Personagens…”, parte II). Eu não me escondo atrás de “belas mensagens”.

Sobre a questão “Lêntulo” x Tácito (ou Cássio Dião), minha única intenção foi tentar deixar claro que se tratam de duas situações bem distintas. Não se pode, em absoluto (a meu ver), e no que pesem as eventuais incertezas que sempre estarão presentes, comparar as evidências existentes acerca das obras de Tácito, ou de Cássio Dião, bem como a fidedignidade das informações nelas constantes (em linhas gerais ao menos, e com as devidas precauções, claro…) com o “fake” que é a “epistula Lentuli”. Creio que tenha deixado isso claro; talvez tenha sido muito enfático nalgumas ocasiões, mas me parece que meu ponto-de-vista foi, quanto a isso, bem passado.

3. Autógrafos Perdidos e Manuscritos Tardios: 

Por outro lado, o sr. assevera, prof. Pinheiro Martins, acerca dos manuscritos sobreviventes de Tácito, que “a mudança de datas não faz muita diferença”, já que 800 anos teria sido um tempo demasiado grande entre os autógrafos e as mais antigas cópias disponíveis. Sem dúvida, mas temos que conviver com isso, e não só no que diz respeito a Tácito. Porque, afora alguns achados esporádicos de papiros nos areais egípcios, o “lapso” entre os autógrafos dos textos dos autores clássicos greco-romanos e “as mais antigas cópias” sobreviventes mais ou menos completas é de muitos séculos mesmo, e, em geral (a não ser no caso de Homero, onde são de uso os inúmeros testemunhos papirológicos do Egito – as obras homéricas, e, até certo ponto, alguns dos oradores áticos, são um caso à parte), o quadro não é muito diferente do que se viu para Tácito, ou para Dião. Apenas à guisa de exemplo: os mais antigos manuscritos sobreviventes (completos ou quase) da obra filosófica de Platão (427-347 aC), no original em grego, são o famoso Bodleiano-Clarkiano 39 (datado de 895/96 dC)[9] e o Parisino 1807 (séc. IX-X dC); para Aristóteles (384-322 aC), nas mesmas circunstâncias, os mais antigos testemunhos sobreviventes são o Marciano 201 (datado de 955 dC), o Laurenciano 81.11 (séc. X dC), o Parisino 1741 (séc. X-XI dC) e o Parisino 1853 (séc. X-XI dC); para as obras de Júlio César (100-44 aC), os mais antigos são o Amstelodamense 81 (séc. IX-X dC) e o Parisino 5763 (séc. IX dC). Portanto, uma diferença da ordem de 800 a 1.300 anos… E essa lista poderia ser estendida tanto quanto se quisesse, dentro, mais ou menos, do mesmo padrão, já que, após a Antiguidade, o período mais antigo em que se reiniciaram as cópias de obras clássicas (e do qual datam, usualmente, os mais antigos espécimes sobreviventes) foi a “Renascença Carolíngia” no Ocidente (mais ou menos ao longo da primeira metade do séc. IX dC, cobrindo a parte final do reinado de Carlos Magno e o governo de Luís I o Piedoso) e a “Renascença Macedoniana” em Bizâncio (mais ou menos a 2a metade do séc. IX dC, após a superação da crise iconoclasta, cobrindo basicamente os reinados de Basílio I o Macedônio, 867-886 dC, e de Leão VI o Sábio, 886-912 dC). O “normal” que se pode esperar para um escritor greco-romano que tivesse vivido no início da era cristã é que apresente um lapso duns 800 a 900 anos entre seus autógrafos e os mais antigos espécimes mais ou menos completos sobreviventes (isso, se algo sobreviver…). Tácito (e Cássio Dião) não estão tão mal assim, “ajustam-se ao padrão”…

Curiosamente, é para os textos bíblicos (especificamente, para o Novo Testamento) que se têm os MENORES lapsos de tempo nos espécimes sobreviventes. Não levando em consideração os papiros egípcios (que, embora possam nos fazer recuar até ao primeiro quartel do séc. II dC, portanto praticamente a uma época pós-contemporânea aos autógrafos, são forçosamente de natureza fragmentária), mas tomando apenas os grandes unciais que preservaram todo, ou virtualmente todo, o texto do Novo Testamento, o Códice Sinaítico e o Códice Vaticano remontam ao séc. IV dC; o Alexandrino, o Efremiano e o de Beza, ao séc. V dC – isso para citar apenas os mais antigos, já que as “renascenças” carolíngia e macedoniana também tiveram como conseqüência a produção de vários manuscritos bíblicos. Portanto, o lapso de tempo, para o Novo Testamento, entre os autógrafos e os mais antigos testemunhos completos, ou quase, é da ordem de 300 a 400 anos, e mais, COM VÁRIOS TESTEMUNHOS DE TEXTOS COMPLETOS E/OU CORRIDOS. Se formos seguir critérios estritamente “racionais” e “materialistas”, calcados exclusivamente em evidência empírica, devemos ter muito mais confiança na fidedignidade (em relação aos autógrafos) dos textos neotestamentários do que na dos demais da época clássica greco-romana…

Mas mesmo esses “muitos séculos” para os textos clássicos em geral se comparam bem favoravelmente à situação da “carta de Lêntulo”: ABSOLUTAMENTE NADA em termos de texto, ou de citações, ou mesmo de alusões, em 1.300 anos; NENHUMA MENÇÃO DO NOME DO AUTOR em 1.400 anos.

O sr. menciona também, e acertadamente, que os lapsos de tempo verificados entre os autógrafos e os mais antigos espécimes sobreviventes podem ensejar adulterações consideráveis nos textos. Plausível. Mas as adulterações tinham bem mais chances de ocorrer nos primeiros tempos após a confecção dos autógrafos do que séculos depois, quando o “ambiente” da composição, bem como os “interesses”, a que serviam, implícitos ou explícitos, já teriam desaparecido, ou sido esquecidos. Isso, claro, quanto a obras históricas; no que diz respeito a obras poéticas, ou filosóficas, essas possibilidades tornam-se ainda menores. Numa outra mensagem, aqui neste “blog”, já comentei, ainda que resumidamente, acerca das “convenções” da historiografia antiga, de suas limitações e dos cuidados a serem tomados para se analisarem tais textos; dentro de tais convenções, os textos antigos sobreviventes, mesmo em citações, mesmo em paráfrases, mesmo em manuscritos situados muitos séculos após a confecção dos autógrafos, podem, sim, se constituir (com os devidos cuidados, claro) em fontes históricas razoavelmente confiáveis, e das quais se podem extrair muitas boas informações. Creio que não preciso, aqui, repetir toda a minha linha de raciocínio.

4. Fidedignidade, Historicidade e Datação dos Textos Neotestamentários: 

O sr. igualmente menciona, prof. Pinheiro Martins, o fato de que as epístolas a Tito, a Timóteo e aos Efésios não seriam de Paulo de Tarso, já que “quase todos os teólogos sérios, desde o séc. XIX”, admitiriam que elas seriam apócrifas” (falsas, forjadas). Chega inclusive a citar, em apoio a tal tese, a obra de Bart Ehrman.

Bem, essa é uma situação espinhosa, e complexa; demandaria muitos e muitos textos para ser corretamente apresentada (para não dizer explicada). Vou aqui apresentar apenas bastante resumidamente (e, nalguns pontos, drasticamente simplificado) meu ponto de vista – e restringindo-o ao Novo Testamento.

A crítica textual das obras neotestamentárias (que vem se processando, acredite o sr. ou não, desde a própria Antiguidade, p.ex., com as recensões de Hesíquio de Alexandria e de Luciano de Antióquia, e que continuou com a própria Vulgata de São Jerônimo, em si um trabalho cuidadoso de crítica textual, a par de tradução) vem prestando um serviço inestimável no sentido de manter a pureza dos textos (entendida como a maior proximidade possível com os autógrafos), bem como no de determinar suas datas e circunstâncias de composição; os estudos nesse sentido progrediram bastante desde a Renascença (e, entre os primeiros a se dedicarem a essa matéria, merecem ser citados o Cardeal Ximenes de Cisneros, com a sua Poliglota Complutense, e Desidério Erasmo, de Roterdam), e de modo extraordinário desde o séc. XIX. Mas houve, indubitavelmente, exageros, e todos eles foram fruto: a) do hipercepticismo, e b) da tendência de se considerarem verdadeiras hipóteses de trabalho que não têm embasamento nem na tradição manuscrita, e nem em achados arqueológicos.

Usualmente, caro professor, a base para se sustentar atualmente que um certo documento (neotestamentário) é “tardio” (além de considerações estilísticas as quais, na maioria das vezes, teriam de ser utilizadas com extremo cuidado) é encontrar nele “referências” a “usos e costumes posteriores da Igreja”. Portanto, os documentos neotestamentários (evangelhos, atos, epístolas) teriam sido compostos muito tempo depois dos acontecimentos (o período de composição usualmente considerado vai dos fins do séc. I dC aos meados do séc. II dC), inserindo tais “hábitos” nos escritos, como que para “justificá-los” – em suma, os documentos neotestamentários estariam bastante distantes, em termos de fidedignidade narrativa e/ou doutrinária, dos acontecimentos “originais”. Mais ainda, tais documentos “editados”, ou “montados”, seriam a “versão dos vencedores”, quais sejam, os “proto-ortodoxos”, que teriam “marginalizado” ou mesmo “eliminado” outras “interpretações cristãs” tão antigas (e tão válidas) quanto a sua (p.ex., a dos “gnósticos”). Eis um resumo da ópera que hoje nos cantam.

Muito bonito isso tudo, e muito “politicamente correto”. De fato, é a cara do nosso mundo moderno – inclusive no que tange à ostentosa “marquetagem”, a fim de ocultar a sua absoluta falta de consistência e de base documental, empírica e arqueológica. Praticamente tudo o que (resumidamente) listei no parágrafo anterior é ou falso ou tremendamente exagerado, e essa situação pode ser demonstrada (talvez o sr. não acredite, mas pode; mais abaixo darei apenas UM exemplo). Ao contrário do que o sr. (ou Ehrman) afirma, não existe essa tal “quase unanimidade” dos “teólogos sérios” a esse respeito. Existe, sim, uma “minoria barulhenta”, e muita marquetagem – marquetagem bem feita, devo admitir. Há, quanto a isso, um paralelo impressionante com o caso de Kardec, ele mesmo também um grande “marqueteiro”, capaz de praticamente “vender” uma nova “história” do Espiritualismo/Espiritismo, tendo a si próprio (e ao reencarnacionismo cíclico evolutivo de seu diminuto conventículo parisiense de esotéricos sonâmbulos pseudo-druídicos) como centro, obliterando toda a evolução anterior que haveria de desaguar no “espiritismo” (inicialmente a do “new spiritualism” anglo-saxão, e depois a do espiritismo reencarnacionista cíclico evolutivo de Kardec e de sua “entourage”, em si um produto posterior e derivado). De fato, quem lê as “obras fundamentais” da codificação kardecista fica com a clara impressão que eles, os kardecistas, são o ponto alto, e culminante, e evolucionariamente superior, das “tentativas”, toscas ou incompletas, de qualquer modo primitivas, anteriores. Toda a complexa história anterior, pré-espírita, proto-espírita e espírita não-reencarnacionista (escola anglo-saxã) é, desse modo, obliterada: as filosofias reencarnacionistas de Pierre Leroux (1797-1871), q.v. “De l’Humanité, de son Principe et de son Avenir” (1840), e de Jean Reynaud (1806-1863), q.v. “Terre et Ciel” (1854), entre outros; do mesmerismo, hipnotismo e “magnetismo animal” do marquês de Puységur, do barão du Potet de Sennevoy e de seus discípulos; de todo o “New Spiritualism” da Nova Inglaterra (EUA) e depois da Grã-Bretanha, que inventou, e fez circular, praticamente toda a nomenclatura espírita posterior, incluindo os termos “médium” e “espiritismo”, bem como de sua firme posição não reencarnacionista, e até mesmo decididamente anti-reencarnacionista (presente, com muitos bons argumentos, nas obras, entre outros, de Andrew Jackson Davis, de Daniel Dunglas Home, de William Howitt, de Emma Hardinge Britten, de Stainton Moses… quantas obras desses autores, e de outros mais, os nossos espíritas kardecistas brasileiros conhecem?); e enfim das próprias correntes espíritas não-reencarnacionistas francesas (principalmente a de Zéphyr-Joseph Piérart e sua Revue Spiritualiste… novamente, o que os nossos espíritas kardecistas brasileiros conhecem acerca dessa personagem?). Claro, algumas vezes esses “outros” tinham que ser citados de vez em quando, afinal eram famosos (caso, p.ex., das próprias irmãs Fox,, ou de Daniel Dunglas Home), mas a história do “Espiritismo” (leia-se: kardecista), oficial, “canônica”, tal como conhecida e propagada pelos kardecistas, e mais especialmente pelos kardecistas brasileiros, é totalmente anódina, pasteurizada e reeditada. Até mesmo o mito de que a palavra “espiritismo” foi inventada por Kardec circulou impunemente durante décadas; e esse é só um detalhe, entre muitos outros. A situação é muito parecida no que diz respeito a essa interpretação “quase unânime” dos “teólogos sérios”, que o sr. mencionou.

Mas vamos a um exemplo. Diz respeito à doutrina trinitária, que estaria embasada, entre outros testemunhos, pelo próprio ritual do sacramento do batismo, o sacramento de iniciação na vida cristã, no qual o postulante era batizado “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, e isso desde o início, e mais, por expressa disposição do próprio Jesus[10].

De acordo com a visão “moderna” e “politicamente correta” anteriormente comentada, defende-se que os primeiros cristãos consideravam como Deus apenas Deus-Pai. Assim, assevera-se, por exemplo, que a prática do batismo em nome das três Pessoas da Trindade foi algo introduzido posteriormente, e que, uma vez estabelecido tal costume, ele foi inserido no versículo respectivo do Evangelho de Mateus (que é a única passagem no Novo Testamento em que ocorre a formulação batismal trinitária)[11]. Sem dúvida, é uma hipótese a considerar, mas faltam-lhe justamente as evidências históricas e documentais pertinentes. Se se alega que os textos dos Evangelhos foram ou escritos tardiamente (refletindo uma prática posterior da Igreja, que não seria a prática “primitiva”), ou então que foram interpolados para que se lhes acrescentassem doutrinas ou práticas que somente depois se tornaram consenso da Igreja “oficial”, tudo isso tem que ser provado documentalmente, por se constituírem em alegações muito sérias. Os testemunhos documentais, como chegaram até à atualidade, bem como as tradições antigas, podem e devem ser questionados, mas desde que se tenham elementos para tanto; e, quanto a isso, a crítica textual tem se limitado, muitas vezes, a apresentar apenas hipóteses, algumas extremamente complexas e mirabolantes. Especificamente quanto ao batismo em nome das três Pessoas da Trindade, a alegação de que tal fórmula é tardia somente poderia vir a ser cabalmente provada, p.ex., a partir da apresentação de manuscritos sobreviventes do Evangelho de Mateus, ou mesmo de fontes evangélicas comprovadamente pré-mateanas, datáveis inequivocamente como dos “primeiros séculos” (quer por meios caligráficos, quer a partir de testes de carbono-14, quer a partir de métodos arqueológicos pertinentes, como a determinação do estrato arqueológico em que tais textos hipotéticos venham a ser encontrados), nos quais, referindo-se explicitamente a uma formulação batismal, tal adição trinitária não ocorresse[12].

De fato, apesar de utilíssima, e pertinente numa série de contextos, a crítica textual é usada amiúde como um mero disfarce para concepções tidas “a priori” – quer contra a Igreja em si, quer contra a própria existência de realidades metafísicas; e uma análise que deveria apenas pautar-se pelas evidências histórico-documentais envereda por sendas ideológicas. Portanto, é perfeitamente lícito considerar-se o testemunho de Mateus no tocante à fórmula batismal como válido, do modo que atestam as tradições, sob um ponto de vista estritamente histórico, até que evidências efetivamente concretas (e não simples suposições) se lhe possam ser contrapostas.

Deve-se também enfatizar que a passagem de Mateus não é o único testemunho “antigo” acerca da fórmula batismal trinitária, pois a própria Didachê, uma obra bastante antiga e “primitiva”, da época dos Padres Apostólicos, também repete a mesma fórmula[13]. E tudo isso sem se levar em conta as alusões trinitárias presentes nos escritos de vários dos primeiros Santos Padres; citando apenas alguns exemplos: São Clemente de Roma (“Carta aos Coríntios”, cap. 46; escrita c. 95 dC), Santo Inácio de Antióquia (“Carta aos Efésios”, cap. 9o, par. 1o; escrita pelos finais do império de Trajano, antes de 117 dC), São Justino o Mártir (“Primeira Apologia a Favor dos Cristãos”, caps. 6o e 13; escrita pouco antes de 166 dC) e Santo Atenágoras de Atenas (“Súplica a Favor dos Cristãos”, cap. 10o, escrita c. 177 dC).

Assim, toda a evidência histórico-documental disponível aponta para a fidedignidade da tradição batismal trinitária, como remontando à “comunidade primitiva” e, daí, ao ordenamento de Jesus. A essa evidência a “moderna crítica” nada pode opor, a não ser a hipótese (não documentada, e não provada) de que os escritos refletiriam a “prática posterior” da Igreja. Mas não seria, ao contrário do que pensam tais críticos, a “prática posterior da Igreja” justamente derivada da tradição primitiva? Pois é justamente essa última hipótese que as evidências documentais, históricas e (ao menos até agora) arqueológicas favorecem…

Esse é apenas UM exemplo, meu caro prof. Pinheiro Martins, mas serve como paradigma geral. Quando se procuram as efetivas bases factuais para todas essas alegações de “interpolações”, “edições”, “inserções de práticas posteriores”, etc., não se encontra nada, ou praticamente nada. Mais uma vez: boa marquetagem… Dizem, então, que as cartas aos Efésios, a Tito e a Timóteo não são de autoria de Paulo de Tarso. Baseados em quê? Provavelmente nalguma “prática”, ou “posicionamento doutrinal”, que seria “reflexo dos usos futuros da Igreja”, ou então em pressupostos estilísticos (diferenças de estilo e/ou vocabulário), que, em termos de aplicação a um único autor, e mais, a um autor antigo (que se guiava muito mais por clichês do que por pretensas originalidades), são, no mínimo, bem difíceis de estabelecer, e controversos. Mas, e quanto a evidências documentais efetivas? Ah, essas, não têm nenhuma…

Enfim, como contraponto à obra citada de Ehrman, eu lhe poderia sugerir, entre outros, os seguintes estudos: a) “Fabricating Jesus – How Modern Scholars Distort the Gospels”, de Craig A. Evans; trata-se não duma apologia, mas sim dum estudo muito bem fundamentado, com as pertinentes referências aos contextos históricos, à evidência dos manuscritos e da arqueologia, etc.; e b) “Who Chose The Gospels? Probing the Great Gospel Conspiracy”, de Charles E. Hill, na mesma linha. Os “teólogos sérios”, caríssimo prof. Pinheiro Martins, juntamente com os estudiosos responsáveis, não pensam como Ehrman, não…

Outro problema, gerador de discussões sem fim, diz respeito à datação dos escritos neotestamentários – mais especialmente, dos Evangelhos Sinópticos e dos Atos. Mais uma vez, os “teólogos sérios” dizem que os Sinópticos não são anteriores à revolta judaica e à destruição do Templo (ou seja, são posteriores ao ano 70 dC). A mesma história – aqui, com muito mais ênfase, apela-se para os tais “usos posteriores da Igreja”. Mas, mais uma vez: quais as bases documentais efetivas de que dispõem os que assim pensam para esposar esse ponto de vista? O Evangelho de Lucas, que mesmo essa corrente coloca como posterior ao de Marcos, e quase certamente ao de Mateus na sua redação final, tendo em vista a parte final de sua continuação, os “Atos dos Apóstolos”, fornece como data implícita de composição aproximadamente o ano 65 dC. Baseados em quê os “teólogos sérios” o põem (no mínimo) para algumas dezenas de anos depois?

Claro, pode ser que o conjunto dos “Sinópticos + Atos” tenha sido de fato composto posteriormente ao ano 70 dC. É uma hipótese de trabalho não totalmente implausível – mas não é nunca apresentada como tal; ao contrário, é apresentada como uma “certeza”, como algo provado, QUANDO NEM DE LONGE É, já que não apenas vai contra toda a tradição, e tradição bem antiga, e também contra os testemunhos indiretos que sobreviveram, mas, principalmente, porque não dispõe de NENHUMA evidência documental, seja direta (papirológico-arqueológica), seja indireta (citações, epigrafia), que a apóie. Tudo se baseia em hipóteses, que, ao menos até ao presente, não puderam ser comprovadas… Espremendo-se essa fruta, não sai uma mísera gota de suco sequer.

O sr. comenta igualmente, caríssimo professor, que manuscritos tardios ou paráfrases não compensam a perda dos textos integrais. Num sentido, concordo com o sr.: claro, não temos, e provavelmente nunca mais teremos, uma série de detalhes. Mas, noutro sentido, devo discordar do sr.: temos o “curso geral” dos acontecimentos, ao menos dos fatos mais importantes, que como tais foram considerados pelas gerações posteriores, e isso pode, sim, nos fornecer uma visão ao menos razoável, em termos factuais, do passado (em termos interpretativos, é outra coisa; há que se ser prudente, como aliás já comentei neste “blog”, quando teci algumas considerações sobre os pressupostos da historiografia antiga). E, em minha modesta opinião, mesmo que muita coisa tenha sido perdida, muita coisa (geralmente, aquilo considerado o mais importante) foi preservada, e, com o preservado, já se pode conhecer o curso dos acontecimentos. Isso aplica-se igualmente à epigrafia. Muito foi perdido, mas muitos milhares de inscrições foram preservadas, e elas (a par da arqueologia, da numismática, etc.) fornecem um subsídio valioso às fontes escritas. Sem negar as perdas, e o fato de que muitos detalhes específicos desapareceram, provavelmente para sempre, continuo firme em meu posicionamento: dum modo geral, o principal (e mesmo vários dos detalhes) sobreviveu. O suficiente para tirarmos várias, e boas, conclusões. Apelar para a “perda de documentos”, para mim, não passa de mais uma desculpa esfarrapada, e de mais uma manobra diversionista.

5. Cartas e mais Cartas: Simão o Mago, Eusébio, Abgar, a “Santa Face”… e “Lêntulo”: 

O sr., com muita propriedade, lembra que a “História Eclesiástica” de Eusébio, bispo da Cesaréia Marítima, na Palestina, preservou, ainda que fragmentariamente, vários documentos dos primórdios do Cristianismo; e que também preservou algumas narrativas “curiosas”. O sr. cita a “carta de Abgar a Cristo”; eu, num outro texto deste “blog”, “Estudo da Aparência Física de Jesus – Parte 1”, acrescentei outro, o da “estátua de Cristo” que teria sido erguida pela hemorroíssa em Pânias (Cesaréia de Filipe); e, no mesmo texto, também comentei sobre outra “curiosidade”, a “estátua de Simão o Mago”, erguida em Roma, na ilha do Tibre, conforme o testemunho de São Justino o Mártir. A questão é a seguinte: Eusébio, como historiador (no que diz respeito à “carta de Abgar”), bem como São Justino o Mártir, como apologista (no que se refere à “estátua de Simão o Mago”) registraram aquilo que efetivamente existia em seu tempo, e com a interpretação que então se considerava a “correta”; não inventaram nada. Que Justino falava a “verdade”, tal como entendida pelas pessoas, prova-o a descoberta do pedestal da tal estátua, na própria ilha do Tibre, em 1574, com a dedicatória não a “Simão Mago”, mas sim a “Semão Sanco”, uma deidade sabina menor, provavelmente já esquecida na época do próprio Justino, e que ensejava a interpretação da dedicatória, pela comunidade cristã de Roma, como referindo-se a “Simão o Mago”, ou “Simão, o Venerável [‘Santo’]” (“SEMO SANCVS” por “SIMO[N] SANCTVS”, ainda mais levando-se em conta a confusão da pronúncia, no grego, entre o iota e o eta, que pode ter sido levada aos nomes)[14]. O mesmo diga-se acerca da “carta de Abgar”. Quando Eusébio escreveu sua obra, essa era a tradição, que ele registrou (como era também o caso no que se referia à tradição concernente à “estátua de Cristo” em Pânias…). A interpretação dos objetos foi equivocada, mas eles existiam, e eram interpretados, na época, daquele modo; os escritores mostram-se, quanto a isso, confiáveis. Acerca do conteúdo da “História Eclesiástica”, bem como dos escritos cristãos “primitivos” nela citadas, deve-se lembrar que Eusébio teve acesso à biblioteca episcopal da Cesaréia Marítima, um centro cultural importante, e também às obras de Orígenes, lá depositadas, inclusive à própria Hêxapla, que, na ocasião, ainda existia íntegra, já que, mais de 50 anos depois, São Jerônimo ainda a pôde manusear (veja-se, p.ex., “Christianity and the Transformation of the Book: Origen, Eusebius and the Library of Caesarea”, de Anthony Grafton e Megan Williams); não há nenhum motivo sério para duvidar da autenticidade de suas citações. Mais uma vez, deve-se recordar do que já comentei, noutra mensagem deste “blog”, acerca das “convenções” da historiografia clássica, quando se analisava a “confiabilidade” das obras de Flávio José. Não vejo razão para dúvidas sérias a esse respeito. Claro, a “carta de Abgar” é apócrifa, tão apócrifa quanto a de Lêntulo, só que tem uma história mais antiga, e um “pedigree” bem mais impressionante. De fato, o ciclo de Abgar remonta, provavelmente, à 2ª metade do séc. III dC (já estava consolidado no início do séc. IV dC, quando Eusébio escreveu sua obra); e continuou a se desenvolver – Eusébio não fala do “Mandylion”, da imagem aquiropoética de Cristo que depois seria ligada ao “ciclo de Abgar”, e isso é justamente uma indicação de que, à época, essa parte da “lenda” não havia ainda se desenvolvido, ou, ao menos, não havia ainda se tornado suficientemente conhecida. Essa lenda do “Mandylion” (originariamente, a imagem de Si próprio que Cristo havia feito imprimir num lenço, “sudarium”, e mandado como “souvenir” ao bom Abgar) haveria, por caminhos interessantíssimos, e tortuosos, de gerar tanto a do “Sudário de Verônica” (a “Santa Face”) quanto a do “Santo Sudário” de Turim…

Há, meu caro professor, “apócrifos” e “apócrifos”; alguns têm mais “pedigree” que outros. O “ciclo de Abgar”, bem como o “ciclo de Pilatos” (ambos falsos, nenhum deles histórico, e isso pode ser demonstrado pela análise documental…), têm um grau de “antiguidade” que a “carta de Lêntulo” nem de longe pode reivindicar. Abgar, o Pilatos da “Sentença”, sua esposa “Procla/Prócula” (mas não “Cláudia”, ou “Cláudia Prócula”…), Longino, Dismas e Gesmas, Berenice/Verônica, etc., são “cães de raça”; “Lêntulo” é, definitivamente, um vira-latas (assim como “Cláudia”, ou “Cláudia Prócula”, uma excrecência originada da “Crônica do Pseudo-Déxter”, uma falsificação grosseira do séc. XVI, e que “Emanuel”, o grande “Emanuel”, que também diz ter sido “Públio Lêntulo”, aceitou e fez constar em “Há Dois Mil Anos)…

O sr. comenta também, caríssimo prof. Pinheiro Martins, sobre incertezas de datas. Outra coisa com a qual teremos que conviver; mas, no geral, mostra-se como algo plenamente administrável. É muito provável que nunca venhamos a saber exatamente a data do nascimento de Jesus (eu, pessoalmente, ainda me inclino pelo ano 7 aC, sendo a “estrela de Belém” a conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes – mas isso, claro, é apenas uma suposição pessoal; o máximo que se pode dizer acerca dela é que concorda com o nascimento de Jesus “no tempo do rei Herodes” [o Grande], com um fenômeno astronômico específico e importante, mas indistinguível a leigos, e com um período de relativa “paz” no Império Romano, estando nessa época fechadas as portas do Templo de Jano, como se pode depreender a partir das narrativas de Cássio Dião e de Paulo Orósio); para a Crucifixão, os anos mais prováveis são ou 30, ou 33, ou 36 dC (eu me inclino pelo ano 33 dC, mas, mais uma vez, trata-se tão-somente duma suposição pessoal). Mas não me preocupo muito com isso; para mim, nesses casos, datas aproximadas (“entre 8 e 4 aC” para o nascimento; “entre 30 e 33 dC” para a Crucifixão – 36 dC é tardia demais) são plenamente suficientes. Quanto ao local de nascimento, “Belém” pode ter sido simplesmente um teologúmeno (já que o Messias “viria” de Belém). Ou não, já que tanto Mateus quanto Lucas, que têm tradições bem distintas, e até mesmo conflitantes, acerca do nascimento de Jesus, apontam Belém como seu local de nascimento, e o “tempo do rei Herodes” como a época do nascimento; se discordam em tanta coisa, mas concordam nisso, há alguma plausibilidade de que esses dados, ao menos, sejam mais “seguros”.

A questão sobre “Nazaré” (se existia ou não um aglomerado humano no local à época de Jesus) é mais um exemplo de “hiperceticismo” e de conclusões por demais forçadas baseadas apenas a partir de argumentum ex silentio. Sem dúvida, era um lugarejo sem importância, uma aldeola enfim, quase certamente com apenas algumas centenas de habitantes. Fora do Novo Testamento, não é mencionada em fontes judaicas a não ser a partir do séc. IV dC; e, quanto a fontes cristãs que não as neotestamentárias, a primeira menção ocorre com Sexto Júlio Africano (primeira metade do séc. III dC), citado na “História Eclesiástica” de Eusébio de Cesaréia. Não obstante, acumulam-se evidências arqueológicas de que havia em Nazaré uma aglomeração humana, ainda que modesta, na época de Cristo; e não me refiro ao assim denominado “Edito de Nazaré”, sobre violação de sepulturas (que, provavelmente, não é originário de Nazaré, mas que foi, na época medieval, trasladado para lá, quer de Séforis, quer mesmo da Ásia Menor)[15]; quanto à efetiva existência de Nazaré como um povoado, na época de Cristo, o sr. pode consultar, entre outros, o estudo “Em Busca de Jesus – Debaixo das Pedras, Atrás dos Textos”, de John Dominic Crossan (um autor que não pode, em absoluto, ser considerado como “tradicional”!), onde se apresenta, até com ilustrações, uma provável reconstituição de Nazaré e cercanias, na época de Cristo[16]. De fato, se se tivesse que “inventar” um local de origem para Jesus (além, claro, da messiânica Belém, a cidade de Davi), por que se utilizar dum lugar não existente? Se o topônimo “Nazaré”, e o gentílico “Nazareno”, pauperrimamente atestados em fontes que não os Evangelhos, aparecem ligados a Jesus, e assim foram conservados pela tradição cristã mais antiga, isso se dá justamente pelo fato de Jesus ter sido assim conhecido – ou seja, pelo fato de ser originário dum lugarejo obscuro da Galiléia, chamado Nazaré. Nem há plausibilidade na ligação de “Nazareno” (ou “nazoreu”) com “nazireu”, o que faz voto de nazireato; tal voto (e denominação) era suficientemente conhecido no Judaísmo do Segundo Templo para impedir que entre os primeiros cristãos (muitos originários do Judaísmo) houvesse confusão a respeito. Se Jesus fosse chamado “Nazareno” por ter feito um voto (permanente?) de nazireato, isso teria sido notado (aliás, essa hipótese é implicitamente impossível, já que o voto de nazireato implicava, entre outras coisas, na abstenção de vinho, um hábito que não está em absoluto ligado à pessoa de Jesus, e a seus discípulos, conforme os Evangelhos). Portanto, caro professor, mais uma vez as informações gerais fornecidas pelos Evangelhos quedam-se historicamente plausíveis e, mesmo, verificáveis: Jesus era “Nazareno” porque havia nascido (ou, no mínimo, havia sido criado) em Nazaré, uma obscura aldeia da Galiléia, que, mesmo sendo um lugarejo insignificante, existia sim, como a tradição (Evangelhos, Júlio Africano/Eusébio, etc.) assegura, e como as próprias investigações arqueológicas, cada vez mais, evidenciam e confirmam.

Não apenas no caso de “Nazaré”, mas noutros também, no que diz respeito ao Novo Testamento, no geral, a Arqueologia vem se mostrando favorável à tradição – e refiro-me principalmente (embora de modo algum exclusivamente) àquele belíssimo documento histórico, os “Atos dos Apóstolos”. No meu texto “Resposta aos Argumentos mais Comuns…”, elenquei inclusive, à guisa de exemplo, uma curta lista (absolutamente não exaustiva!) de confirmações arqueológicas de pontos bem específicos da referida narrativa (p.ex., a questão dos “politarcas” da Tessalônica, ou dos Sérgios Paulos de Chipre e da Pisídia). Claro, há dificuldades, mas o panorama (apenas para nos mantermos dentro do tema) é bem diferente daquele que é observado na “psicografia” “Há Dois Mil Anos”, eivada de erros históricos grosseiros (alguns já mencionados neste mesmo texto, e vários outros citados em inúmeros outros textos deste “blog” – p.ex., o “Resposta aos Argumentos mais Comuns…”, ou o “Pesquisa Histórica para a Confirmação de ‘Há Dois Mil Anos’”).

O sr. igualmente cita, caríssimo professor, as informações referentes ao martírio de São Pedro Apóstolo em Roma, ocorrido provavelmente por volta do ano 67 dC, afirmando não haver certeza sequer de que Pedro tivesse pregado em Roma, quanto mais sido martirizado lá. Não obstante, tal hipótese mostra-se como mais um exemplo daquele “hipercriticismo” já sobejamente citado neste texto, apresentando-se como uma “certeza” que, quando examinada mais detalhadamente, não passa de hipótese sem comprovação e sem base, para a qual os modernos “teólogos sérios” nada podem apresentar de concreto. A tradição é unânime, e antiga, em apresentar como local de martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo a cidade de Roma, sob o império de Nero, na perseguição que esse Imperador moveu aos cristãos após o incêndio de 64 dC, no qual utilizou-os como bodes expiatórios (tal como narrado por Tácito); os locais em que, especificamente, teriam sido executados (Pedro na esplanada do Vaticano, no Circo de Calígula, que Nero havia renovado, e onde hoje se ergue a basílica de São Pedro do Vaticano; Paulo na altura do 2o marco miliário da estrada para Óstia, a via Ostiense, onde hoje se ergue a igreja de São Paulo Extramuros) eram venerados desde as mais remotas eras, e dois túmulos, ou, no mínimo, cenotáfios (os “troféus” – o tropaeum Petri no Vaticano, o tropaeum Pauli na via Ostiense) marcavam tais lugares. A essa evidência se pode somar também o testemunho, dentre outros, de São Clemente de Roma (“Carta aos Coríntios”, capítulo 5o), que escreveu por volta de 95 dC, de Santo Inácio de Antióquia (“Carta aos Romanos”, cap. 4o, onde o mártir sírio explicitamente diz: “eu não vos comando, como Pedro e Paulo o fizeram”), que escreveu sob o império de Trajano, por ocasião de sua ida a Roma, para ser atirado às feras por causa do nome de Cristo (antes de 117 dC) e, mais especialmente, de Santo Ireneu da Ásia Menor, bispo de Lugduno (Lião), nas Gálias (“Contra as Heresias”, livro III, cap. 2o, parágrafos 2o e 3o), que escreveu na 2a metade do séc. II dC, e que dá o elenco dos bispos de Roma, a partir de São Lino, sucessor de Pedro e Paulo. Note, caro professor: se Clemente era romano, não o eram nem Inácio, nem Ireneu. O primeiro era representante da tradição cristã síria (petro-mateana), o segundo (apesar de residir no Ocidente, nas Gálias), era de origem asiática, e discípulo de São Policarpo de Esmirna, representando a tradição cristã asiática (joanina). E ambos reconheceram, como coisa natural, e mesmo honrosa, a fundação “apostólica” (por Pedro e por Paulo) da sé romana.

Pois nenhuma outra comunidade cristã, mesmo aquelas entre as mais importantes, mesmo a grande Antióquia da Síria, também fundada por Pedro, mesmo Corinto ou Éfeso, fundadas por Paulo, jamais reivindicaram a glória de serem o local de seu martírio, ou de sediarem seus túmulos, e, mais importante que isso, NUNCA, desde as mais remotas épocas, nenhuma dessas comunidades ousou se posicionar contra a tradição romana de dever a sua origem aos dois Príncipes dos Apóstolos, e de abrigar os seus ossos (ou, no mínimo, de ter sido o local de seu martírio) – ao contrário, sempre reconheceram tal fato (veja-se, p.ex., o testemunho de Santo Inácio de Antióquia, citado anteriormente); por isso, o bispo de Roma (inicialmente o “chefe” do “colégio presbiteral” local; depois, o bispo monárquico propriamente dito) sempre foi honrado, e por todas as outras sés, e muito antes de reivindicar qualquer tipo de autoridade que não a moral, como “o Apostólico” por excelência, já que sua sé havia sido fundada pelos dois grandes Apóstolos, que lá haviam deixado, com sangue, seu testemunho (martyrion) acerca de Cristo. Por quê? Será que não foi assim simplesmente pelo fato de que, de fato, assim ocorreu? Que motivos teriam outras comunidades cristãs, também elas de fundação apostólica, também elas ciosas de suas tradições e de sua autonomia, em honrar de modo tão ostensivo, e mesmo reverente, a comunidade romana, a não ser que fosse de pleno conhecimento, e inquestionável, em todas as comunidades espalhadas pelo Mediterrâneo, o fato de que, em Roma, Pedro e Paulo haviam pregado e perecido? E mais: que evidências (evidências efetivas, palpáveis) podem ser apresentadas em contrário, além, é claro, de simplesmente negar as evidências apresentadas (mais uma vez, sem base nenhuma)? Até mesmo as circunstâncias arqueológicas confirmam os dados da tradição: os troféus (tropaea) dos Apóstolos (e o de Pedro foi recentemente descoberto, e escavado, nos subterrâneos da basílica Vaticana) foram erguidos fora do “circuito” das catacumbas cristãs, totalmente “à parte” dos conjuntos cemiteriais cristãos de Roma. Por quê? Por que se arriscar a venerar e a ornamentar tais lugares tão longe, tão conspícuos, e tão fora de mão? Será que não foi justamente pelo fato de que eles eram suficientemente veneráveis para valer esse trabalho, e esse risco? Será que não era justamente porque nesses lugares, efetivamente, os Apóstolos haviam perecido, e, provavelmente, estavam enterrados? O próprio local do martírio de Pedro se mostra bem exato: no Circo de Nero (não no Circo Máximo, arruinado pelo recente incêndio de Roma), fora do perímetro urbano de cidade, na região onde se sabe (por Tácito) que Nero realizou seus espetáculos de morte contra os cristãos, bodes expiatórios para o incêndio de 64 dC; as próprias circunstâncias dos suplícios mostram-se exatas em termos especificamente procedimentais (Pedro crucificado, já que não era cidadão romano; Paulo decapitado, já que era cidadão romano…) – tudo, enfim, aponta, inequivocamente, para a fidedignidade da tradição. Novamente: diante disso, que evidências os “teólogos sérios” e os “hipercéticos” podem mostrar?                                       

Sobre os “hipercéticos” que asseguram que Jesus nunca existiu – bem, quanto a esses, há pouco a fazer, meu caro professor. Já comentei o assunto, ainda que de modo resumido, no “Resposta aos Argumentos mais Comuns…”; claro que o tipo de evidência que se poderia ter, no que se refere a Jesus, não é do mesmo tipo da que se tem para personagens mais “famosas” na época, como, p.ex., Imperadores, políticos ou generais, membros enfim das camadas dirigentes – afinal, Jesus era um artesão, sem origens sacerdotais, originário duma obscura aldeia da Galiléia, um pequeno reino-cliente de Roma, e, na época de sua existência terrena, sua fama era exclusivamente local, mal chegando à própria Jerusalém. Mas as evidências lá estão; como já citado, por testemunhos papirológicos se pode chegar a épocas imediatamente pós-contemporâneas dos acontecimentos; os próprios documentos neotestamentários são fontes históricas, com especial destaque aos “Atos dos Apóstolos”; e tanto Jesus quanto seu “irmão” Tiago são citados explicitamente por Flávio José na sua obra “As Antiguidades Judaicas” – o “Testimonium Flavianum” é substancialmente autêntico, a par de POUCAS interpolações, malgrado o que usualmente propaga a “minoria barulhenta”: há todo um estudo sério e solidamente embasado que atesta isso, veja-se, a respeito, “Josephus on Jesus – the Testimonium Flavianum Controversy from Late Antiquity to Modern Times”, Peter Lang Ed., 2003, 231 págs., de Alice Whealey (infelizmente, este livro não pode ser visualizado no “Google Books”, mas vale a pena comprá-lo)[17], bem como no artigo da mesma autora, atualizando seus argumentos, “Josephus, Eusebius of Caesarea and the Testimonium Flavianum”, em Josephus und das Neue Testament, Tubingen, 2007, págs. 73-116 (esse artigo pode, ou ao menos podia, ser visualizado parcialmente no “Google Books”). Quanto ao fato de que, para os “hipercépticos”, as citações de Suetônio, de Tácito, de Plínio o Moço, do próprio Flávio José (cujo “Testimonimum”, claro, irão considerar como “forjado” – o mesmo velho truque…), bem como os testemunhos papirológicos, não serem suficientes, então resta perguntar: O QUE SERIA SUFICIENTE?[18] 

Assim, caríssimo professor, os casos de Cristo e de “Lêntulo” são muitíssimo diferentes, e de modo algum comparáveis. Tentar colocá-los no mesmo “balaio” é apenas mais uma entre várias táticas diversionistas. Antes de mais nada: que se prove que “Lêntulo” existiu…

Por fim, prof. Pinheiro Martins, o sr. menciona o fato de ser necessário “falsear” a hipótese de que Públio Lêntulo não teria existido. Exatamente de que modo? Porque tal hipótese (ou melhor, constatação) não é, a rigor, minha; é, como venho demonstrando, o consenso histórico, embasado por gerações de pesquisadores e “encanudados”. Aqui me parece mais razoável falar em “graus de certeza”, ou “graus de conforto”: há, a meu ver, argumentos suficientes para, cumulativamente, e com um elevadíssimo grau de conforto, suportar tanto a hipótese geral de inexistência de Públio Lêntulo, e de não autenticidade de sua carta, quanto a hipótese mais específica, ligada aos “dados adicionais” que a psicografia “Há Dois Mil Anos” lhe adere. Sem contar o fato de que, nessa história toda, volto a enfatizar, falta uma peça fundamental: a comprovação, por parte dos espíritas, de que Públio Lêntulo efetivamente existiu; de que sua “carta” é autêntica; e de que os dados biográficos adicionais referentes a ele em “Há Dois Mil Anos” são válidos. A partir do instante em que os estudiosos espíritas puderem fornecer tal demonstração (que é, aliás, a sua OBRIGAÇÃO PRIMÁRIA), então talvez análises mais profundas e frutuosas possam surgir. Oxalá. Quem viver, verá.

6. Semeando nos Campos do Senhor: 

Em seu pós-escrito, o sr. comenta, ainda que brevemente, acerca do livro do sr. Pedro de Campos sobre Públio Lêntulo (“Lentulus – Encarnações de Emmanuel – Inquirição Histórica”), mostrando-se curioso para lê-lo. Malgrado seus outros afazeres, eu o aconselharia, caro professor, a seguir adiante, a adquiri-lo (sim, não é absurdamente caro, custa menos de R$ 50) e a lê-lo; e também aos leitores que, de fato, se interessarem pelo tema. Não se trata nem de propaganda, e nem de cinismo, mas sim da necessidade, que considero imperiosa, de que um assunto sério como este venha a ser amplamente discutido – e tão amplamente quanto possível.

Diga-se de passagem que o sr. Pedro de Campos não é, pelo que consta, nenhum “encanudado” do ponto de vista histórico, ou alguém que os “cartólatras” considerariam “apto” para realizar “inquirições históricas” – as informações disponíveis o dão como formado em Administração de Empresas, com especialização em Planejamento, Contratos Públicos e Telecomunicações, sendo, além de “pesquisador” e “autodidata”, espírita e médium intuitivo, tendo inclusive psicografado livros[19]; também é colaborador e consultor da Revista UFO, a qual versa sobre Ufologia, “considerando a pluralidade dos mundos habitados” e que “articula a ciência, a filosofia e os aspectos teológicos da doutrina espírita, examinando o Fenômeno UFO de modo integral”[20]. Seria interessante saber o que essas mesmas pessoas que me desqualificam pensam acerca da competência do sr. Campos para escrever sobre o que escreve…

Eis aí, caro professor, mais uma evidência de quão deletéria pode ser essa postura, a de considerar que apenas a instrução formal capacita, como num passe de mágica, uma pessoa a exercer um determinado tipo de atividade de âmbito cultural ou intelectual[21]. Quanto a isso, sinto-me, graças a Deus, completamente à vontade: o sr. Campos não apenas pode, como deve, escrever acerca desses assuntos, e de quantos mais quiser; e seus argumentos devem ser cotejados não de forma preconceituosa, ou tendo em vista sua formação (qualquer que seja), ou mesmo suas (pretensas) intenções e motivações[22], mas sim a partir da análise racional de sua própria validade. Uma boa pesquisa existe por si mesma, e sustenta-se a partir da adequação de suas premissas, argumentos e raciocínios; uma constatação bem primária, mas que as mentes apodrecidas dos cartólatras parecem incapazes de entender e de aceitar…

Comprometi-me a realizar uma análise de tal obra, a qual encontra-se em curso – e em bom curso. Têm havido considerações acerca da demora, mas, como disse no início deste texto, ela será liberada quando EU considerar que esteja boa. Mas posso adiantar que o (longo) tempo decorrido não se deve a nenhuma dificuldade intrínseca em lidar com a argumentação do sr. Campos, mas sim, basicamente, a dois motivos: a) um, diversionista: a partir do argumento utilizado por alguns (não pelo sr. Campos) de que haveria manuscritos sobreviventes da “carta de Lêntulo” datáveis de 1280 dC, descobertos em Aquiléia (sic), enveredei por uma pesquisa paralela, que me vem tomando bastante tempo; e b) outro, ligado às minhas características, que já lhe expus, caro professor, de procurar ser o mais cuidadoso e detalhado possível.

Tratando do primeiro item: de tempos em tempos, inclusive neste “blog”, tem sido comentado o fato de que haveria um manuscrito de 1280 dC, descoberto em Aquiléia, que trataria da “carta” de Lêntulo. Essa afirmação (repassada sempre sem as devidas referências para checagem) vinha me deixando curioso, e até mesmo impaciente: seria, no caso (se verdadeira tal alegação), o mais antigo manuscrito sobrevivente da “epistula Lentuli”, e que não constaria no cuidadoso e basicamente completo catálogo compilado por von Dobschütz no 2o apêndice de sua obra “Christusbilder”, de 1899 – ainda hoje a “obra de referência” sobre o assunto. Os mais antigos testemunhos acerca do texto da “carta” de Lêntulo datam de meados do séc. XIV dC (anônimos, sendo que, nessa ocasião, tal versão “anônima” foi inserida no “Prólogo” da “Vida de Cristo” de Ludolfo o Cartuxo), e os mais antigos testemunhos especificamente ligados ao nome de Lêntulo datam do 1o quartel do séc. XV dC (o “Segundo Manuscrito de Iena”, bem como o manuscrito de Monte Cassino, aos quais já me referi). Deve-se notar que, mesmo ao longo do séc. XV dC, a atribuição da “carta” a Lêntulo era ainda um processo em construção; prova-o o fato de que, ainda por volta de 1470, quando verteu uma das versões da “carta” para o italiano (dialeto toscano), o sábio florentino Sebastião Salvini ainda pôde atribuí-la não a “Lêntulo”, mas sim a… “Herodes, rei dos judeus” (presumivelmente Herodes Antipas, o tetrarca da Galiléia e da Peréia, talvez por influência indireta da “correspondência entre Pilatos e Herodes” constante do “ciclo de Pilatos”)[23]. Portanto, a descoberta dum manuscrito da “carta” datável de 1280 dC era algo de suma importância, e que demandaria, de minha parte, obrigatoriamente, uma investigação a mais cuidadosa e detalhada possível. Minha frustração aumentou à medida que, apesar de constantes pesquisas, não conseguia descobrir nenhuma referência a esse achado, a esse preciso manuscrito, ligado à cidade de Aquiléia.

Um novo horizonte se abriu a partir do instante em que desviei minha atenção de Aquiléia, o antigo porto do Vêneto, no norte da Itália, que Átila destruiu, para Áquila, nos Abruzos, no centro-sul da Itália. Tudo então se esclareceu: o pretenso “manuscrito” não era “aquileu”, mas sim “aquilano”, tendo a grande proximidade da grafia dos nomes ensejado a confusão…

Nas cercanias dessa cidade de Áquila, nos Abruzos, no ano de 1580 (não em 1280!) foi “descoberto”, em circunstâncias extremamente suspeitas (para se dizer o mínimo), aparentemente em escavações nas ruínas da antiga Amiterno, não a “carta” de Lêntulo, mas sim o manuscrito “original” (!), “em letras hebraicas” (!!), da sentença proferida por Pilatos contra Jesus Cristo, condenando-o à crucifixão (!!!). O “original” em “letras hebraicas” sumiu, claro, mas traduções para o italiano e para o castelhano foram feitas, logo se espalhando pela Europa (edições francesas e alemãs já haviam surgido em 1580-81). Embora um meticuloso estudo, da autoria do jurista napolitano Camilo Borrelli (efetuado em 1580-81, mas publicado em Nápoles apenas em 1588) tivesse desmentido a autenticidade desse grotesco documento, ele, tendo em vista o seu “potencial devocional”, sobreviveu “subterraneamente” (assim como a “carta de Lêntulo”), em círculos “populares” e “piedosos” católicos, e mesmo protestantes, sendo, algumas vezes, ligado a um outro apócrifo igualmente grotesco, o “Julgamento Sanguinário” (Iudicium Sanguinarium), uma peça anti-semita que, alegadamente, era o extrato do conciliábulo sinedrita que havia decidido capturar Jesus e o entregar a Pilatos.

Após um período de relativa “dormência”, e de sobrevivência marginal, essa “Sentença de Pilatos” foi ressuscitada na imprensa francesa em 1839. Dessa vez, dizia-se que o texto da “sentença”, encontrada em Áquila em 1820 (nem se fazia menção aos acontecimentos de 1580…), por ocasião da ocupação francesa do reino de Nápoles, fazia parte do espólio do barão de Denon (1747-1825), artista, diplomata e arqueólogo francês, encarregado por Napoleão, entre outras coisas, de reunir peças artísticas nos países europeus conquistados pelos franceses e remetê-las ao museu do Louvre, em Paris. Ela teria sido adquirida do referido espólio, pela quantia de 2.890 francos, por um certo (e enigmático) “lord Howard”. A notícia, mais uma vez, espalhou-se, agora com intensidade bem maior, já que, ao contrário do séc. XVI, podia-se contar com os jornais – inúmeros periódicos, principalmente na Inglaterra e nos EUA, mas também noutros países europeus, registraram o “achado”, não apenas na ocasião, mas, com relativa regularidade, e sempre como se fosse coisa “nova”, ao longo das décadas seguintes. Contudo, a incoerência da data da pretensa descoberta, 1820, não deve ter passado despercebida, já que a ocupação de Nápoles por tropas francesas cessou em 1814, e, após os Cem Dias, Napoleão, derrotado em definitivo, já navegava para seu exílio em Santa Helena (1815), onde morreria. Portanto, em 1820 o reino de Nápoles encontrava-se livre de ocupação estrangeira, não podendo ter sido a “sentença” descoberta por membros do exército francês de ocupação (e integrado à propriedade pessoal de Denon) nessa época. Portanto, a partir de algum momento (pelo menos desde 1850, já que assim aparece no “Spiritual Philosopher”, vol. I, Boston, julho de 1850), sem dúvida para “corrigir” esse lapso, o ano “1820” passou a ser grafado “1280”, e assim propagado – coisa simples, bastando inverter os algarismos “2” e “8”[24].

Assim sendo, meu caro professor, NÃO EXISTE nenhum testemunho acerca da “carta de Lêntulo” descoberto em “Aquiléia” em “1280”. Há um documento espúrio, a “Sentença de Pilatos”, forjada em 1580, e “ressuscitada” em 1839, pretensamente encontrada nas cercanias de Áquila, nos Abruzos. Tudo isso é muito interessante, e fascinante, em termos sociológicos inclusive, mas nada tendo a ver com “Lêntulo”: não prova em absoluto a existência da personagem (já que, nem mesmo tangencialmente, a ele se refere), e muito menos a autenticidade de sua “carta”, ou “relatório”.

Não obstante, ao longo dessas minhas pesquisas (que põem por terra, definitivamente, qualquer pretensão de que haveria um “manuscrito aquileu” de 1280, com referências à “carta” de Lêntulo), deparei-me com vários tópicos interessantíssimos, e que poderiam servir de introdução à própria análise da “inquirição histórica” lentuliana que o sr. Campos apresenta. Assim sendo, aproveitei a ocasião para inúmeras digressões, quase sempre longas e trabalhosas, mas compensadoras. As principais dizem respeito: a) à análise da evolução e da “construção”, a partir da “sentença” constante nos “Atos de Pilatos”, duma “sentença de Pilatos” para Jesus, em paralelo com o Iudicium Sanguinarium; b) a um estudo pormenorizado do “status” das pessoas no Império Romano, e de sua conseqüência no tipo de julgamento que poderia esperar das autoridades provinciais romanas; tal estudo, a par da análise das prescrições pertinentes do Direito Romano, deixa claríssimo que não houve sequer uma “sentença escrita” de Pilatos condenando Jesus à morte, e muito menos um “relatório” (nem de Pilatos, e muito menos dum inexistente legatus senatorial chamado Lêntulo) ao Imperador; c) a um pré-estudo acerca do conteúdo de alguns dos manuscritos mais conhecidos da “carta” de Lêntulo – mais especificamente, a tradução “italiana” encontrada nos arquivos do “duque de Cesarini”, a par da versão constante no “Prólogo” da “Vida de Cristo” de Ludolfo e da versão “canônica” editada por Grynaeus. Consigo demonstrar que a “versão Cesarini” é uma variante recente, e já bastante degenerada, do texto “primitivo” da “carta”; e, numa análise em colunas paralelas dos textos latinos originais de Ludolfo e de Grynaeus, mostro como um derivou do outro – a versão nomeando Lêntulo (Grynaeus, séc. XVI) da anônima (Ludolfo, séc. XIV), inclusive com a menção ao quadragésimo quarto salmo (explícita em Ludolfo, velada em Grynaeus) – por si só, um elemento extremamente forte de indicação de que o documento era apócrifo (falso, forjado).

Tudo isso – e muito mais – constará nesse estudo, que eu, creio que apropriadamente, denomino “O Feitiço de Áquila”, e que espero poder disponibilizar muito em breve neste “blog”. Será, caro professor Pinheiro Martins, um bom “couvert” para o prato principal.

Mas, apesar disso, sinto-me no dever de adiantar algo acerca da refeição. Embora boa parte das minhas energias venha sendo desviada para a finalização d’ “O Feitiço de Áquila”, a parte referente à análise da obra do sr. Campos, propriamente dita, está razoavelmente avançada; e, tendo em vista minhas promessas, considero justo (e até mesmo necessário) adiantar alguma coisa a respeito. Não obstante, note, caro professor, que se trata apenas de um resumo, e mais, ainda incompleto nalguns tópicos. Tudo o que mencionarei a partir de agora (como tudo o que mencionei imediatamente antes, acerca da investigação do “manuscrito aquileu”) será apresentado nos mínimos detalhes, e com o maior cuidado de que eu for capaz. 

A obra do sr. Campos, sem dúvida, é um trabalho de fôlego, e que demandou do autor muita pesquisa. O estilo é, em geral, correto, e o conjunto mostra-se, quase sempre, agradável de ler. Uma coisa deve ser dita, e sempre lembrada: o sr. Campos, ao menos tanto quanto seja de meu conhecimento, é o primeiro pesquisador espírita (creio que, tendo em vista seu currículo, posso assim denominá-lo) que “tomou a peito” a questão de investigar historicamente quer a existência de Públio Lêntulo, quer a autenticidade de sua “carta”, ou relatório, a par das demais informações acerca da personagem que são fornecidas pela psicografia “Há Dois Mil Anos”. Somente isso já faz com que ele seja merecedor de todo o respeito e consideração. Não obstante, sua pesquisa histórica não consegue, apesar de todo o seu louvável esforço, acrescentar nenhuma nova informação que venha a modificar o consenso histórico atual, e já neste texto apresentado, acerca da inexistência de “Lêntulo”, bem como da falsidade de sua “carta” e da inexatidão das demais informações que “Há Dois Mil Anos” agrega à referida personagem.

A obra do sr. Pedro de Campos, de fato, é extensa; para uma melhor apreciação, segue um resumo descritivo de seu conteúdo:

·         As páginas 1 a 6 são folhas de rosto e índice;

·         Da pág. 7 à pag. 19 há uma introdução geral, em si interessante, mas que não adiciona especificamente nada de novo ao tema que aqui será tratado e analisado (qual seja, a evidenciação histórica da existência de “Públio Lêntulo”, nos termos informados pela psicografia “Há Dois Mil Anos”, a par da demonstração da autenticidade de seu relatório enviado ao Senado, ou ao Imperador);

·         Da pág.21 à pág. 240, o sr. Campos narra toda a história de Lêntulo Sura, bem como dos últimos tempos da República romana, pinçada das fontes usuais (Salústio, Cícero, César, Suetônio, Cássio Dião, etc.); algo sem dúvida interessante, mas que, igualmente, não acrescenta nada ao tema em análise, já que a identidade histórica de Lêntulo Sura jamais foi posta em dúvida;

·         Segue-se um capítulo, págs. 240 a 251, tratando especificamente do fato de que Lêntulo Sura “deveria” ter tido descendentes (mas não demonstrando tal hipótese, como detalharei mais abaixo); essa é a primeira parte da obra do sr. Campos que lida especificamente com o tema ora em estudo; a argumentação é interessante e, no geral, elegante e hábil, mas o conteúdo das premissas é pobre, traindo um conhecimento pouco profundo acerca da evolução das estruturas administrativas romanas;

·         Vem depois um capítulo (págs. 252-66) sobre “Cristianismo, Doutrina e Espíritos”, que também não tem ligação com o tema em análise;

·         A seguir, um capítulo (págs. 267-89) analisando Públio Lêntulo como “legado de Tibério” na Judéia, procurando mostrar que um tal tipo de legação era possível; a argumentação, embora vazada numa linguagem correta, é pobre, e pode ser contestada, já que legati iuridici não atuavam em províncias procuratorianas (algo que a Judéia não era à época), e mais, que tais legati não existiam no Império antes da época dos Flávios (i.e., antes do ano 70 dC) – ESSE é o consenso dos historiadores, que o sr. Campos aparentemente desconhece;

·         Da pág. 290 à pág. 312, há uma paráfrase de “Há Dois Mil Anos”, algo até interessante, mas sem ligação com, ou utilidade para, o tema (já que não se pode considerar uma “psicografia” da década de 1930 como um documento histórico probante para o caso em questão, estando justamente as informações nela constantes, aliás, sob escrutínio);

·         Da pág. 313 à pág. 340, vem um capítulo acerca da “Epistula Lentuli”, no qual o sr. Campos procura demonstrar a sua veracidade, mas, estranhamente, ligando-a ao “ciclo de Pilatos” – como se se tratasse de provar a existência de Pilatos, e não de Lêntulo; aliás, o “ciclo de Pilatos” é igualmente espúrio, embora com credenciais bem melhores que o de “Lêntulo” (como inclusive já se mencionou neste texto; esse, mais uma vez, é o consenso histórico, o consenso dos especialistas, dos “encanudados”); note-se que em nenhuma parte do “ciclo de Pilatos” cita-se o nome de Lêntulo, e que não há, no “ciclo de Pilatos”, nenhum documento que lembre a “carta” (o que mais perto chega é a “lenda da Santa Face”, o sudário com que Berenice/Verônica enxugou o rosto do Salvador no seu caminho para o Calvário, e no qual, por milagre, ficou estampada a Sua Face; mas isso está longe de se relacionar, ainda que remotamente, com um “relatório” enviado ao Imperador, ou ao Senado, acerca de Cristo);

·         Seguem-se, enfim, alguns capítulos (págs. 341-77) que não passam de miscelâneas doutrinárias, também sem nenhuma relação com o tema aqui objeto de análise;

·         Começam, a seguir, os apêndices; o primeiro é uma cronologia do ano 63 aC (págs. 378-403), muito interessante, e útil para acompanhar o “affair” de Catilina, mas que não tem relação direta com o tema central discutido;

·         O 2o apêndice é uma “pesquisa” sobre a árvore genealógica dos Lêntulos (págs. 404 a 409), utilizando basicamente o velho “Dictionnary of Greek and Roman Biography and Mythology”, de William Smith, edição de 1867 – uma obra muitíssimo boa, mas completamente desatualizada em vários aspectos; muita coisa melhor já foi feita no que diz respeito à genealogia dos Lêntulos, agregando principalmente os mais recentes achados epigráficos (principalmente Ronald Syme e Christian Settipani), mas o sr. Campos aparentemente não tem acesso a essa literatura especializada; aliás, nesse próprio “Dicionário” de Smith, não consta o tal “Públio Lêntulo” entre os Lêntulos históricos;

·         O 3o apêndice (págs. 410-16) é um extrato de vários livros do séc. XIX (aparentemente obtidos a partir do “Google Books”) sobre a carta de Lêntulo; de um deles, aliás, que contém contundentes argumentos contrários à autenticidade de tal carta, e que eu possuo completo, o sr. Campos somente informa a parte “suave” (qual seja, o texto latino da carta, na edição da “Orthodoxographa” de Grynaeus); trata-se do “Biblical Repository”, às págs. 411-14 da obra do sr. Campos, especialmente pág. 414;

·         O 4o apêndice (págs. 417-21) versa especificamente sobre o jesuíta Jerônimo Xavier (sobrinho-neto de São Francisco Xavier), missionário na Índia, e sobre a sua “Vida de Cristo”, escrita em persa, por volta de 1600, para fins catequéticos, na corte do Grão-Mogol; nessa “Vida”, a carta é citada, aparentemente como autêntica (a par de vários outros apócrifos, aliás); uma carta de Jerônimo Xavier diria (segundo assevera o sr. Campos, na apresentação do Apêndice) que sua obra (dele, Jerônimo Xavier) teria utilizado dados de livros oriundos de Jerusalém, e datados de 828 dC – ou seja, para o sr. Campos, isso indicaria que a “carta” de Lêntulo já era conhecida no séc. IX dC (mas, se era, por que não foi utilizada como argumento iconódulo na Querela das Imagens?); não obstante, quando fui ler esse apêndice (a alegação me deixou curioso, afinal… seria um testemunho inédito da “epistula Lentuli”, e com o próprio nome do autor, muito anterior aos mais antigos coligidos por von Dobschütz… algo que revolucionaria o atual “estado da arte”), não pude deixar de me sentir chocado – o que Jerônimo Xavier informava em carta era que, SEGUNDO LHE DISSERAM, era do ano 828 dC (data que ele próprio, Xavier, não achava implausível, dadas as características do manuscrito, mas sobre a qual, de resto, não podia dar certeza) um livro que ele oferecia ao Rei de Espanha e Portugal, Filipe III; e esse livro era um Evangeliário, obtido dum padre armênio vindo de Jerusalém em 1598, e morto em terras da Índia; ou seja, tratava-se dum Evangeliário (conjunto dos Quatro Evangelhos), NÃO da carta de Lêntulo; Evangeliário esse que havia sido doado à biblioteca real do Mosteiro de São Lourenço do Escorial pelo próprio Xavier[25] – ou seja, o material apresentado neste apêndice, pelo sr. Campos, o foi de modo incorreto, e não prova absolutamente nada;

·         O 5o apêndice (págs. 422-25) é uma transcrição da “Carta ao Imperador Teófilo”, atribuída falsamente a São João de Damasco (São João de Damasco morreu por volta do ano 750 dC – de qualquer modo, já havia falecido quando foi postumamente anatematizado pelo sínodo iconoclasta de Hiéria, realizado em 754 dC; e eu sinceramente gostaria que alguém me explicasse como é que uma pessoa morta pouco antes de 754 dC pôde escrever para o Imperador Teófilo, nascido em 813 dC, e que reinou de 829 a 842 dC). De qualquer modo, o documento apresentado não tem nenhuma utilidade probante, já que trata da questão da veneração das imagens e apresenta inúmeros “ícones milagrosos”, com a descrição “canônica” de Jesus, mas não faz qualquer menção à carta de Lêntulo, ou mesmo àquela personagem;

·         O 6o apêndice (págs. 426-31) mostra uma série de versões da “carta”, em várias línguas; interessante, mas não traz nada de novo ao tema;

·         Enfim, o 7o apêndice (págs. 432-35) fala da “carta da esposa de Pilatos” (!!!), mais um pedaço, e recente, daquele “ciclo de Pilatos”, espúrio, e que nada tem a ver com a existência de “Públio Lêntulo”;

·         O final (págs. 436-43) inclui algumas fotografias, e a bibliografia (eu pessoalmente a achei relativamente pobre, no geral, e particularmente pobre no que diz respeito, especificamente, às fontes utilizadas para investigar a existência de “Lêntulo”; virtualmente nenhuma das fontes especializadas, que cito aqui, neste mesmo texto, aparecem; mas, enfim…).

Ou seja, no duro mesmo, das portentosas “443 páginas”, 220 dizem respeito, de um modo ou de outro, a Lêntulo Sura; 63 têm, de fato, a ver com a historicidade de “Públio Lêntulo” e de sua “carta”; 58 são apêndices; e o resto (102 páginas) se constitui em paráfrases e miscelâneas diversas, inclusive doutrinárias, que pouco, ou nada, acrescentam à argumentação acerca do tema. Se, por conservadorismo (ou por piedade), considerarmos que todas as informações dos apêndices são relevantes para o caso de “Lêntulo” (e nem todas são – p.ex., as do primeiro apêndice), então, das 443 páginas, 220 (49,7%) lidam, de um modo ou de outro, com Lêntulo Sura; 102 (23,0%) constituem-se em amenidades diversas, inclusive doutrinárias, a par de paráfrases; e 121 (27,3%), então, estão diretamente ligadas à “inquirição histórica” lentuliana. É isso.

Não pense, caro professor, que as considerações tecidas anteriormente tenham por finalidade diminuir, no mínimo que seja, o trabalho de pesquisa do sr. Campos. De fato, seu livro vai além duma simples “inquirição histórica” acerca de Públio Lêntulo, incluindo muito material adicional, ainda que, duma forma ou de outra, relacionado. Mas, quanto a isso, a análise levada a cabo foca-se exclusivamente nas “inquirições históricas” diretamente relacionadas a “Lêntulo”, à sua “carta” e às demais informações agregadas à personagem pela psicografia “Há Dois Mil Anos”.

No que concerne à referida análise, aliás, duas coisas devem ser esclarecidas desde o começo: a) os limites do estudo, e b) o grau de certeza das conclusões, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis a “Lêntulo”.

Quanto ao item “a” delineado acima (limites do estudo), o que venho realizando é uma avaliação histórica, que não passa, em absoluto, por considerações que não possam ser avaliadas historicamente – ou seja, ele não se ocupará de argumentos envolvendo correntes filosóficas ou religiosas. Desse modo:

·         Não estão sendo levados em consideração argumentos não-históricos, quer apóiem a existência de “Públio Lêntulo” e a autenticidade de sua “carta”, quer mostrem-se contrários a isso. Exemplos de tais argumentos: a) o fato de os dados relativos à vida de “Públio Lêntulo” terem sido fornecidos por um suposto espírito-guia: tal característica não servirá nem para confirmar a autenticidade (para aqueles que, em termos de filosofia e crenças, admitem tal inspiração como genuína), e nem para confirmar a não autenticidade (para os que, filosófica e religiosamente, não admitem a inspiração via espíritos-guia); b) o fato de a descrição do rosto de Cristo na “carta” ser idêntico à versão canônica da physiognomia Christi: não é, por si só, garantia de autenticidade, e nem de não autenticidade (porque a própria determinação da fixação de tal cânone fisionômico para o Salvador encontra-se, ela mesma, sob a égide da investigação histórica e, portanto, não poder ser utilizada, por si só, para apoiar ou atacar a autenticidade de “Lêntulo” e de sua “carta”);

·         A simples existência da carta não pode ser considerada como argumento a favor de sua autenticidade, ou de sua falsidade. Deve-se, quanto a isso, examinar, entre outras coisas, todas as evidências relativas à transmissão do referido documento, quer em termos de sua própria existência (elenco, e história, dos manuscritos existentes, do mais antigo ao mais recente), quer no que se refere às informações que contém, quer em termos da autoria e do conteúdo do mesmo (descrição do rosto de Cristo; efetiva autoria de tal descrição a um “Públio Lêntulo”).

Quanto ao item “b” (certeza das conclusões), deve-se ter sempre em mente os próprios conceitos de “certeza” e de “graus de conforto”; o que se objetiva com a análise em curso é, quanto a isso, verificar se se pode obter um grau adequado de conforto: a) quer acerca da implausibilidade da existência de “Lêntulo” (incluindo-se as informações adicionais fornecidas em “Há Dois Mil Anos”), bem como da não autenticidade de sua “carta”, quer, b) ao contrário, acerca da plausibilidade da existência de “Lêntulo” (com as informações adicionais fornecidas em “Há Dois Mil Anos”), e da autenticidade de sua “carta”, ou relatório. Quanto a isso, como aliás como em qualquer outra investigação, não haverá nunca uma “certeza absoluta”, mas sim um “grau de conforto” julgado adequado, quer num sentido, quer noutro (embora a prudência, e o próprio Kardec aliás, recomende que, uma vez que se tenha obtido um razoável grau de conforto acerca da hipótese da implausibilidade, seja essa a posição esposada, independentemente de quaisquer outras considerações – quanto a isso, limito-me a relembrar aquele tão célebre dito do Codificador do Espiritismo, obtido, ao que se diz, a partir da entidade que se auto-denominava “Erasto”, segundo o qual “mais vale repelir dez verdades que admitir uma só mentira, uma só teoria falsa”[26]).

De qualquer modo, há os que asseveram que uma investigação histórica não seria o modo adequado de se determinar a efetiva existência (ou inexistência) de “Lêntulo”, a par da autenticidade (ou falsidade) de sua “carta”, elencando, usualmente, três conjuntos de objeções à força probante de tal tipo de investigação. A seguir, são listados tais conjuntos de objeções, com suas respectivas refutações (creio que, quanto a isso, o sr. Campos concorde integralmente comigo, já que ele próprio, apesar de, como eu, não ser historiador, lançou-se a uma investigação histórica, e mais, ousou, como eu, publicá-la… Ah, como devem nos estar odiando os cartólatras!):

·         Exigüidade das Fontes: trata-se de nossa velha e conhecida desculpa, a de que muita coisa foi perdida e que, portanto, não se poderia concluir nada. Quanto a isso: a) em primeiro lugar, há fontes suficientes para o período de Augusto, dos Júlio-Cláudios e dos Flávios, tanto literárias quanto epigráficas e papirológicas (como inclusive já foi demonstrado em vários textos meus neste mesmo “blog”), sendo que esse período é um dos mais bem documentados da História Romana; assim, o argumento não se aplica; b) em segundo lugar, a carreira de “Públio Lêntulo”, tal como apresentada por “Emanuel” em “Há Dois Mil Anos”, não foi absolutamente uma carreira comum, pois a personagem em questão pertencia a uma família importante da aristocracia patrícia; descendente de personagem conhecida e controversa (Lêntulo Sura); por longo tempo esteve na Judéia, a ponto de ser considerado “especialista” em assuntos judaicos, e escalado para fazer parte do “conselho de guerra” de Tito; foi partidário dos Flávios, ou seja, dos vitoriosos na guerra civil que se seguiu ao suicídio de Nero e ao assassinato de Galba, sendo que pessoas que tiveram carreira semelhante, na mesma época, e nas mesmas circunstâncias, mesmo não tendo tão ilustres origens como “Lêntulo”, deixaram abundantes traços na História, quer literária, quer epigráfica, quer em ambas[27]. Por fim, e numa reductio ad absurdum, se se admite a escassez de fontes “a favor” da existência de “Lêntulo” e da autenticidade de sua carta, também ter-se-ia, por coerência de se admitir tal escassez “contra” – se “não há dados”, afinal, nem se poderia afirmar que sim, e muito menos que não. Ou seja, por prudência, e seguindo-se Kardec (mais uma vez as “dez verdades” e a “uma teoria falsa”), dever-se-ia desconsiderar a existência de “Lêntulo”, bem como a autenticidade de sua carta, ainda mais que o consenso histórico não os aceita. Mas não é esse o caso; há dados, sim, e suficientes;

·         Confiabilidade das Fontes: segundo tal visão, as fontes, mesmo que eventualmente abundantes, ou ao menos suficientes, teriam um viés tal a inviabilizar seu uso para se dirimir a questão. Ora, todas as fontes têm viés, mas se está aqui investigando algo bem específico: a existência histórica de “Lêntulo”, não se tecendo ilações acerca de seu caráter (se era bom ou mau, se virtuoso ou viciado, etc.); mesmo que as fontes mintam acerca dele, ou o mostrem como um “monstro”, se o citam, já evidenciam sua existência; porque não haveria, a priori, nenhuma razão para se negar deliberadamente a existência da personagem, ou ocultá-la, supondo-se que ela efetivamente tivesse existido. Portanto, considerações sobre a confiabilidade do conteúdo de informações acerca de “Lêntulo”, nesse caso específico, seriam de importância secundária, desde que se referissem a “Lêntulo” – mostrando, assim, que ele, de fato, teria existido. Assim sendo, a confiabilidade das fontes não pode ser tomada como pretexto para enfraquecer o caráter probante de investigações históricas – ao menos no que diz respeito à evidenciação da existência de “Lêntulo”, bem como da autenticidade de sua “carta”;

·         Facilidade de se forjarem documentos: segundo tal visão, haveria facilidade de se forjarem documentos; mas, em termos de evidenciação contemporânea, isso não seria de modo algum fácil, já que se tratava de pessoa diretamente ligada ao círculo do poder, gozando da amizade e do convívio de sucessivos imperadores, de Tibério a Vespasiano e Tito. De qualquer modo, se se considera tal facilidade como existente, ela serviria muito mais para se negar, p.ex., a autenticidade da “carta”; e, mais uma vez, por prudência, dever-se-ia considerar “Lêntulo” como inexistente, e sua carta como não autêntica.

Por conseguinte, não se pode negar força probante aos métodos de evidenciação histórica para se obter uma posição acerca da existência de “Públio Lêntulo” (incluindo os detalhes adicionais fornecidos por “Há Dois Mil Anos”, bem como a respeito da autenticidade de sua “carta”. Ainda mais quando as evidências para a não existência da pessoa, bem como para a não autenticidade do documento em questão, são tomadas CUMULATIVAMENTE. De fato, não são alguns poucos problemas, ou incoerências, que podem servir de evidência em contrário, mas sim o acúmulo de tais problemas, ou de tais incoerências.

Coroando o que até agora foi exposto, parece-me conveniente, caro professor, reafirmar, mais uma vez, o escopo da análise efetuada junto às “inquirições históricas” do sr. Campos: uma pesquisa histórica (e apenas histórica) acerca da efetiva e real existência de Públio Lêntulo (incluindo-se aí as informações suplementares fornecidas por “Há Dois Mil Anos”), bem como da autenticidade de sua “carta”, ou relatório. Todos os demais aspectos, especialmente os de índole filosófico-dogmáticos, não estão sendo considerados; e nem será analisada a existência histórica de Lêntulo Sura, ou o curso geral dos acontecimentos do final da República. Dou-me ao direito de abrir apenas uma única exceção, para o caso da época de Sura e do final da República, no que diz respeito à identificação feita pelo sr. Campos do “lanista” (dono de gladiadores) Lêntulo Batíato (o da revolta de Espártaco) como “liberto”, e mais, como um dos Cornelii libertos de Sila. O sr. Campos, quanto a isso, encontra-se equivocado. Ele não era um liberto, mas sim um patrício Lêntulo; e, mesmo que fosse um liberto, não poderia ser um dos libertos de Sila – nesse caso, não tomaria o cognome “Lêntulo”, mas apenas o gentílico “Cornélio”. Os libertos tomavam o prenome e o nome gentílico de seus antigos senhores, complementando-o com um cognome que era, geralmente, a antiga denominação pela qual eram conhecidos. Assim, um, diga-se, escravo Evaristo, cujo dono era Gaio Márcio Furno, ao ser libertado, tornava-se Gaio Márcio Evaristo; nem o cognome de seus antigos senhores era tomado. Portanto, se o nome do “lanista” era (como parece o mais provável, juntando-se os dados fornecidos por Políbio e por Paulo Orósio) “Gneu Cornélio Lêntulo Batíato” (ou Vácia), então ele era, por nascimento ou adoção plenária (a partir dos Servílios Vácias), um Cornélio Lêntulo – portanto, não era um “liberto”. Esse é apenas um detalhe, e, claro, não está ligado diretamente ao tema, mas trata-se duma inexatidão histórica por parte do sr. Campos, que deve ser sanada – quem sabe, na próxima edição de seu livro?[28] 

Dito isso, devo deixar bem claro, e explícito, que as informações de que se dispõem acerca da existência da personagem “Públio Lêntulo”, bem como da sua “missão” na Judéia, são de duas origens: a) a própria carta de Lêntulo (cujo texto, sem atribuição a um “Lêntulo”, é, mais uma vez lembrando, de meados do séc. XIV, e cuja atribuição explícita a um “Lêntulo”, aliás mal identificado – ora como “procônsul da Judéia” antecessor de Pilatos, ora como “procônsul da Galiléia”, ora como “líder de Jerusalém”, ora como um simples “oficial nas partes da Judéia”, sendo todos esses títulos simples disparates – é, na melhor das hipóteses, do 1o quartel do séc. XV, não estando ainda sedimentada no terceiro quartel do referido século; e tudo isso documentado); e b) os dados adicionais constantes na psicografia “Há Dois Mil Anos” (que é de 1938, e que acrescenta detalhes que não constam em nenhuma outra fonte, a não ser na própria psicografia). A questão que se coloca, simplesmente, é: no seu conjunto, tais informações podem ser tomadas como historicamente aceitáveis, com razoável grau de conforto, para se considerar que “Lêntulo” existiu, e que, de fato, escreveu algo próximo à sua “carta”?

Diante disso tudo, estão em curso de análise, à luz dessas duas fontes de informações, e mediante a cuidadosa evidenciação histórica, os três itens a seguir, que constituem o escopo da investigação: a) a progênie de Lêntulo Sura; b) a existência dum “Públio Lêntulo” contemporâneo de Cristo, em missão a Jerusalém, que tenha escrito um relatório ao Imperador; c) a plausibilidade da própria “carta”, ou “relatório”, ao Senado (ou ao Imperador?).

6.1. Progênie de Lêntulo Sura:

Quanto a isso, pode-se mostrar que continua a não existir nenhuma evidência de que Sura tivesse filhos varões dum casamento anterior com Júlia (a viúva de Marco Antônio Crético, e mãe do famoso Marco Antônio), que pudessem ser antepassados de “Públio Lêntulo”; quanto a isso, e dizendo tudo em poucas palavras, infelizmente o sr. Pedro de Campos não consegue acrescentar nada de novo. Tal suposição decorre, logicamente, dos seguintes itens: a) da total ausência de citações nas fontes, quer a um casamento anterior, quer a filhos; b) do fato de que Marco Antônio, o enteado de Sura (filho de sua esposa Júlia com seu 1o marido, Marco Antônio Crético), ter tido de tomar as providências acerca da recuperação de seu corpo, bem, como de seus funerais, após sua morte, por Sura ter participado da conjura catilinária (63 aC); c) da ausência, entre os vários Lêntulos atestados para o período imperial, de qualquer um que reivindicasse ascendência de Sura – ao contrário, reivindicavam ascendência cipiônica; e enfim, subsidiariamente, d) pelo fato de que Júlia, viúva, depois se casou com Sura, já tinha três filhos homens de seu casamento anterior com Marco Antônio Crético (inclusive o famoso Marco Antônio), filhos esses que Sura criou como se fossem seus, sendo que Antônio, inclusive, considerou-o como um segundo pai (a ponto de se arriscar para obter seu corpo, a fim de proporcionar-lhe um enterro decente) – ora, Júlia teria dado preferência a alguém que não tivesse outros filhos homens para ser o padrasto de seus filhos, a fim de melhorar as chances de carreira deles (essa não é uma razão conclusiva, mas, juntamente com as outras três, tornam bastante plausível que Sura não tivesse descendentes masculinos seus). E o que o sr. Campos opõe a isso? Além de “hipóteses de trabalho” não demonstradas, virtualmente nada.

Ao contrário do nebuloso “Públio Lêntulo”, Sura é uma personagem histórica bem conhecida; dele conhecemos muito bem (ao contrário de “Públio Lêntulo”) seu cursus honorum: questor 81 aC, pretor pela 1ª vez (de repetundis) 74 aC, cônsul 71 aC, expulso do Senado em 70 aC, pretor pela 2ª vez (e readmitido no Senado) 63 aC, ano em que foi morto, por sua participação na conspiração catilinária[29]. As fontes são muitas: a “Conspiração de Catilina” de Salústio, as “Catilinárias” de Cícero, as biografias de Cícero e de Marco Antônio, de Plutarco, além de várias menções na “História Romana” de Cássio Dião. Portanto, quanto a Sura, estamos bem abastecidos.

Ora, Cícero, no seu “Bruto”, informa (parágrafo 235) que Sura era um “aequalis” de Hortênsio (ou seja, que tinham, basicamente, a mesma idade). No mesmo trabalho, Cícero adicionalmente informa (par. 229) que Quinto Hortênsio Hórtalo tinha 19 anos quando pronunciou, no Fórum, seu primeiro discurso, em 95 aC; e também (par. 230) que era 8 anos mais velho que Cícero, que nasceu em janeiro de 106 aC. Portanto, Sura nasceu (como Hortênsio) em 114 aC[30]. Pela legislação romana (“Lex Villia Annalis” até 81 aC, complementada pela legislação de Sila após essa data), a idade mínima para alguém se candidatar à questura era de 27 anos; de 36 anos para a edilidade curul; de 39 para a pretura; e de 42 para o consulado (após 81 aC, sob a legislação de Sila, a idade para a candidatura à questura subiu para o mínimo de 30 anos). As idades batem: Sura teria que ter, no mínimo, 42 anos em 72 aC, quando concorreu ao consulado de 71 aC (e, de fato, tinha 42 anos); tinha que ter, no mínimo, 39 anos em 75 aC, quando concorreu à pretura de 74 aC (e, mais uma vez, tinha 39); e teria de ter, no mínimo, 27 anos em 82 aC, para concorrer à questura de 81 aC (ainda sob as prescrições da “Lex Villia Annalis”); mas tinha 32 anos em 82 aC; e isso não foi por acaso – seu “cursus” iniciou-se mais tarde (i.e., foi protelado) porque, de 87 a 82 aC (i.e., desde os 27 anos), permaneceu em serviço militar, sob as ordens de Sila, nas suas campanhas no Oriente, somente depois retornando a Roma e dando início à sua carreira pública.

É plausível supor que somente após sua questura, i.e., após o início de seu “cursus”, Sura, já com experiência em guerras e na vida pública, teria começado a pensar em se casar. Estaria com uns 33, 34 anos; uma boa idade para pensar em constituir família. Portanto, claro, antes de contrair núpcias com Júlia, Sura poderia ter se casado antes, mais ou menos entre os dez anos compreendido de c.81 aC a c.71 aC (já que Marco Antônio Crético, o primeiro marido de Júlia, morreu por volta de 72/71 aC em Creta). Mas, será que se casou? O fato é que não estava casado, ou, pelo menos, não estava comprometido, por volta de 71/70 aC, quando, no auge de sua carreira (foi cônsul em 71 aC), casou-se com Júlia. Repetindo: não há nenhuma menção, indireta que seja, em fonte alguma, quer a esposa, quer a filhos, dum relacionamento anterior; e mais: Júlia, a viúva de Crético, com seus três filhos, Marco (o famoso Marco Antônio), Gaio e Lúcio, escolheu justamente Sura para ser seu novo marido, e garantir a criação (e o futuro) de seus três rebentos. Por quê? Não seria mais plausível que escolhesse Sura porque ele, justamente, não tinha filhos (ou não os tivera antes, ou então os tivera, mas eles não haviam sobrevivido), podendo-se dedicar totalmente aos três filhos dela, Júlia? E Sura, se tivesse filhos homens, que incentivo teria em se casar com uma matrona, por mais virtuosa que fosse, com três homens dum casamento anterior?

Essa é uma situação bastante plausível, e que (diante da total falta de menção quer a um casamento anterior, quer a filhos vivos sobreviventes dum casamento anterior) se pode opor, com relativa facilidade, à “hipótese de trabalho” adotada pelo sr. Pedro de Cmapos, qual seja, a dum filho “ausente”, porque “em guerra” – claro, a não ser que se possam mostrar evidências da existência desse tal filho, nessa tal guerra, e, por isso, ausente em 63 aC. Mais uma vez, não basta supor, é necessário demonstrar.

Analisando-se, de qualquer modo, as probabilidades ligadas a um (pretenso) primeiro casamento de Sura, anterior àquele que contraiu com Júlia, deve-se notar que a idade (efetiva) em que ocorriam os primeiros casamentos podia ser maior do que aquela estritamente permitida pela legislação, especialmente para os homens.

Senão, vejamos: de fato, era usual que os casamentos ocorressem cedo: o cidadão romano era “adulto” aos 14 anos, e, a partir daí, poderia pensar em se casar; quanto às moças, podiam ser “prometidas” a seus futuros noivos ainda meninas, e, lá pelos 12/13 anos, já eram consideradas aptas para o matrimônio. Tudo isso é verdade. Mas seria o usual na aristocracia da Republica tardia, e mais, seria verdade, especificamente, no caso de Sura? Estudos recentes acerca da idade dos primeiros casamentos mostram, ao contrário, que os homens costumavam se casar por volta dos trinta anos, e as mulheres, por volta dos vinte:

In 1987, Richard Saller and Brent Shaw put the study of the age at 1st marriage in the Roman empire on a new footing. Drawing on large samples of Latin epitaphs from the western half of the empire, they interpreted age-specific shifts in the identity of commemorators as proxy evidence for changes in marital status: thus, the age at which spouses replaced parents as commemorators for young adults is taken to denote the usual age of marriage. In most epigraphic samples, these shifts occur around age 30 for deceased men and around age 20 for women. Saller and Shaw concluded that men and women had commonly married in their late 20s and their late teens, respectively, a pattern that broadly resembles the so-called Mediterranean marriage pattern found in later periods of southern European history. In 1994, Saller defended the underlying methodology against criticism, adduced new evidence (from the city of Rome) to strengthen the case for moderately early female and late male marriage, and provided a computer simulation of the age-specification likelihood of marriage that matches the observed shifts in commemorative identity. (“Roman Funerary Commemoration and the Age at First Marriage”, Walter Scheidel, Classical Philology, vol. 102, No. 4, outubro de 2007, páginas 389-402)

Em 1987, Richard Saller e Brent Shaw levaram o estudo acerca da idade do primeiro matrimônio no Império Romano a um novo patamar [o autor refere-se à obra de R.P.Saller, “Men’s Age at Marriage and its Consequences for the Roman Family”, Classical Philology, vol. 82, 1987, páginas 21-34; e também à de B. D. Shaw, “The Age of Roman Girls at Marriage: Some Reconsiderations”, Journal of Roman Studies, No. 77, 1987, páginas 30-46]. Baseando-se numa grande quantidade de dados oriundos de epitáfios latinos da parte ocidental do Império, puderam interpretar mudanças específicas na identidade dos que mandavam lavrar tais inscrições como aproximações para mudanças no estado civil Assim, a idade na qual os cônjuges substituíam os pais como aqueles que encomendavam inscrições para adultos jovens é foi considerado para indicar a idade habitual do matrimônio. Em muitos dos epitáfios analisados, tais mudanças ocorriam por volta duma idade de 30 anos para homens finados, e por volta duma idade de 20 anos para mulheres. Saller e Shaw concluíram que homens e mulheres usualmente casavam-se, respectivamente, no final de seus 20 anos, e no final de sua adolescência, um resultado que, em geral, combina com o panorama observável no Mediterrâneo para períodos históricos subseqüentes. Em 1994, Saller defendeu seu método contra críticas recebidas, adicionando [a seus dados anteriores] novas informações, agora originárias da cidade de Roma, fortalecendo sua teoria acerca das diferentes idades nas quais homens e mulheres contraíam seu primeiro casamento, incluindo uma simulação computacional que corroborava as mudanças observadas nos epitáfios.

Evidentemente, os dados referem-se principalmente à época imperial (pelo fato de ser dessa época a grande maioria das inscrições funerárias); e foi notada, adicionalmente, uma variação bastante grande entre os civis e os militares – com a idade para o primeiro casamento tendendo a ser bem menor (especialmente entre os homens) no caso da população civil. Mas, levando-se em conta que o “padrão republicano”, mesmo para os aristocratas, estava mais próximo do padrão militar do Alto Império do que do civil, dizer que, no seio dos jovens aristocratas, o primeiro casamento ocorria muito cedo é algo a ser demonstrado, e não suposto – tanto em termos gerais quanto, principalmente, no caso específico de Lêntulo Sura.

Convém lembrar que os casamentos eram arranjos políticos, e, quando ocorriam cedo, era usualmente por questões absolutamente circunstanciais; usualmente, o primeiro casamento ocorria por volta dos 25 anos, a não ser em condições excepcionais. E a taxa de fecundidade desses casamentos, em geral, não era alta, como se pode depreender dos dados tabulados a seguir, a partir dos padrões de casamentos conhecidos para personagens famosas (Sila, Pompeu, Cícero, César, Antônio e Augusto):

Nome (e datas de nascimento e de morte)

Número de Casamentos

Primeiro Casamento e Primeiro(a) Filho(a)

Observações sobre o Primeiro Casamento

Número de Filhos sobreviventes à infância

Lúcio Cornélio Sila Félix (c.138 – 78 aC)

5

c. 111 aC (tendo Sila 26/27 anos na ocasião); desse ca­samento teve sua 1ª filha, nascida c. 109 aC (Sila com 28/29 anos)

 

Três filhas (sendo uma póstuma) e um filho (um outro fi­lho morreu muito novo)

Gneu Pompeu Magno (106 – 48 aC)

5

c. 83 aC (tendo Pompeu cerca de 23 anos); sem fi­lhos; 1a filha, c. 80 aC (Pompeu com c. 26 anos)

 

Dois filhos e uma filha

Marco Túlio Cí­cero (106 – 43 aC)

2

c. 79 aC (Cícero com c. 27 anos); 1a filha nascida em 79/78 aC (Cícero com 27/28 anos)

 

Um filho e uma fi­lha

Gaio Júlio César (100 – 44 aC)

3

c. 84/83 aC (César com 16/17 anos); a sua filha nasceu logo depois, c. 84/83 aC (César com 16/17 anos)

O pai de César morreu em 84 aC, deixando-o como cabeça da casa; Cé­sar foi eleito para o flaminato de Júpi­ter nessa ocasião, sendo que, para poder tomar posse desse prestigioso posto sacerdotal patrício, tinha que ser casado com uma patrícia – essa a principal razão de se casar tão cedo

Uma filha (Júlia); de sua ligação com Cleópatra VII, ao que se diz, mais um filho, Ptolomeu Cesarião (aqui não computado, já que César não se casou oficialmente com Cleópatra)

Marco Antônio (83 – 30 aC)

4 ou 5 (dependendo de se considerar como histórico o seu 1o casamento com Fádia, de quem teria tido “vários filhos”, es­tando contudo já todos mortos, bem como a mãe, por volta de 44 aC – somente Cícero faz menção a esse pos­sível 1o casamento)

Se de fato casou-se com Fádia, c. 63/60 aC (Antônio com 20/23 anos), de­vendo ter sido pai logo depois; 1a es­posa efetivamente atestada: sua prima Antônia, c. 55 aC (Antônio c. 28 anos); 1a filha, nas­cida desse casa­mento, c. 50 aC (Antônio com c. 33 anos)

O estudo das fontes permite concluir que, se efetiva­mente Antônio ca­sou-se com Fádia (filha dum rico li­berto), foi para pa­gar as enormes dí­vidas que possuía na ocasião (250 talentos de prata)

Três filhas e dois filhos de seus ca­samentos com ro­manas; com Cleó­patra VII do Egito, dois filhos e uma filha. No total, quatro filhas e três filhos

Gaio Otávio; de­pois, Gaio Júlio César Otaviano; depois, Augusto (63 aC – 14 dC)

2

40 aC (Augusto com 23 anos); sua filha nascem em 39 aC (Augusto com 24 anos)

Seus dois casa­mentos (Escribô­nia; Lívia Drusila) foram estritamente políticos, tendo em vista sua busca de aliados para sua luta pelo poder; embora tenha logo se divorciado de Escribônia (39 aC) e se casado com Lívia (38 aC), so­mente teve uma filha, com a 1ª es­posa

Uma filha (Júlia, nascida de Escri­bônia)

Somando-se todos os casamentos (não contando a ligação de César com Cleópatra, mas considerando-se como “casamento” a relação, qualquer que tenha sido, de Antônio com Fádia, e supondo-se três filhos para tal relacionamento), têm-se, para essas personagens, 22 casamentos, com 21 filhos ou filhas que tenham sobrevivido à infância (taxa de cerca de um filho por casamento); sendo que, desses 21 filhos, 10 (virtualmente a metade!) foram dos 5 casamentos de Marco Antônio, uma criatura, sem dúvida, excepcional. Tirando o belo Antônio, têm-se 17 casamentos, com 11 filhos (0,65 filhos por casamento). Assim, não é de modo algum improvável que, mesmo que Sura tenha tido uma esposa antes de se casar com Júlia, a viúva de Marco Antônio Crético, ou não tivesse tido filhos desse possível 1o casamento, ou então que esses filhos não tenham atingido a maioridade.

De qualquer forma, supor (como faz o sr. Campos) que havia um filho dum casamento anterior, o qual, em 63 aC (ano da morte de Sura) não podia estar presente por estar “em serviço militar”, é apenas uma “hipótese de trabalho”, que precisa ser demonstrada – e que não o foi. Portanto, de “hipótese de trabalho” passou a “suposição gratuita”. Diante do conhecimento atual, a hipótese mais econômica, plausível e racional é supor que Sura não teve descendentes masculinos – quer por não ter se casado antes de seu casamento com Júlia, quer por um casamento anterior não ter resultado em filhos, quer por eventuais filhos dum (eventual) casamento anterior não terem sobrevivido. Resumindo, assim, a situação:

A) Sura não teve descendentes masculinos – bases que, CUMULATIVAMENTE, permitem tomar tal hipótese como verdadeira, com um razoável grau de conforto:

·         Não há nenhuma menção, direta ou indireta, em nenhuma fonte, literária ou epigráfica, quer a um casamento anterior, quer a filhos sobreviventes oriundos dum possível casamento anterior – FATO;

·         Por ocasião da conjura de Catilina, quando Sura foi preso e morto (63 aC), foi o seu enteado, Marco Antônio (um dos filhos da esposa de Sura, Júlia, com o seu marido anterior, o falecido Marco Antônio Crético), que providenciou tanto o resgate do corpo do padrasto (a quem considerava como se fosse um pai) quanto o seu sepultamento, sendo que esse era um dever sagrado dos filhos para com seus pais; e, mais uma vez, em todo esse “affair”, não há nenhuma menção a qualquer outro filho de Sura – FATO;

·         Não há nenhum Lêntulo, dos muitos atestados historicamente para a época de Augusto (31 aC – 14 dC) e dos Júlio-Cláudios (14-68 dC), quer por fontes literárias, quer epigráficas, que se dissesse, ou que pudesse ser considerado, descendente de Lêntulo Sura – FATO.

B) Sura teve descendentes masculinos – bases alegadas para se esposar tal hipótese:

·         Os romanos casavam-se relativamente cedo; Sura poderia ter se casado antes de se casar com Júlia, a viúva de Marco Antônio Crético, quer antes de seguir nas campanhas orientais com Sila, quer depois, quando retornou a Roma, e antes de seu casamento com Júlia – FATO no que diz respeito à assunção geral; HIPÓTESE NÃO DEMONSTRADA no que diz respeito especificamente a Sura;

·         Pelo menos um filho poderia ter sobrevivido dum casamento anterior, possibilitando a continuação da progênie de Sura e sendo o avô de “Públio Lêntulo” – HIPÓTESE NÃO DEMONSTRADA;

·         Tal filho poderia não ter tido condições de cumprir seu sagrado dever, em termos de recuperar o corpo de seu pai, e de providenciar-lhe o enterro, quer por medo, quer por estar ausente de Roma, em serviço militar, naquele ano de 63 aC (serviço onde? Sob que comando?) – HIPÓTESES NÃO DEMONSTRADAS (e, francamente, totalmente gratuitas…).

Diga-me, professor Pinheiro Martins, com pureza d’alma, diante do conhecimento que ora se tem, qual das duas situações deveria ser esposada? Com qual delas o sr. se sentiria mais confortável?

6.2. Existência dum “Públio Lêntulo” contemporâneo de Cristo:

Quanto a isso, além da própria “carta” (que será tratada em item à parte), deve-se confiar quase exclusivamente nas informações adicionais prestadas pela psicografia “Há Dois Mil Anos”. Mas, quanto a isso, há seriíssimos problemas:

·         Lêntulos atestados historicamente: há vários Lêntulos atestados para a época de Augusto e dos Júlio-Cláudios, mas nenhum deles se encaixa, nem mesmo longinquamente, no perfil de “Públio Lêntulo”; mais ainda, nenhum deles poderia descender de Lêntulo Sura, como aliás já foi mostrado. Na esmagadora maioria, descendiam, dum modo ou de outro, dos Lêntulos Marcelinos (cuja origem residia nos Cláudios Marcelos plebeus – daí, inclusive, o fato de que vários dentre os Lêntulos “imperiais” tenham exercido aquela magistratura tipicamente plebéia, e interditada aos patrícios, o tribunado da plebe), reivindicando inclusive ascendência cipiônica (a partir do casamento dum Lêntulo Marcelino com uma filha dum Cornélio Cipião Násica). Note-se, adicionalmente, que o exemplo apresentado pelo sr. Campos sobre a árvore genealógica dos Lêntulos (do dicionário de William Smith) encontra-se totalmente desatualizado; mas, mesmo nesse ensaio, de quase 150 anos de idade, não consta nenhum “Públio Lêntulo”. Os estudos mais recentes (Sumner, “The Orators in Cicero’s Brutus – Prosopography and Chronology”; Syme, “Augustan Aristocracy”; Settipani, “Continuité Gentilice et Continuité Familiale à Rome”), que incorporaram uma enorme quantidade de testemunhos epigráficos desconhecidos por Smith, continuam a não apontar a existência de nenhum “Públio Lêntulo” para a época de Augusto e dos Júlio-Cláudios;

·         Lêntulos informados por “Emanuel”: ao contrário, o único Lêntulo informado em “Há Dois Mil Anos” como parente de “Públio Lêntulo”, “Sálvio Lêntulo”, não é citado em nenhuma fonte histórica; além disso, pelo seu gentílico, “Sálvio”, não poderia ser um parente de “Lêntulo”, já que os Lêntulos eram Cornélios, não Sálvios (questão da antroponímia romana, cujas regras Francisco Cândido Xavier ignorava completamente); portanto, o “mundo de Emanuel” e o “mundo evidenciado historicamente”, no que diz respeito aos Lêntulos atestados para a época de Jesus, são dois conjuntos disjuntos;

·         O “cursus honorum” absolutamente anômalo de Lêntulo: a forma vaga com que é informado o cursus honorum de Lêntulo: não há nenhuma menção ao seu vigintivirado, às magistraturas que teria ocupado, a um cargo sacerdotal que era de praxe um nobre como ele assumir, etc. Mais ainda, “Lêntulo” permaneceu por longuíssimo período na Judéia (segundo “Há Dois Mil Anos”), algo totalmente anômalo, não atestado para nenhum outro senador, quer da época, quer de épocas posteriores, e que arruinaria totalmente o seu “cursus”, já que o impediria de concorrer, em Roma, aos outros sucessivos cargos a que teria direito;

·         As funções de Lêntulo em Esmirna: não existiam “funções em Esmirna” (tais como informadas em “Há Dois Mil Anos”) no âmbito da administração imperial romana da época. Levando-se em conta que Esmirna fazia parte da província da Ásia, uma província senatorial governada por um procônsul que, ele próprio, era um ex-cônsul, “Lêntulo” somente poderia ter sido ou um questor do “staff” do procônsul da Ásia, ou então um legado (jurídico) desse mesmo procônsul da Ásia (os procônsules das províncias senatoriais tinham “imperium”, portanto podiam, eles mesmos, nomear “legati”); mas não poderia, em hipótese alguma, ter uma “base fixa”, em Esmirna ou em qualquer outro lugar que fosse, já que isso não existia na estrutura administrativa romana da época. Esmirna era apenas a sede dum conventus iuridicus romano, ou seja, dum lugar onde o procônsul e sua “entourage” ficavam algumas semanas, ou uns poucos meses, para exercer funções judiciárias; a cidade, em si, era administrada por seus próprios magistrados. Portanto, “Lêntulo” jamais poderia ter exercido “funções administrativas e judiciárias” em Esmirna (administrativas, nem pensar – mais uma vez relembrando, Esmirna era governada por seus próprios magistrados); Xavier toma como modelo da administração romana a administração brasileira da época, principalmente a administração centralizada do “Estado Novo” – Lêntulo seria como que um “funcionário federal”, lotado numa “repartição federal” de Esmirna; mas isso tudo é um anacronismo, para não falar tolice, em termos da administração provincial romana da época. Do mesmo modo que decalcava a administração romana à administração brasileira sua conhecida, Xavier decalcava também a antroponímia romana à antroponímia brasileira sua conhecida (“apelido” + “nome”, ou “primeiro nome” + “nome de família”, ao invés do tria nomina romano, como, aliás, já foi exaustivamente demonstrado);

·         A “missão” na Judéia: o mesmo se diga acerca de sua pretensa “missão”, ou “legação”, ou o nome que for, na Judéia. Para isso, teria que exercer um dos cargos de promagistratura, ou de legação, disponíveis para um senador: proquestura, questura ou legação propriamente dita. Não podia ter sido um proquestor, porque não havia mais proquestores no Império. Não podia ser um questor, já que questores exerciam suas atividades ou em Roma, ou em províncias senatoriais, o que não era o caso da Judéia (que não era, e nem nunca foi, uma província senatorial). Não podia, enfim, ser um “legatus iuridicus” (que somente passaram a existir na época dos Flávios, ou seja, depois de 70 dC); e, mesmo que se admita a existência de “legati” nessa época, embora não com esse título (caso, talvez, dos legados postos à disposição do legado propretoriano da Tarragonense desde a época de Augusto), não poderia JAMAIS exercer suas funções numa província procuratoriana, já que os “legati” (que eram senadores), quaisquer que fossem suas atribuições (“legati iuridici”, p.ex.), ainda que nomeados pelo Imperador, auxiliavam os governadores provinciais – portanto, por simples questões de hierarquia, um “legatus” imperial somente exerceria funções numa província propretoriana (i.e., governada por um legado de Augusto com poderes propretorianos, legatus Augusti pro praetore, ele mesmo um senador); e a Judéia não era uma província imperial propretoriana, mas sim uma província imperial procuratoriana – seu “governador” era um praefectus (depois, um procurator) eqüestre; seria inadmissível que tivesse como auxiliar um legatus senatorial. Que essas precedências hierárquicas eram levadas muito a sério pode-se ver no caso do Egito: lá, eventuais legati eram inclusive de nível eqüestre, já que o governador do Egito, o Prefeito Augustal do Egito, era de nível eqüestre; e até mesmo os comandantes das legiões egípcias eram de nível eqüestre, e nem havia, lá, nas legiões, tribunos laticlavos (de origem senatorial), mas apenas tribunos angusiclavos (de origem eqüestre). Nenhum senador admitiria receber ordens de, ou auxiliar, uma pessoa a ele inferior hierarquicamente; e mandar um senador, ainda mais um oriundo duma tão antiga e prestigiosa casa da aristocracia patrícia, em “missão” numa província marginal como a Judéia, governada por um procurador eqüestre, é simplesmente o cúmulo do absurdo, dentro da lógica administrativa romana (e note-se que o Imperador Tibério era, quanto a isso, muito cioso da tradição, e ele próprio orgulhoso de sua origem patrícia); quanto a isso, adicionalmente, devem ser enfatizados os seguintes pontos:

o   Não há NENHUMA POSSIBILIDADE duma “legação” ou “missão” do senador “Lêntulo” na Judéia procuratoriana de Pôncio Pilatos. O problema é que as pessoas não entendem a lógica da administração romana sob os Júlio-Cláudios, e a fantasiam para a lógica da administração burocrática brasileira. Pode-se usar a palavra “governador” para se referir ao chefe romano de províncias como a Ásia, ou Chipre, ou a Síria, ou a Judéia; mas a diferença era enorme: nesses exemplos, a Ásia (província senatorial) era governada por um ex-cônsul, com o título de “procônsul da Ásia”; Chipre (também província senatorial) era governada por um ex-pretor, que também tinha o título de “procônsul”; em ambos os casos, esses magistrados tinham “imperium”, e podiam nomear “legati” de nível senatorial; a Síria era uma província imperial, governada por um ex-cônsul, que tinha o título de “legado de Augusto com poderes propretorianos” (legatus Augusti pro praetore), o qual não tinha “imperium”, já que era um representante direto do Imperador; somente o Imperador poderia nomear-lhe “legati” senatoriais; enfim, a Judéia era uma província imperial procuratoriana, governada por um procurador eqüestre, que também, obviamente, não possuía “imperium” (e que não era nem magistrado, e nem promagistrado – era um “procurador”, um “encarregado”, posto sob a égide do legado propretoriano mais próximo – no caso da Judéia, do legado propretoriano da Síria), e que nem podia receber do Imperador “legati”, já que “legati” eram senadores… Ele (no caso, Pilatos) tinha que “se virar” como pudesse, e, se algo saísse fora do controle, não era o Imperador que trataria do assunto, mas sim o legado propretoriano da Síria, como aliás ocorreu inúmeras vezes (caso da deposição de Pilatos, p.ex., ou o caso da estátua de Calígula a ser instalada no Templo de Jerusalém). Portanto, “Lêntulo”, o senador, JAMAIS poderia ter sido um legado na Judéia, fosse de que natureza fosse essa sua “legação”;

o   Outra dificuldade diz respeito ao comportamento de “Lêntulo” diante de Pilatos, tal como narrado em “Há Dois Mil Anos”: “Lêntulo” trata Pilatos como igual, mas eles não eram iguais, “Lêntulo” era um senador, Pilatos era um cavaleiro… Contudo, para Francisco Cândido Xavier, eram iguais, sim: tratava-se dum “funcionário federal” despachado pelo governo central, por um lado (Lêntulo), e dum “governador federal” nomeado pelo mesmo governo central, por outro (Pilatos) – mais uma vez, a analogia com a administração brasileira, especialmente com a do Estado Novo. Mas, no “mundo real” do Império Romano da época de Cristo, se estivesse na Judéia, o senador “Lêntulo” simplesmente daria ordens a Pilatos, e, ipso facto, assumiria o governo da província (o que criaria um imbroglio de autoridade, entre o senador “Lêntulo” na Judéia e o também senador que era o legado propretoriano da Síria…);

o   Além disso, há a informação de que Lêntulo teria exercido funções de “edilidade” em Jerusalém, algo totalmente absurdo. Os edis eram magistrados que exerciam suas funções em Roma (eram magistrados municipais romanos); não havia tais magistrados em Jerusalém, e nenhum romano (muito menos um SENADOR) exerceria tais funções inferiores numa cidade estrangeira – mais uma vez, a falsa analogia com a administração brasileira contemporânea;

·         Caráter das tropas romanas na Judéia: outra dificuldade diz respeito à afirmação, pela psicografia, acerca da existência de “legionários” na Judéia, quando não houve legiões estacionadas na Judéia até à revolta de 66-72 dC – a província tinha apenas unidades de auxiliares (auxilia): quatro unidades de infantaria (cohortes) e uma de cavalaria (ala); no entanto, não há nenhum indício, mesmo indireto, na psicografia, de conhecimento acerca da diferença entre tropas legionárias e auxiliares – algo no mínimo estranho;

·         Antroponímia equivocada: uma dificuldade adicional refere-se, claro, à antroponímia romana, que, na psicografia, encontra-se totalmente equivocada – e mais, equivocada seguindo um padrão de erro constante e bem estabelecido. Da mesma forma que Xavier decalcou a (suposta) administração romana da época dos Júlio-Cláudios na administração brasileira conhecida, decalcou também a antroponímia romana na antroponímia brasileira sua conhecida (“apelido” + “nome”, ou “primeiro nome” + “nome de família”, ao invés do tria nomina romano) – daí poder afirmar, p.ex., que “Sálvio Lêntulo” e “Públio Lêntulo” eram “parentes” (já que eram “Lêntulos” – mas, pelas regras romanas, não podiam ser parentes, já que ostentavam gentílicos diferentes, “Sálvio” e “Cornélio”). Ou seja, o “senador” “Públio Lêntulo”, em última análise autor da psicografia, “esqueceu-se” de como se organizava a administração romana; e esqueceu-se também do modo como os romanos eram denominados – do que mais se teria esquecido?

·         Sem vestígio algum, ao contrário de contemporâneos de carreira semelhante: enfim, deve-se notar que a carreira de “Lêntulo” não foi uma carreira trivial; ele permaneceu longuíssimos anos na Palestina, arruinando seu “cursus” (aliás, por quê?); participou das conspirações contra Nero; foi sempre um partidário dos Flávios (i.e., dos vencedores da guerra civil de 69 dC), tendo sido inclusive membro do conselho de guerra de Tito. Não se pode, portanto, em hipótese alguma, alegar, no seu caso, a “inexistência de registros”. Uma personagem tão peculiar teria inevitavelmente deixado rastros na História; para começar, ele teria sido citado por Flávio José; teria recebido um consulado, no mínimo um consulado sufeta (tendo em vista tanto ter se posicionado no “lado certo”, i.e., vitorioso, quanto também levando-se em conta a sua nobreza). Tem-se o “cursus” de TODOS os comandantes das legiões que participaram da revolta da Judéia, e que estiveram presentes no conselho de guerra de Tito; e todos foram, mais cedo ou mais tarde, alçados a cargos ou comandos mais importantes, recebendo a recompensa do consulado, quer ordinário, quer sufeta. Sobre Lêntulo… NADA… Se não há registros de espécie alguma, quer em Flávio José, quer entre os demais historiadores, quer nos testemunhos epigráficos, o mais razoável, racional e econômico a supor é que isso se deva ao fato de ele simplesmente não tenha existido…

Nenhuma dessas muitas e grandes dificuldades é explicada, ou sequer enfrentada condignamente, pelo sr. Pedro de Campos. Como no caso da progênie de Lêntulo Sura, ele, infelizmente, se vale duma “hipótese de trabalho” não demonstrada, qual seja, que Lêntulo “deveria” exercer uma legação na Judéia, já que havia, na estrutura administrativa romana, “legações”…

Portanto, não há como se sustentar, historicamente, que houve, no tempo de Cristo, um senador “Públio Lêntulo”, em missão à Judéia, que tenha escrito um relatório ao Imperador.

6.3. Investigações sobre a “Carta de Lêntulo”:

Nenhum dos óbices à autenticidade da “carta de Lêntulo”, infelizmente, foi eliminado pelo estudo do sr. Campos. Tais óbices são de quatro tipos: a) o próprio tipo do documento (não é nem um pouco típico da correspondência administrativa romana, dadas as circunstâncias); b) o conteúdo do documento (não se parece em nada um relatório, mas sim um texto devocional, a descrição dum ícone de Cristo); c) a própria physiognomia Christi presente no documento (que somente se estabeleceu muito depois, muitos séculos depois, da pretensa existência do missivista); enfim, d) a própria história da transmissão do manuscrito, que ocorreu, a partir dos meados do séc. XIV dC, em duas fases distintas (o texto; o autor), que demonstram, sem qualquer dúvida, a não autenticidade do conjunto. Agora, mostrando rapidamente cada um desses itens:

·         Tipologia do Documento: na administração provincial romana havia um altíssimo grau de oralidade; relatórios eram a exceção, não a regra; não se faziam relatórios dessa espécie, apenas para “informar” ao Imperador (ou ao Senado?) sobre a existência dum determinado elemento considerado subversivo, ou sobre o suplício dado a um “criador de casos”. Lidar com isso era parte das obrigações normais, corriqueiras, dos governadores romanos, fossem procônsules senatoriais ou legados/procuradores imperiais. A questão mudava de figura quando se tratava de cidadãos romanos (por isso São Paulo Apóstolo pôde “apelar a César”, e ser julgado na própria Roma – essa situação, sim, geraria um “relatório”), ou então quando se tratava de algum “maioral” local – cujo tratamento “cruel” e “arbitrário”, dependendo das circunstâncias, poderia levar a queixas ao Imperador, em Roma, mediante embaixadas, e à eventual destituição do governador. Fora isso, os governadores romanos tinham um alto grau de liberdade para tratar dessas situações do jeito que considerassem mais oportuno – e as obras históricas de Flávio José estão cheias de exemplos disso. Além do mais (e isso é extremamente importante de se notar), não se escrevia ao Imperador acerca dum fato consumado: se, por qualquer motivo que fosse, o caso de Jesus se mostrasse singular a ponto de ensejar uma correspondência do prefeito da Judéia (nunca dum “legado” senatorial inexistente…) ao Imperador, seria para pedir ao Imperador instruções acerca de como lidar com o caso, enquanto o próprio prisioneiro permaneceria detido; uma vez que Jesus havia sido não apenas condenado, mas tivera a sentença executada, isso, por si só, é evidência de que nada haveria a comunicar. No caso específico da Judéia, o procurador atuava tanto como comandante das tropas auxiliares quanto como juiz de última instância (não podendo contar, como se viu, com o auxílio de nenhum “legatus iuridicus” senatorial…), podendo, pelo instituto da cognitio extra ordinem, julgar e condenar à morte (detinha, como aliás qualquer governador romano, o ius gladii, o poder de executar sentenças capitais), mediante decisões sem apelação, e sem precisar se preocupar em informar sequer o legado da Síria, quanto mais o Imperador. Tinha, claro, que tomar certos cuidados com os cidadãos romanos e com os “maiorais” locais, como já citado, mas, fora isso, estava virtualmente livre. O Imperador e seu “staff” em Roma (na época, ainda muito pequeno em termos numéricos) tinha muito mais com o que se preocupar, não tinha tempo, nem interesse, para ficar lendo relatórios sobre fatos consumados relativos a obscuros profetas ou revolucionários; mandava seus legados propretorianos e seus procuradores para as províncias justamente para não ter que se preocupar com isso. Queria a paz mantida e os impostos recolhidos; o resto era secundário. Por isso é que Tácito pôde dizer que, na Judéia, sub Tiberio quies, “sob Tibério, tudo permaneceu calmo” – porque os dois procuradores eqüestres que governaram a província sob o seu reinado, Valério Grato (c.15 – c.25 dC) e Pôncio Pilatos (c.26 – c.36 dC), mantiveram as coisas “sob controle”, sem que fosse necessária qualquer intervenção do legado propretoriano da Síria. Não que não houvesse violências; o próprio Flávio José cita algumas; mas tudo se pôde resolver localmente; sem “stress”, e também sem relatórios ao Imperador (que, convém lembrar, JAMAIS seriam sobre fatos consumados, mas sim consultas, o que implicaria que Jesus seria mantido na prisão, ou sob custódia, até chegar a decisão imperial), sequer de Pilatos, quanto mais dum inexistente “legatus iuridicus” senatorial… Para quê mandar para uma província imperial procuratoriana, uma província de 2a classe, que estava “em paz”, um legado de nível senatorial, membro duma das mais prestigiosas casas da aristocracia patrícia romana, para auxiliar um reles procurador eqüestre? Nada disso faz o menor sentido… A idéia de que o governo central em Roma recebeu algum tipo de relatório da administração provincial judaica sobre Jesus tem origens cristãs, como uma espécie de compensação pela total falta de documentos oficiais contemporâneos sobre Cristo (de fato, ele era, tanto do ponto de vista dos maiorais judaicos quanto do da administração provincial romana, obscuro demais para merecer isso – não era nem cidadão romano, nem sacerdote, nem rico, nem guerreiro, nem nada – era um “João Ninguém”, que, caso causasse problemas, podia ser sumariamente tratado localmente, como, de fato, foi, mediante uma simples condenação cuja sentença, sem apelação a “instâncias superiores”, foi ditada ORALMENTE e imediatamente executada…); essa idéia do “relatório” está na origem do “ciclo de Pilatos” (obviamente, o principal candidato a mandar tal tipo de “relatório” a Roma seria Pilatos…), e surgiu com intuitos apologéticos; não tinha, como não tem, nenhum fundamento histórico. De fato, a importância cada vez maior dum “relatório” da administração provincial romana (leia-se Pilatos) ao Imperador diz respeito à importância posterior cada vez maior de Cristo, e à inexistência de fontes históricas “oficiais” sobre ele;

·         Conteúdo do Documento: aliás, o documento parece tudo, menos um relatório. Onde estão as informações pertinentes sobre o “subversivo” – sua origem, sua extração social e fortuna, suas ligações, o número de seus seguidores, o modo pelo qual ele poderia se tornar uma ameaça à paz na província? Nada disso existe; o pretenso “relatório” parece mais um texto devocional, a descrição dum ícone de Cristo – e isso não é fortuito; parece um texto devocional porque sua origem É um texto devocional, uma descrição dum ícone de Cristo, mesclado com reminiscências dos Evangelhos, mesmo dos Salmos – um conteúdo no mínimo estranhíssimo para um relatório burocrático romano;

·         Descrição da Face de Cristo: a descrição da face de Cristo constante na “carta” é a canônica; ora, tal descrição somente começou a se firmar, na tradição cristã mediterrânica, a partir dos séculos V e VI dC, e somente triunfou inconteste a partir dos meados do séc. IX dC (com o fim da querela das imagens em Bizâncio). As mais antigas tradições artísticas cristãs para a representação de Cristo são flagrantemente contrárias ao conteúdo da “carta de Lêntulo” (quer optando pela “teoria da fealdade”, quer, na arte das catacumbas, representando Cristo como um jovem imberbe e de cabelos curtos, ou não muito longos – isso tudo já foi objeto dum estudo detalhado, de minha autoria, que se encontra neste mesmo “blog”). Portanto, a “carta” não serviu em absoluto para fixar uma iconografia; ao contrário, ela é CONSEQUÊNCIA da fixação dessa iconografia. É igualmente inútil se tentar obter uma “saída” a partir do “ciclo de Pilatos”; tal “ciclo” também é considerado, pelo consenso dos historiadores, como espúrio (embora tenha credenciais bem melhores que a “carta de Lêntulo”, podendo remontar até a São Justino o Mártir, nos meados do séc. II dC, e a Tertuliano de Cartago, nos finais desse mesmo século); mais ainda, o ciclo de Pilatos não pressupõe nenhuma carta de “Lêntulo”, mas sim “atos” de Pilatos (que, pelas características do que é dito, não poderiam ser jamais “relatórios” enviados a Roma, mas sim documentos narrando, do ponto de vista cristão, o julgamento de Jesus por Pilatos, no estilo dos “atos” dos mártires); esses pretensos “atos” foram se tornando cada vez mais complexos ao longo dos séculos III e IV dC, mas não incluíam descrições do rosto de Cristo, que somente começaram a aparecer, dentro da iconografia tradicional, a partir dos sécs. V/VI dC; e (é sempre bom lembrar isso), mesmo que fosse possível provar alguma verdade nesses “atos” de Pilatos, eles referir-se-iam a Pilatos, não a “Lêntulo”, que não é citado (e nem a sua “carta”) em nenhum ponto desse ciclo;

·         História da Transmissão do Texto da Carta: a carta não é citada por ninguém do séc. I dC aos meados do séc. XIV dC. E nem seu autor. Não é citada sequer por São João de Damasco (que, aliás, não escreveu uma carta ao Imperador Teófilo; essa carta é apócrifa e, de qualquer modo, não menciona nem “Lêntulo”, nem sua carta, descreve o rosto de Cristo dentro do esquema que já se estava tornando canônico, mas isso não prova nada com relação à autenticidade da “Epistula Lentuli”); e nem a “carta de Lêntulo” era conhecida no séc. VIII dC, como o sr. Campos parece deduzir (erradamente) de manuscritos pretensamente utilizados por Jerônimo Xavier, no início do séc. XVII, para compor sua “Vida de Cristo”, como já se mostrou. Jerônimo Xavier acrescentou à sua “Vida de Cristo”, em persa, vários documentos apócrifos, principalmente do “ciclo de Pilatos”, e a própria “carta de Lêntulo”, mas isso não prova absolutamente nada – os acrescentou para formar uma “biografia” mais atraente, i.e., para fins catequéticos (embora mereça censuras por isso, como, aliás, mereceu em sua época, tão logo sua “Vida de Cristo” tornou-se conhecida na Europa). Assim, tanto o texto da carta quanto seu autor são desconhecidos até aos meados do séc. XIV dC, quando, então, aparece o texto (sem o autor), inicialmente no prefácio da “Vida de Cristo” de Ludolfo o Cartuxo, bem como, traduzido em dialeto toscano, numa série de “harmonias” de Evangelhos, ao longo do final do séc. XIV e da 1ª metade do séc. XV. Pelo 1º quartel do séc. XV dC, na Itália, começa-se então, ao texto da “carta”, até então anônimo, associar a figura dum “Públio Lêntulo”, que seria “o presidente de Jerusalém”, o “antecessor de Pilatos”, o “procônsul de Jerusalém”, ou qualquer outro título absurdo e inexistente na administração provincial romana da Judéia na época dos Júlio-Cláudios. Mas, por volta de 1470, essa fixação ainda estava em gestação, como prova a atribuição da “carta” a “Herodes” por Salvini, conforme já se comentou aqui. Portanto (e isso é sempre bom frisar), o texto da carta apenas apareceu, na sua forma atual, nos meados do séc. XIV dC (prólogo da “Vida de Cristo”; traduções toscanas em harmonias de Evangelhos), e a atribuição a “Lêntulo”, só depois, no 1o quartel do séc. XV dC (“Segundo Manuscrito de Iena”; manuscrito de Monte Cassino – mas ainda dúbia c. 1470 dC, pelo menos), consolidando-se no final do séc. XV dC e nos princípios do XVI dC, quando então proliferaram inúmeros manuscritos da “carta”, agora atribuída inequivocamente a um obscuro “Lêntulo”, cuja identificação, aliás, ainda variava (“antecessor de Pilatos”, “procônsul da Judéia”, “chefe de Jerusalém”), como também variava o destinatário (quer o Senado, quer o Imperador Augusto, quer o Imperador Tibério).

Portanto, caríssimo professor Pinheiro Martins, não há, absolutamente, como considerar plausível a existência de “Lêntulo”, ou de considerar genuína sua “carta”. E o trabalho de pesquisa do sr. Campos, malgrado seus elogiáveis esforços, nada agregou quanto a isso. E tudo o que aqui se listou resumidamente será depois postado detalhadamente.

Fico por aqui. Espero, sinceramente, que as considerações que venho tecendo ao longo deste texto lhe possam servir, bem como a qualquer outro leitor, para esclarecer um pouco melhor meus posicionamentos com referência a esse caso.

Saudações,

JCFF


[1] Veja-se “The Letter of Lentulus Describing Christ”, publicada originariamente na Yale University Library Gazette, vol. 50 (1975-76), fasc. 2, págs. 91-97; e depois na coletânea das obras de Lutz The Oldest Library Motto, and Other Library Essays, 1979, págs. 49-56: “The persistent tradition of an authentic portrait of Christ made during his lifetime was given new vitality in the fifteenth century by the discovery and circulation of a letter purporting to have been written to the Roman Senate during the reign of Tiberius Caesar by Publius Lentulus, procurator of Judea” (pág. 49) (…) “Since neither the Gospels nor the Epistles make any mention of the physical characteristics of Christ, the idealized word picture contained in Lentulus’s letter was presumably created originally by the profound desire of some devout Christian for a visual image of the Founder. Ironically enough, just about the time the letter was being dispersed so widely in Italy, the fearless critic Lorenzo Valla denounced it as a fraud in his famous treatise (composed about 1440) exposing the Donation of Constantine” (pág. 50).

[2] James Keith Elliot, “The Apocryphal New Testament – A Collection Apocryphal Christian Literature in an English Translation, based on M. R. James”, Oxford University Press, 1993, pág. 542. Mas note-se que nem todas as coleções de apócrifos do Novo Testamento listam a “carta de Lêntulo” – não por considerá-la verdadeira, mas sim, ao contrário, por considerar sua composição por demais tardia (sécs. XIV-XV) para merecer mesmo tal inclusão…

[3] Esse é, inclusive, o panorama que se vislumbra do elenco de mais de 70 manuscritos referentes à “epistula Lentuli” que von Dobschütz, em seu estudo detalhado, do final do séc. XIX, pôde reunir, desde os anônimos do séc. XIV (NENHUM ANTERIOR) até aos explicitamente referentes a “Lêntulo”, do 1o quartel do séc. XV aos inícios do séc. XVI (cf. Ernst von Dobschütz, Christusbilder – Untersuchungen zur christlichen Legende, in Texte und Untersuchungen zur Geschichte der altchristlichen Literatur, volume 18, Leipzig, 1899, 2o apêndice, págs. 308** a 330**).

[4] Claro, tudo isso refere-se apenas à existência de “Públio Lêntulo”, bem como à autenticidade de sua “carta”, ou seja, de seu comunicado ao Senado (ou ao Imperador?). A isso deve-se acrescentar outro conjunto de erros e/ou implausibilidades, ligado especificamente ao “material adicional” acerca dessa personagem que “Emanuel” (ou Xavier?) apresenta em “Há Dois Mil Anos”; citando apenas alguns: a) que “Públio Lêntulo” era bisneto, por linha paterna, de Lêntulo Sura, o conspirador catilinário (quando não há nenhuma indicação de que Sura tivesse tido descendentes masculinos que lhe sobrevivessem, sendo isso inclusive bem improvável, já que, por ocasião de sua morte, foi o seu enteado Marco Antônio que teve de lhe prestar as honras fúnebres; e, além disso, pelo fato de NENHUM dos Lêntulos historicamente atestados para a época de Cristo se encaixar, remotamente que seja, no perfil de “Públio Lêntulo”, sendo que NENHUM deles descendia de Lêntulo Sura – a descendência dos Lêntulos na época imperial foi garantia pela stirps dos Lêntulos Marcelinos, que não tinham relação com o ramo dos Lêntulos ao qual pertencia Lêntulo Sura); b) que tinha um parente, “Sálvio Lêntulo”, casado com a irmã da esposa de Pilatos (não havendo nenhuma indicação nem de um “Públio Lêntulo” e nem de um “Sálvio Lêntulo” entre os Lêntulos historicamente atestados para a época dos Júlio-Cláudios – aliás, tem-se aqui algo interessante: os Lêntulos historicamente atestados para a época dos Júlio-Cláudios não são citados por “Emanuel”/Xavier na psicografia, ao passo que Sálvio Lêntulo, o único parente de “Públio Lêntulo” citado por “Emanuel”/Xavier, não é atestado historicamente… estranho, não?); c) que exerceu “funções administrativas e judiciais” em Esmirna, sendo que não existiam, para tal cidade, tais tipos de funções permanentes, exercidas por magistrados romanos; d) que exerceu uma espécie de “missão” na Judéia, algo inexistente, nos termos colocados pela psicografia, na estrutura administrativa romana da época, sendo impensável o envio dum senador em missão a uma província procuratoriana; para exercer uma missão em nome do Senado, “Lêntulo” teria de ser um legatus ou um quaestor numa província senatorial, mas a Judéia não era, nem nunca foi, uma província senatorial; para exercer uma missão em nome do Imperador, “Lêntulo” teria de ser um legatus iuridicus numa província imperial propretoriana, mas nem a Judéia era, na época, uma província imperial propretoriana, e nem tais legati iuridici existiam na ocasião; de fato, essa função surgiu sob os Flávios, ou seja, depois do ano 70 dC; e) que ficou durante longos anos na Judéia (algo estranhíssimo e totalmente implausível, já que destruiria seu cursus honorum, no qual basear-se-ia toda a sua possibilidade de exercer cargos e magistraturas); f) que fez parte do “conselho de guerra” de Tito (quando se sabe perfeitamente a composição do conselho de guerra de Tito, a partir das informações do historiador Flávio José, sendo que dele não fazia parte nenhum Lêntulo); g) pelo inexplicável silêncio das fontes, principalmente de Flávio José, acerca da carreira de Lêntulo, quer pela nobreza da personagem (aristocracia senatorial de antiga extração), quer pela lealdade aos vitoriosos Flávios (sendo que teria sido recompensado por isso, ao menos com um consulado sufeta, bem como com governos provincianos, como o foram todos os aderentes ao partido flaviano, e inclusive TODOS os membros do “conselho de guerra” de Tito, o que não é em absoluto registrado para “Lêntulo”, em parte alguma), quer pelas peculiaridades de sua carreira na Judéia (tendo servido por muito tempo na Judéia, tendo participado da guerra judaica, inclusive como membro do “conselho de guerra” de Tito, e tendo sido, como já mencionado, benquisto dos Flávios, a nova dinastia que sucederia a Nero, como Xavier informa, “Públio Lêntulo” teria sido forçosamente citado por Flávio José, o historiador judeu protegido dos Flávios, em suas obras, especialmente em “A Guerra Judaica”, nem que fosse brevemente – no entanto, o silêncio de Flávio José, bem como de TODAS as demais fontes, históricas ou epigráficas, acerca desse “Públio Lêntulo”, é TOTAL). Se isso tudo, somado ao consenso histórico solidamente estabelecido, e já mencionado, acerca da inexistência de “Públio Lêntulo”, bem como a respeito da não autenticidade de sua “carta”, não é suficiente para que se descartem como ficção todas as informações que “Emanuel” dá acerca dessa sua pretensa encarnação passada, então, sinceramente, eu não sei o que seria. Creio que, no fundo, nem sequer aqueles que teimam em aceitar “Lêntulo” como tendo tido existência real sabem… A única coisa de que são capazes é de negar as evidências, com mil desculpas esfarrapadas.

[5] Além do já comentado acerca do consenso histórico desfavorável à existência de “Públio Lêntulo”, bem como à autenticidade de sua “carta”, e dos “erros adicionais” acrescidos à biografia da personagem pela psicografia “Há Dois Mil Anos”, vários outros erros factuais são cometidos, inexplicáveis e inadmissíveis num senador romano contemporâneo dos acontecimentos; apenas alguns exemplos: a) a maneira completamente errada pela qual os romanos são denominados na psicografia “Há Dois Mil Anos” – o pretenso senador Lêntulo desconhece completamente a onomástica e a prosopografia romana; esse tópico foi detalhadamente explorado em dois textos meus constantes deste “blog”, “Os Nomes das Personagens no livro ‘Há Dois Mil Anos’, de Chico Xavier” (partes I e II), e, por si só, seria suficiente para lançar seriíssimas dúvidas acerca da autenticidade de “Lêntulo”; b) a afirmação de que as tropas romanas na Judéia eram legionárias (quando lá nunca estacionaram legiões até à revolta de 66-72 dC); c) a denominação da esposa de Pilatos pelos nomes Cláudia (diretamente) e Prócula (indiretamente) – ou seja, pelos nomes “inventados” para a personagem, quer pelo “ciclo de Pilatos” (séc. V dC, e depois), no caso de Prócula, quer pela “Crônica do Pseudo-Déxter” (uma falsificação grotesca do séc. XVI!!!), para Cláudia – isto é, o pretenso senador Lêntulo, contemporâneo dos acontecimentos e testemunha ocular dos fatos, dá à esposa de Pilatos um nome que somente surgiu num “fake” de categoria inferior, do séc. XVI… Ou seja, a situação, quando bem examinada, mostra o caso de “Públio Lêntulo”/“Emanuel” como sem esperanças de salvação… Novamente: se isso tudo não é suficiente para se considerar todo o “affair” “Lêntulo”/“Emanuel” como uma fraude, então, pelos Céus, o quê seria?

[6] Não seria “Emanuel”, igualmente, fictício? De fato, diante de todas as evidências, ou se trata igualmente dum “espírito-guia” fictício, fruto da imaginação de Xavier, ou então (caso de fato exista) dum espírito galhofeiro e pseudo-sábio, que pôde brincar, e confundir, TODO o movimento espírita kardecista brasileiro, e por DÉCADAS, sem que NINGUÉM entre os encarnados adeptos da “fé raciocinada” percebesse, e sem que NINGUÉM entre os benfazejos “espíritos superiores” (ou, simplesmente, entre os “espíritos honestos” – deve havê-los, não?) se desse ao trabalho de impedir, ou controlar, ou avisar os pobres e míseros mortais… Sem dúvida, se “Emanuel” efetivamente existe, o que fica provado é que não se pode, em absoluto, contar com o “apoio espiritual”!

[7] Esse é mais um sintoma da “cartolatria” que impera nessas mentes deformadas: a única fonte de conhecimento seria a instrução formal; nesse mundo de dementes pseudo-cultos, somente pessoas formadas em Literatura poderiam escrever romances, ou poemas, ou obras de ficção; somente historiadores formados poderiam adquirir conhecimentos históricos, e pesquisar sobre o tema, e eventualmente escrever sobre isso… O sonho dessas pessoas, sem dúvida, é o de uma sociedade culturalmente totalitária, rigidamente compartimentalizada, em termos de “conhecimento legal”, em ilhas de “reserva de mercado”. São totalmente incapazes de compreender, p.ex., as diferenças e sutilezas existentes entre “autorização legal” e “aquisição de conhecimento”. Mas vamos a alguns exemplos esclarecedores. De fato, somente médicos podem exercer a Medicina, e somente engenheiros podem assinar, e executar, projetos de Engenharia. Estão apoiados por disposições legais, referentes a profissões tecnicamente regulamentadas. E isso é bom, e tem de ser assim – já que, nesses dois exemplos (o exercício da Medicina, incluindo a prescrição de remédios ou terapias, a cirurgia, etc., bem como a confecção, e execução, de projetos de Engenharia, nos seus mais diversos ramos), está nitidamente em jogo a segurança e a vida das pessoas: nos tratamentos médicos diversos e nos procedimentos cirúrgicos, bem como nos prédios construídos, ou nas barragens, estradas, veículos, máquinas, linhas de transmissão, etc. Tendo em vista o potencial que a PRÁTICA de tais atos tem de causar danos à segurança e à própria saúde, bem-estar e mesmo existência das pessoas (não se entrando aqui no mérito da aquisição de conhecimento), o Estado (acertadamente) determina que apenas pessoas FORMALMENTE TREINADAS possam exercer tais ATOS – sem, contudo, proibir que QUALQUER UM possa adquirir conhecimentos nesses campos. Tudo isso é muito justo, e necessário; e o que se disse aqui acerca de médicos e de engenheiros pode ser, claro, expandido para outras categorias profissionais, como dentistas, farmacêuticos, etc. Não obstante (sempre é bom lembrar), todas essas disposições legais não se referem (aliás, nem poderiam se referir, mesmo que quisessem) à aquisição do conhecimento, ou ao desenvolvimento intelectual, como se se pudesse legislar sobre aquilo que o cérebro humano aprende e utiliza no pensamento… Tanto é assim que (ao menos nas sociedades sadias) existe profunda e intensa interação entre todos aqueles que detêm DE FATO conhecimentos (sejam formalmente reconhecidos ou não em seus respectivos ramos; sejam ou não legalmente autorizados a exercer socialmente os ATOS correlatos): muitos engenheiros vêm contribuindo para a Medicina, a partir da confecção e/ou desenvolvimento de máquinas, aparelhos e mesmo processos diversos, de instrumentos cirúrgicos, etc., que inclusive têm viabilizado novos tratamentos (novas ligas metálicas para os instrumentos cirúrgicos, novos exames tornados possíveis a partir de máquinas eletrônicas sofisticadas, raios “laser” aplicados à cirurgia, e por aí vai – qual o médico que, COMO MÉDICO, teria condições de desenvolver isso, ou mesmo de adaptar isso aos usos que atualmente possuem na Medicina?); e muitos matemáticos, ou físicos, ou químicos (apenas para citar alguns) têm desenvolvido novas teorias, e mesmo novos processos, e também novas técnicas, que, quer por eles próprios, quer pelos engenheiros, quer (mais frequentemente) por uma interação entre eles, os engenheiros, os financistas e os administradores de empresas, podem ser (e são) utilizadas para a melhoria da Engenharia em si (p.ex., novos materiais de construção, incluindo novas ligas metálicas; novas técnicas construtivas, inclusive para a perfuração de túneis; novos processos de produção, inclusive viabilizando a exploração de petróleo em águas profundas; e por aí vai…). Tudo isso, claro, deve ser horrível para os “cartólatras” – afinal, para eles, só médicos entendem de Medicina (e só eles podem se pronunciar a respeito), só engenheiros entendem de Engenharia (e só eles podem se pronunciar a respeito), só os formados em Literatura entendem de escrever (e só eles podem escrever, claro…), só os historiadores entendem de História (e somente eles têm condição de escrever pesquisas históricas válidas…). Essa atitude é, infelizmente, muito mais comum em nosso país do que usualmente se pensa; e é uma das principais razões pelas quais ainda não passamos duma nação subdesenvolvida. Quem pensa que a aquisição de conhecimentos, a cultura e a competência técnica são definidas APENAS pela instrução formal específica e respectiva, devendo, além do mais, ser IMPOSTAS coercitivamente pela legislação, formando “reservas de mercado”, não pode mesmo ir adiante…

[8] Tudo isso foi levado em conta em meu texto “Reflexões Xavierianas”, neste “blog”.

[9] Esse manuscrito, especificamente, foi encomendado pelo bibliófilo Aretas de Patras (c.860 – depois de 932 dC), discípulo de Fócio, um intelectual bizantino, estudioso de Platão e dos clássicos, que depois seguiu a carreira eclesiástica e terminou seus dias como arcebispo metropolitano da Cesaréia da Capadócia. Além do Clarkiano, com obras de Platão, Aretas comissionou também manuscritos (sobreviventes) do matemático Euclides de Alexandria, do retor Élio Aristides e de Luciano de Samosata (talvez também de Dião Crisóstomo, já que há um manuscrito da espécie com anotações suas). No Clarkiano, após o “Menão”, consta a seguinte indicação, que permite datar precisamente o manuscrito: “Escrito pela mão de João, o Calígrafo, para Aretas de Patras, diácono, pelo preço de 13 moedas de ouro, no mês de novembro, na 14ª indicção, no ano 6.404 da Criação [896 dC], no reinado de Leão, o [Imperador] seguidor de Cristo [ou: “que governa de acordo com Cristo”; trata-se de Leão VI o Sábio, imperador 886-912 dC], filho de Basílio, de feliz memória [Basílio I, imperador 867-886 dC]”.

[10] Cf. Mateus, cap. 28, versículos 19 e 20: “19Portanto, ide e fazei com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo (Poreuthentes oun mathêteusate panta ta ethnê, baptizontes autous eis to onoma tou Patros, kai tou Huiou, kai tou Haghiou Pneumatos), 20e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei; eis que Eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo”.

[11] Ao menos formalmente; tangencialmente, pode-se dizer que isso está implícito na 1a carta de São Paulo Apóstolo aos Coríntios, cap. 6o, versículo 11, no que diz respeito ao papel do Filho e do Espírito Santo: “…mas fostes lavados, santificados e reabilitados pelo nome do Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito do nosso Deus” (…alla apelousasthe, alla heghiasthête, all’edikaiôthete en tôi onomati tou Kyriou Iêsou kai en tôi Pneumati tou Theou hêmôn). E, na doxologia final da 2a carta do mesmo Apóstolo aos Coríntios (cap. 13, versículo 13), a concepção trinitária encontra-se igualmente implícita: “Que a graça do Senhor Jesus, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco” (Hê charis tou Kyriou Iêsou Christou kai hê agapê tou Theou kai hê koinônia tou Haghiou Pneumatos meta pantôn hymôn).

[12] Em várias outras passagens do Novo Testamento, sem dúvida, menciona-se apenas o batismo “em nome de Jesus”, ou “em nome do Senhor”, p.ex., nos Atos dos Apóstolos, cap. 2o, versículo 28; cap. 8o, versículo 16; cap. 10, versículo 48; cap. 19, versículo 5o; também na carta de São Paulo aos Romanos, cap. 6o, versículo 3o, ou na carta do mesmo Apóstolo aos Gálatas, cap. 3o, versículo 27. Contudo, deve-se notar que: a) em nenhuma dessas passagens há a enunciação solene da fórmula batismal, mas sim a narrativa dum batismo, ou então um comentário acerca do referido sacramento – não se descreve, em nenhuma dessas passagens, como batizar, como realizar a cerimônia; e b) em Mateus, ao contrário, tem-se a fórmula batismal solenemente apresentada pelo próprio Jesus. Que o reconhecimento do papel do Espírito Santo era essencial no batismo (junto com o de Cristo e, obviamente o de Deus Pai), isso pode ser demonstrado na própria narrativa do capítulo 19 dos Atos dos Apóstolos, se se tomar não apenas o versículo 5o, mas o texto completo, desde o versículo 1o até ao versículo 7o – o que, entre outras coisas, diferenciava o batismo “de João” do batismo “de Jesus”.

[13] Didachê, cap. 7o, o qual diz respeito à cerimônia do batismo: “No que concerne ao batismo, assim batizareis [2a pessoa plural]: após terdes inicialmente dito todas essas coisas [i.e., as instruções catequéticas anteriormente constantes do documento], batizai em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo (“…en onoma tou Patros, kai tou Huiou, kai tou Haghion Pneumatos…”), em água viva [i.e., em água corrente]. Se não tiveres [2a pessoa sing.] água viva, batizarás com outro tipo d’água [i.e., num tanque]; se não a puderes ter fria, que seja morna. Mas, se não tiveres nem uma e nem outra [i.e., nem água corrente, nem um tanque], derramarás água três vezes na cabeça [do batizando], em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Antes do batismo o postulante deverá jejuar, tanto ele quanto todos aqueles que puderem, sendo que, ao batizando, ordenar-lhe-ás que jejue por um ou dois dias”. Não deixa de ser interessante notar que a Didachê considera lícito não apenas o batismo por imersão, mas também por infusão, em caso de necessidade. E nesse texto (do mesmo modo que em Mateus), não se contando a história dum batismo, nem se fazendo um comentário acerca do sacramento, ao contrário, enunciando-se solenemente a fórmula batismal, o modo pelo qual o batismo deveria ser efetuado, os nomes das Pessoas da Trindade são explicitamente elencados. Obviamente, a situação é habilmente “resolvida” pelos cépticos a partir da suposição, como de costume, duma interpolação na Didachê, ou duma redação mais recente para o documento, ou duma dependência (suposta, mas não provada) da Didachê para com Mateus, etc. Mais uma vez, sem nenhuma base histórico-documental para tanto.

[14] Cf. São Justino o Mártir, “Primeira Apologia a Favor dos Cristãos”, cap. 26 (parte): “Houve um samaritano, de nome Simão, nativo da aldeia de Gitão, que, no tempo de Cláudio César [imperador 41-54 dC], nesta vossa cidade imperial de Roma, executou portentosos atos de magia, a partir dos demônios que controlava. Ele foi mesmo considerado um deus, e como um deus foi honrado por vós com uma estátua, erigida na ilha do Tibre, entre as duas pontes, portando a seguinte inscrição, em latim: ‘SIMONI DEO SANCTO’, ou seja, ‘a Simão, o venerável deus’”. O pedestal da estátua, com a inscrição (CIL VI, 567 = ILS 3.474), foi de fato encontrado em 1574, exatamente na ilha do Tibre, mas a inscrição que constava não era SIMONI DEO SANCTO (“a Simão, o venerável deus”), e sim SEMONI SANCO DEO (“ao deus Semão Sanco”). O texto completo é: SEMONI SANCO DEO FIDIVM SACRVM SEX(tus) POMPEIVS SP(urii) F(ilius) COL(lina tribu) MVSSIANVS QVINQVENNALIS DECVR(iae) BIDENTALIS DONVM DEDIT. Além dessa, outras inscrições a Semão Sanco achadas em Roma são CIL VI, 568 (= ILS 3.743, do Quirinal, junto à igreja de São Silvestre, séc. II dC; SANCO SANCTO SEMON…) e CIL VI, 30.944 (= ILS 3.472, provavelmente do Quirinal, inícios do séc. III dC; SEMONI SANCO SANCTO DEO FIDIO SACRVM…). A confusão de sons entre as letras gregas eta (“H”) e o iota (“I”), que já devia ocorrer no grego falado nessa época (originariamente, o eta representava o som dum “e” longo, quase um “i”, e o iota representava o som comum do “i”; no grego medieval, o som das duas letras já se confundia, de modo que um nome como “Dêmêtrios”, grafado com dois “etas”, era pronunciado “Dimitrios”, como se contivesse dois iotas), é idêntica à que se verifica entre “Chrestus” e “Christus”; apenas levando-se em conta a pronúncia efetiva, o nome de Cristo podia ser grafado (por quem não conhecesse sua origem) quer com eta, quer com iota, e é o que ocorre na citação de Suetônio acerca dos judeus expulsos de Roma sob Cláudio, por terem causado perturbações, “incitados por Chrestus”, cf. Suetônio, “Sobre as Vidas dos Césares”, “Vida de Cláudio”, cap. 25, par. 4o, início: “Já que os judeus constantemente incitavam perturbações [da ordem pública], instigados por Cresto, ele [Cláudio] os expulsou de Roma” (Iudaeos impulsore Chresto assidue tumultuantis, Roma expulit). A essa expulsão alude o livro dos Atos dos Apóstolos, cap. 18, vers. 2o, quando informa sobre o encontro do apóstolo Paulo, em Corinto, com o casal de judeus Áquila e Priscila, que haviam chegado recentemente àquela cidade vindos de Roma, já que Cláudio havia decretado que todos os judeus deixassem a cidade imperial. Essa circunstância específica dá ainda mais credibilidade ao fato de que, ao citar “Chrestus”, Suetônio, de fato, estaria se referindo a “Christus” (tomando a pronúncia do “i” como ligada a um “eta”, no latim transcrito como “e”); os “distúrbios” haviam sido, de fato “provocados” por Cristo, no sentido de que tiveram por causa as diferenças, cada vez mais marcantes, entre a “seita” dos cristãos e as outras correntes do Judaísmo.

[15] Especificamente sobre essa famosa “inscrição (ou edito) de Nazaré”, Erhard Grzyhek e Marta Sordi defenderam a tese de que se tratava dum edito de Nero contra os cristãos da Judéia, cf. “L’Édit de Nazareth et La Politique de Néron à l’égard des Chrétiens”, Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik (ZPE), vol. 120, 1998, págs. 279-91 (no que pese à elegância e à erudição da apresentação, eu, pessoalmente, não considero válida tal tese), ao passo que Adalberto Giovannini e Marguerite Hirt propuseram (a meu ver de modo bem convincente) para a peça em questão uma origem na Ásia Menor, por volta do ano 30 aC, tendo ela sido transportada posteriormente (na época medieval) para a Palestina, p.ex. como lastro de navio, cf. “L’Inscription de Nazareth: Nouvelle Interprétation”, Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik (ZPE), vol. 124, 1999, págs. 107-32. De qualquer modo, pessoalmente não considero a “inscrição de Nazaré” como um testemunho válido da existência dum aglomerado urbano no local à época de Cristo. Uma detalhada exposição do assunto pode ser obtida no trabalho de E. Tsalampouni, “The Nazareth Inscription – a Controversial Piece of Palestinian Epigraphy (1930-1999)”, Tekmeria, vol. 6, 2001 (publicação do National Hellenic Research Foundation – Institute of Greek and Roman Antiquity), págs. 70-122.

[16] O relatório final das escavações realizadas entre 1997 e 2002 em Nazaré mostra a identificação inequívoca, num ambiente rural de cultivos em terraços, ligados a um povoado de pequeno porte, de vários fragmentos de cerâmica datáveis do período compreendido entre os séculos I aC e I dC; quanto a isso, pode-se consultar, com proveito, o texto final, completo, do referido relatório, “Surveys and Excavations at the Nazareth Village Farm (1997-2002) – Final Report”, por Stephen Pfann, Ross Voss and Yehudah Rapuano, no Bulletin of the Anglo-Israel Archaeological Society, vol. 25, 2007, págs. 19 a 79 – o referido relatório pode ser obtido, na íntegra, no seguinte endereço eletrônico: http://www.uhl.ac/articles/NazarethVillageFarm-FinalReport.pdf; entrando-se com a palavra “first” no módulo de pesquisa do Adobe, podem ser rapidamente localizados, no texto, os locais e as circunstâncias desses achados. Tomando-se, à guisa de exemplo, algumas das considerações gerais tecidas acerca dos achados cerâmicos (pág. 69): “The earliest occupation seems to have occurred in the late Hellenistic period of the first and second centuries BC. (…) A small amount of material dated to the Early Roman period of the first century BC to first century AD was found in Areas A-1, A-2, and C-1. The best represented pottery at the site was dated from the Late Roman to the early Byzantine period of the third to fourth or fifth centuries AD. The only area in which pottery from this period was not found was Area B-1.(…) The pottery generally exhibits characteristics typical of the Galilee region. This is especially observed in examples of the Early and Late Roman Periods (…) The sparse, fragmentary nature of the pottery did not permit us to determine the ethnic identity of the occupants of the farm territory in any of the periods. Nevertheless, it may be observed that in the Early and Late Roman periods, the ceramic forms are largely familiar from the Kfar Hananiah pottery repertoire, noteworthy for its having been manufactured primarily for the consumption of those observing Jewish halacha (…)”. Ou seja: mesmo esparsos, há achados cerâmicos inequívocos do período romano inicial (sécs. I aC a I dC), e que podem, com alto grau de probabilidade, ser ligados especificamente a uma população judia.

[17] Um pequeno resumo, em linhas bem gerais, da linha de argumentação desse livro pode ser obtido no seguinte endereço eletrônico: http://pace.mcmaster.ca/media/pdf/sbl/whealey2000.pdf.

[18] A mesma pergunta que se tem feito, inutilmente, àqueles que, por outro lado, alegam que “Públio Lêntulo” existiu: o que seria suficiente para os convencer de que tal personagem não existiu? Para isso não fornecem resposta; esquivam-se dessa indagação, e lançam mão de suas manobras diversionistas, porque, no fundo, para essas pessoas, NADA as convencerá de que “Lêntulo” não existiu – sua “fé” em Xavier/“Emanuel” assim o exige. Note, caro professor Pinheiro Martins, o grau de deformação a que pode chegar o raciocínio dos fanáticos: invertem o ônus da prova (pois teriam eles, antes de mais nada, que provar a existência de Lêntulo, já que são eles que vão contra o consenso histórico estabelecido) e, ao mesmo tempo, consideram sempre “insuficientes” todas as evidências que se acumulam acerca da inexistência de “Lêntulo”, bem como acerca da falsidade de sua “carta”. Para essas pessoas, igualmente, não há nada a ser feito, pois já escolheram de antemão em quê acreditar, e absolutamente nada as fará mudar de idéia. O debate, aqui, é inútil.

[19] Vejam-se, p.ex., as informações constantes no seguinte endereço eletrônico: http://www.mensagemespirita.com.br/escritor/3001998/pedro-de-campos.

[20] Quanto a isso, veja-se o seguinte endereço eletrônico: http://www.ufo.com.br/blog/pedrodecampos.

[21] Mais uma vez esclarecendo, e enfatizando: deve-se manter bem distinta a pesquisa e a atividade cultural e intelectual, por um lado, e o exercício de atividade que ponha em risco a vida das pessoas, ou o próprio funcionamento da sociedade…

[22] Afinal, quem pode, além da própria pessoa, descobrir, ou provar, uma intenção? E o que tem a ver a intenção (boa ou má, virtuosa ou sórdida, não importa) com a qualidade dos argumentos apresentados? Acaso não pode uma pessoa bem intencionada e virtuosa escrever asneiras, ou uma pessoa viciada tecer comentários pertinentes? Em minha modesta opinião, caro professor, o único apto a conhecer, e a julgar, nossas intenções, é Deus. Diante d’Ele (e apenas diante d’Ele) é que teremos que nos justificar quanto a isso (bem como quanto a todo o resto), e sem possibilidade de subterfúgios.

[23] Cf. “Studies in Renaissance Thought and Letters”, vol. 3, Paul Oskar Kristeller, in “Storia e Letteratura – Raccolta di Studi e Testi, 178”, Edizione di Storia e Letteratura, 1993, 698 pags., Roma, 1993. Especificamente acerca de Salvini, q.v. cap. 10, Sebastiano Salvini, a Florentine Humanist and Theologian, and a Member of Marsilio Ficino’s Platonic Academy, págs. 173-206: a “carta de Lêntulo” foi traduzida por Salvini a partir do latim e por ele denominada “Epistola di Herode Re di Giudei a Senatori Romani”, iniciando-se com o usual “Apparve a nostril tempi et anchora e huomo di gran virtu…”.

[24] ·Mas no “Journal of Sacred Literature – New Series”, vol. V, outubro de 1853, a descoberta é ligada (pág. 251) a “escavações efetuadas em 1808 no reino de Nápoles – a data, assim, foi “corrigida”, para tornar plausível o fato de o achado ter ocorrido na época da ocupação francesa de Nápoles. Não obstante, a data mais “antiga”, de 1280, acabou paulatinamente por se impor; e no vol. IX dessa mesma publicação, referente ao período de abril a junho de 1859, a data já aparece (págs. 227-28, abril 1859) como sendo 1280… Certamente, uma data mais “antiga” impressionava mais, e aumentava as vendas…

[25] Trata-se, quase certamente, do Códice nº 1821 da Real Biblioteca do Mosteiro de São Lourenço do Escorial, um texto persa (em caracteres árabes) dos Quatro Evangelhos, em 263 fólios, enviado pelo jesuíta Jerônimo Xavier (cf. “Dirección de Actuaciones Histórico-Artísticas sobre Bienes Muebles y Museos – Archivo General de Palacio – Códices Árabes de la Real Biblioteca del Monasterio de San Lorenzo de El Escorial”, pág. 492). Aonde, aí, está “Lêntulo”?

[26] Cf. “O Livro dos Médiuns”, item 230, capítulo XX da 2a parte.

[27] Quanto a isso, pode-se consultar com proveito o cuidadoso estudo de Brian W. Jones, “Domitian and the Senatorial Order – a Prosopographical Study of Domitian’s Relationship with the Senate, AD 81-96”, American Philosophical Society, 1979, que elenca todos os testemunhos disponíveis da “nova aristocracia” elevada ao poder pelos Flávios, a partir dos reinados de Vespasiano (69-79 dC), Tito (79-81 dC) e Domiciano (81-96 dC), mostrando os antecedentes e a situação no reinado deste último. Lá constam informações sobre os últimos Lêntulos, bem como sobre todos os (reais) participantes do “conselho de guerra” de Tito, e também sobre os primeiros legati iuridici. Claro, não consta NADA acerca de “Públio Lêntulo”… É um livro que vale a pena ser adquirido por aqueles que teimam em sustentar que “muito foi perdido”, que “quase nada restou”, que “não se podem tirar conclusões do que sobreviveu” – eles poderão passar os olhos sobre os cursi honorum de, literalmente, centenas de senadores da época dos Flávios, incluindo tanto os “emergentes” quanto os “sobreviventes” da época de Nero (os últimos consulares e senadores Lêntulos entre eles). Novamente, a pergunta: onde está AQUELE Lêntulo, especificamente?

[28] “Some of Vatia’s slaves might even have liked the [harsh] discipline [of the gladiatorial school, the ludus]. They could hardly have minded the rewards. Victorious gladiators got glory, cash, celebrity, and sex – which was better than what other slaves faced. And yet two hundred gladiators decided to break out of Vatia’s ludus. By the standards of Roman slavery, gladiators were privileged. If it was ironic that they, of all people, should spark a slave uprising, it was also typical. Throughout history, privileged slaves have often led revolts, perhaps because they have high hopes. Did the gladiators explode because Vatia tightened the screws? Perhaps, or perhaps theirs was a revolution of rising expectations. Hollywood made one of Vatia’s trainers especially brutal, but we know next to nothing about Vatia and even less about the trainers. Even Vatia’s name is uncertain, since the sources call him either Lentulus Batiatus [Polybius] or Gnaeus Lentulus [Orosius]. According to a plausible theory, ‘Batiatus’ is a mistake; he was really Gnaeus Cornelius Lentulus Vatia, a Roman citizen from a rich and noble family known to have owned gladiators in Capua. The man was crude and thick-skinned enough not to mind having a job description – gladiatorial school owner (lanista in Latin) that Romans compared to butcher (lanius) or pimp (leno). Perhaps he kept his distance and left the management of the ludus to others, while he stayed in Rome. Maybe he never even met Spartacus before the revolt; who knows?” (“The Spartacus War”, Barry S. Strauss, Simon & Schuster, Nova York, 2009, pp. 24-25).

[29] Quanto ao cursus honorum de Sura, veja-se, p.ex., Broughton, “Magistrates of the Roman Republic”, vol. II – Anuário, sob os anos 81 aC, 74 aC, 71 aC, 70 aC e 63 aC, e vol. III – Suplemento, índice alfabético, pág. 553. Por outro lado, não há evidências de que Sura tenha exercido um cargo de governadoria na Sicília.

[30] Cf. G. V. Sumner, “The Orators in Cicero’s Btutus – Prosopography and Commentary”, G. V., University of Toronto Press, 1973, página 127.

30 respostas a “Resposta ao Prof. Pinheiro Martins com referências iniciais a Pedro de Campos e a seu trabalho sobre a existência de Públio Lentulus/Emmanuel, guia de Chico Xavier”

  1. Biasetto Diz:

    Descobri o “outro lado”, com participação especial de Clarêncio, o mestre de André Luiz:
    .
    http://www.youtube.com/watch?v=eZ9IHu-TA4w&feature=player_embedded#at=188

  2. Biasetto Diz:

    Tem que pôr no início do clip, quando colei o link, o clip ficou no fim.
    Depois vou ler o artigo do JCFF.
    Até.

  3. Biasetto Diz:

    Aqui está o link legal:
    .
    http://www.youtube.com/watch?v=eZ9IHu-TA4w
    .
    Vejam o Clarêncio, o velhinho que resgatou André Luiz, lá no umbral.

  4. Biasetto Diz:

    Olá Sr. José Carlos,
    Obviamente, que tuas pesquisas e conclusões merecem todo respeito, porque são muito bem embasadas.
    Não tenho argumentos para rebatê-las, por falta de conhecimento específico sobre o tema.
    Porém, confesso que fica difícil ler todo o texto.
    Gostaria que o senhor fosse mais sintético, avaliando a obra do Sr. Pedro de Campos, especialmente em resposta ao meu amigo Roberto Scur, que há meses aguarda tal matéria.
    Parabéns pelas pesquisas.
    Saudações…

  5. Vitor Diz:

    Biasetto,
    essa é a versão sintética.

  6. Biasetto Diz:

    Hehehe!

  7. Marcelo Diz:

    Sr. José Carlos,

    Antes de mais nada gostaria de parabenizá-lo pelo seu trabalho detalhado e bastante didático. A título de esclarecimento, gostaria que o senhor comentasse os trechos que estão abaixo transcritos.
    “a Síria era uma província imperial, governada por um ex-cônsul, que tinha o título de “legado de Augusto com poderes propretorianos” (legatus Augusti pro praetore), o qual não tinha “imperium”, já que era um representante direto do Imperador; somente o Imperador poderia nomear-lhe “legati” senatoriais; enfim, a Judéia era uma província imperial procuratoriana, governada por um procurador eqüestre, que também, obviamente, não possuía “imperium” (e que não era nem magistrado, e nem promagistrado – era um “procurador”, um “encarregado”, posto sob a égide do legado propretoriano mais próximo – no caso da Judéia, do legado propretoriano da Síria), e que nem podia receber do Imperador “legati”, já que “legati” eram senadores… Ele (no caso, Pilatos) tinha que “se virar” como pudesse, e, se algo saísse fora do controle, não era o Imperador que trataria do assunto, mas sim o legado propretoriano da Síria, como aliás ocorreu inúmeras vezes “.
    “…não se escrevia ao Imperador acerca dum fato consumado: se, por qualquer motivo que fosse, o caso de Jesus se mostrasse singular a ponto de ensejar uma correspondência do prefeito da Judéia (nunca dum “legado” senatorial inexistente…) ao Imperador, seria para pedir ao Imperador instruções acerca de como lidar com o caso,…”.
    A minha dúvida é a seguinte:
    Em caso de dúvida, o prefeito da Judéia reportaria-se ao Imperador ou ao legado propretoriano da Síra?

  8. José Carlos Ferreira Fernandes Diz:

    Caro sr. Biasetto:

    O “resumo da ópera” é o seguinte: malgrado seus louváveis esforços, o sr. Pedro de Campos não consegue trazer à luz nenhum argumento novo que venha a desafiar o consenso histórico atualmente estabelecido acerca da inexistência de “Públio Lêntulo”, bem como acerca do fato de sua “carta” ser apócrifa (falsa, forjada). Igualmente, não consegue trazer à luz nenhum argumento que justifique os erros, incongruências ou implausibilidades flagrantes que a psicografia “Há Dois Mil Anos” acrescenta à “biografia” de “Lêntulo”. Basicamente, a questão pode ser analisada sob três aspectos. Muito resumidamente:

    Descendência de Lêntulo Sura: o sr. Campos se apóia numa hipótese sem demonstração, a de que Sura “deveria” ter tido um filho, que não pôde prestar-lhe as honras fúnebres quer por “medo”, quer por se encontrar “ausente de Roma”, em “campanha militar”. Mas mostra-se incapaz de evidenciá-la.

    Existência dum “Públio Lêntulo” contemporâneo de Cristo: o sr. Campos não conseguiu elencar nenhuma evidência de que efetivamente existisse um “Públio Lêntulo” contemporâneo de Cristo que se encaixasse, mesmo que em linhas gerais, no perfil criado pela “carta” e por “Há Dois Mil Anos”; além do mais, não forneceu nenhuma contestação às evidências contrárias a tal existência. Uma pesquisa das fontes epigráficas, que, quanto a isso, seria algo primário, não foi realizada.

    Existência da “carta” de Lêntulo: o sr. Campos não conseguiu elencar nenhuma evidência acerca da existência dum “relatório” enviado ao Imperador, acerca de Jesus. O “ciclo de Pilatos” (que é apócrifo, sendo esse o consenso dos historiadores) não menciona nem Lêntulo e nem, na sua fase primitiva (sécs. V-VII dC), nenhum relatório enviado ao Imperador. E, quando passa a mencioná-los, a autoria é sempre ligada a Pilatos, não a um “Lêntulo”. A posição permanece imutável: o texto da “carta” surgiu nos meados do séc. XIV dC, e a atribuição a um (até então nunca citado, e desconhecido) Lêntulo, a partir do 1º quartel do séc. XV dC. Esses os fatos. Mais ainda: a descrição da face de Cristo constante na “carta” é a “bela”, que somente surgiu a partir do séc. IV dC, ganhou força nos sécs. V-VI dC e triunfou a partir do séc. IX dC; os primeiros testemunhos acerca da face de Cristo, inclusive os de São Justino o Mártir e de Tertuliano de Cartago, que o sr. Campos cita, descreviam o aspecto de Cristo como “feio” – ora, se o texto da carta já existisse na época dessas duas testemunhas (meados do séc. II dC a inícios do séc. III dC), elas descreveriam a face de Cristo como “bela” (como consta na “carta”), e não como “feia” (como de fato o fizeram).

    Essa a situação, em linhas bem gerais. Muitos e exaustivos detalhes seguir-se-ão, quer a partir d’ “O Feitiço de Áquila”, quer com a análise completa da obra do sr. Campos, propriamente dita. Sds,

    JCFF.

  9. José Carlos Ferreira Fernandes Diz:

    Caro sr. Marcelo:

    Como regra geral, um governador romano era o comandante-em-chefe das forças armadas existentes em sua província. Nas províncias senatoriais (com a exceção da África, até à época de Calígula) não estacionavam legiões, e, portanto, os procônsules senatoriais (quer ex-cônsules, como no caso das províncias da África e da Ásia, quer ex-pretores, como nas demais) comandavam apenas as eventuais tropas auxiliares presentes. Até à época de Calígula (reinou 37-41 dC), o procônsul da África também comandava a terceira legião, “Augusta”, que estacionava na província, mas aquele Imperador retirou do procônsul o comando dessa legião (bem como, na prática, o controle sobre a zona fronteiriça da Numídia), dando-o a um “legatus” próprio, diretamente responsável ante o governo central de Roma. A partir dessa época, nenhum procônsul, em províncias senatoriais, comandou legiões.

    Nas províncias imperiais propretorianas (governadas por “legados de Augusto com poderes propretorianos”, “legati Augusti pro praetore”), senadores, podiam ou não estacionar legiões. Se não estacionassem legiões (caso, p.ex., da província da Lusitânia), o legado propretoriano comandava as tropas auxiliares eventualmente presentes. Se houvesse apenas uma legião (caso, p.ex., da província da Tarragonense após a guerra civil de 69 dC, onde estacionou apenas a sétima, “Gemina”), o legado propretoriano era também o comandante dessa legião (os dois ofícios se confundiam). Se houvesse mais de uma legião (caso, p.ex., da Sìria), o legado propretoriano era o comandante-em-chefe de todas as legiões, mas cada legião tinha o seu comandante (“legatus legionis”) próprio. Todos os comandantes de legiões (exceto no Egito) eram senadores.

    A Judéia antes da revolta de 66-72 dC era uma província imperial procuratoriana, governada não por um senador, mas sim por um membro da “ordem equestre” (o 2º estamento da classe dirigente romana, situado abaixo da “ordem senatorial”), que tinha inicialmente o título de “prefeito”, depois o de “procurador”. Em nenhuma das províncias procuratorianas (Judéia, as duas Mauritânias, etc.) havia legiões estacionadas; os procuradores equestres tinham apenas à sua disposição tropas auxiliares. Na Judéia, havia uma unidade de cavalaria, “ala”, e quatro de infantaria, “cohortes”, no total uns dois a três mil homens; com isso, o “procurador” tinha que resolver os problemas de segurança da província. Na Judéia não estacionaram legiões, até à revolta de 66-72 dC. Após a revolta, a Judéia foi transformada em província propretoriana, com uma legião estacionada (a décima, “Fretensis”), e o governador da Judéia pós-revolta (agora um legado propretoriano) era, igualmente, o “legatus legionis” da décima, “Fretensis”.

    Se houvesse problemas de ordem militar que se mostrassem acima da capacidade do procurador da Judéia, o legado propretoriano da Síria (que comandava quatro legiões, além de tropas auxiliares) podia intervir; podia intervir também se houvesse algum “racha” sério de autoridade, entre a administração romana local e os maiorais locais, ou mesmo se houvesse uma “missão” especial a ser desempenhada, para a qual se supusesse que as forças provinciais da Judéia seriam insuficientes. Assim, quando Herodes o Grande morreu (4 aC), e o caos se instalou no então “reino-cliente” da Judéia, o legado propretoriano da Síria, Quintílio Varo, interveio; quando, em 36 dC, os samaritanos se queixaram de Pilatos à administração romana, e a situação estava se deteriorando, o legado propretoriano da Síria, Vitélio, interveio, foi a Jerusalém e depôs Pilatos; em 41 dC, quando o demente Calígula resolveu que sua estátua deveria ser instalada no Templo de Jerusalém (e sabendo que isso encontraria acerba oposição por parte da população), encarregou o legado propretoriano da Síria, Petrônio, de realizar essa “missão” (Petrônio fez corpo mole, e o assassinato de Calígula, pouco depois, resolveu uma situação que tinha tudo para ser explosiva); e, em 66 dC, no início da grande revolta judaica, quando se tornou patente que o procurador Géssio Floro era incapaz de lidar com a situação, o legado propretoriano da Sìria, Céstio Galo, marchou com suas legiões até Jerusalém, a fim de “resolver” a questão (e foi vergonhosamente derrotado – a partir daí, a revolta judaica ganhou força, e passou a controlar toda a antiga província).

    Portanto, o legado propretoriano da Síria tinha uma grande capacidade de “intervir” militarmente na vizinha Judéia. Mas isso dizia respeito a casos envolvendo operações militares e segurança em geral. Se houvesse uma “dúvida” acerca dum julgamento, o procurador da Judéia podia (aí, sim) escrever um relatório e enviar o relatório e/ou o prisioneiro diretamente para o Imperador, em Roma, sem necessidade de informar o legado propretoriano da Sìria. Foi o que ocorreu, p.ex., com São Paulo Apóstolo, que, acusado pelas autoridades judaicas diante do procurador Marco Antônio Félix, por ter supostamente profanado o Templo (esse era um crime capital segundo a lei judaica), foi preso, e aguardou julgamento; Félix protelou a decisão, até que o próximo procurador, Pórcio Festo, tentou resolver o caso. Se Paulo não fosse cidadão romano, Festo ouviria a acusação, realizaria suas investigações próprias (via uma “cognitio extra ordinem”) e, ele mesmo, emitiria a sentença (confirmando ou não a culpabilidade de Paulo) e a executaria (se fosse considerado culpado, Paulo seria executado, pois tratava-se dum crime capital). Assim, se o procurador concordasse com a acusação, Paulo seria então executado; se não, seria solto. Como Paulo era cidadão romano, tinha o direito de apelar para o Imperador – e foi o que fez. A partir daí, nada mais restava a Festo, a não ser escrever um relatório circunstanciado e transferir o prisioneiro para Roma (que foi o que ocorreu – leia os capítulos 21 a 28 dos “Atos dos Apóstolos” para conhecer todos os detalhes). Mas, se Paulo não fosse cidadão romano, e, ainda assim, fosse uma pessoa importante, ou então se seu caso, por qualquer motivo que fosse, fosse considerado digno da atenção do Imperador, então o próprio procurador da Judéia (quer Félix, quer Festo) escreveria um relatório ao Imperador, uma “cognitio”, relatando o caso, e pedindo instruções – não precisava se reportar ao legado propretoriano da Síria, já que se tratava duma dúvida jurídica, que caberia ao Imperador decidir. Enquanto isso, o prisioneiro permaneceria preso, ou sob custódia militar, quase certamente na Cesaréia Marítima, capital da província, até que a decisão imperial chegasse. Mas esses casos eram raríssimos; a pessoa tinha que ser muito importante, ou o caso muito singular, para que um governador se dignasse a suspender a execução da sentença de um não-cidadão romano, para pedir instruções ao Imperador, em Roma. Paulo “se safou” porque era cidadão romano. Jesus não era nada, e após a “cognitio extra ordinem” levada a cabo por Pilatos, foi considerado culpado – sendo, então, imediatamente executado. Não houve “relatório”, nem mesmo “sentença” lavrada por escrito (para quê?); a “sentença”, pronunciada oralmente no tribunal de Pilatos, muito provavelmente se resumiu na fórmula usual que se empregava nessas ocasiões, para esses casos: “Ibis ad crucem” (“Irás para a cruz”). Três palavras, quase certamente em latim, a língua jurídica, a língua do comando, a língua da dominação. Simples assim. Próximo caso…

    Espero ter esclarecido suas dúvidas. Sds,

    JCFF.

  10. Marcelo Diz:

    Muito obrigado.

    Esclareceu sim.

    Gostei do “se safou” em relação ao apóstolo Paulo.

    Abraços.

  11. Caio Diz:

    Vitor, sei que não tem absolutamente nada a ver com o tópico, mas gosto de saber sua opinião a respeito de alguns assuntos específicos… Pois bem: o que você pensa do ensaio “O Caso Contra a Imortalidade”, de Keith Augustine?

  12. Biasetto Diz:

    Senhor José Carlos,
    Agradeço seus comentários e esclarecimentos.
    Ao ler o livro de Pedro de Campos, também tive impressão muito parecida com a tua. Ele faz uso de suposições, sem provas concretas.
    Muito obrigado!

  13. Vitor Diz:

    Caio,

    esse artigo de Augustine possui muitos e muitos problemas, que o tornam quase que totalmente inválido. Apenas para citar um, veja o erro de física que consta no site do Julio, quase no final da página:
    .
    http://www.criticandokardec.com.br/debate.htm

  14. mrh Diz:

    + 1 vez, JCF escreveu 1 excelente artigo, muito esclarecedor. Parabéns…

  15. Marcelo Diz:

    Sr. José Carlos,

    Novamente gostaria de fazer uma indagação a respeito do seu texto e um livro (Introdução so Novo Testamento) de Raymond E. Brown.

    O sr. diz:

    “Ao contrário do que o sr. (ou Ehrman) afirma, não existe essa tal “quase unanimidade” dos “teólogos sérios” a esse respeito. Existe, sim, uma “minoria barulhenta”,…”

    “Os “teólogos sérios”, caríssimo prof. Pinheiro Martins, juntamente com os estudiosos responsáveis, não pensam como Ehrman, não… ”

    No livro Introdução ao Novo Testamento, Raymond E. Brown diz:

    “…uma vez que os estudiosos estão divididos quase meio a meio sobre se Paulo escreveu 2 Tessalonicenses,…” (pág. 773)

    “Considerando os argumentos pró e contra a autoria paulina de 2 Tessalonicenses, não posso decidir com segurança, ainda que alguns adeptos dos escritos pós-paulinos reivindiquem tal certeza. Embora a maré atual da exegese tenha-se voltado contra a possibilidade de que Paulo possa tê-la escrito, …”(pág. 782)

    “…os elementos há pouco listados têm contribuído para uma situação na qual cerca de 80% a 90% dos exegetas modernos estão de acordo em que as pastorais foram escritas depois da morte de Paulo,…” (pág. 871) ( Raymond refere-se a 1 e 2 Timoteo e a Tito).

    Caro sr. José, não quero ser diversionista, mas a sua afirmação citada chamou-me a atenção. Gostaria de saber a sua opinião em relação ao que foi dito pelo já falecido ou desencarnado (o gosto do freguês) e bastante encanudado Raymond E. Brown.

    Sei, como o próprio título do livro indica, que não se trata de um estudo detalhado, mas os trechos e o livro revelam a opinião do eminente estudioso (págs. 880 e 881 não reproduzidas) e a sua análise a respeito da opinião dos estudiosos sobre o tema.

    Um Abraço.

    Marcelo.

  16. Biasetto Diz:

    MRH,
    gostaria de contatá-lo por email.
    se for do seu agrado:
    ejbiasetto@hotmail.com
    .
    Vítor,
    espero nã estar abusando do teu blog.
    Gracias!

  17. Carlos Diz:

    Caro JCFF
    .
    Parabéns pelo texto minucioso e claro. Um aspecto importante do seu discurso foi mostrar que não há como conceder o “benefício da dúvida” à carta de Lêntulo, visto que a natureza apócrifa do documento já era atestada antes do lançamento de “Há dois mil anos” por Chico Xavier. De fato, caberia aos espíritas mostrar que os estudos sobre a referida carta estariam incompletos e que novas evidências históricas dariam sustentação ao livro.
    .
    Isso me leva de imediato ao livro do Pedro Campos. Sempre desconfiei que o livro era destinado a um público bem definido que gostaria de “ouvir” o que os conforta, ou seja, que Emanuel e o senador Lêntulo são a mesma pessoa. Esse público são os espíritas, evidentemente.
    .
    O que o seu texto me permitiu perceber, ainda, é como o Sr se coloca em temas sensíveis tais como os evangelhos como “fontes históricas”, a própria realidade histórica de Jesus e a doutrina trinitária. Sua posição nesses assuntos me parece claramente ortodoxa, e não veja isso como uma crítica, por favor. É que de fato a visão de que os evangelhos são documentos tardios não é, a rigor, de hipercéticos barulhentos e marqueteiros. Ela é dominante, notadamente nos círculos descompromissados com a ortodoxia religiosa. O mesmo se dá com a doutrina trinitária que nitidamente é uma concepção que fazia sentido no mundo helênico, jamais na cultura judáica o qual Jesus foi educado, viveu e morreu recitando trechos da Torá, se aceitamos o relato do evangelista como “histórico”. Admitir que a doutrina trinitária remonta aos judeus cristianizados, o qual Tiago o Justo esteve a frente após a cricificação, é cogitar que o próprio Jesus rompeu com o judaísmo (o que o seu irmão, Tiago o Justo, não fez!); esse é um tema complexo de muita discussão; um campo minado, a bem da verdade.
    .
    No entanto, suas considerações sobre a carta de Lêntulo são fundamentadas e esclarecedoras. Muito bom trabalho!

  18. Marcelo Diz:

    Caro Carlos.

    Desculpe pela minha intromissão no seu comentário, mas gostaria de fazer algumas considerações a respeito:
    .
    1- Os textos canônicos são fontes históricas confiáveis (as melhores ou entre as melhores da antiguidade);
    .
    2- Não creio que alguns estudiosos, como Raymond Brown, sejam pessoas descompromissadas com a ortodoxia religiosa;
    .
    3- A doutrina trinitária, tal como ela é defendida por Cristãos, sejam eles compromissados com a ortodoxia religiosa ou não, é única e sem paralelos (pelo menos até onde eu sei);
    .
    4- Não foi Jesus que rompeu com o judaísmo, foi o judaísmo que rompeu com Jesus.
    .
    Entretanto, concordo com você no que diz respeito à explosividade e polêmica do tema, bem como aos elogios ao trabalho do Sr. José Carlos.
    .
    Um abraço.

    Marcelo.

  19. Rafael Diz:

    Vitor o artigo do caio contem algumas evidencias que até hoje os que defendem uma vida pos morte nao consegue de forma alguma explicar, que é a questao das senhas secretas de que somente quem morre conhece. Já foi feito isso 3 vezes em historias diferentes, nas pesquisas que tenho feito, mas nennhum medium diz as verdadeiras senhas.

    O artigo q

  20. Rafael Diz:

    Vitor o artigo do caio contem algumas evidencias que até hoje os que defendem uma vida pos morte nao consegue de forma alguma explicar, que é a questao das senhas secretas de que somente quem morre conhece. Já foi feito isso 3 vezes em historias diferentes, nas pesquisas que tenho feito, mas nennhum medium diz as verdadeiras senhas.

    O artigo qque vc colocou nao dá respostas pra isso e nao explica muitos eventos do artigo encontrado pelo vitor

    É uma pena

  21. Rafael Diz:

    onde se lê:E nao explica muitos eventos do artigo encontrado pelo vitor

    leia-se:E nao explica muitos eventos do artigo encontrado pelo caio

  22. Vitor Diz:

    Oi, Rafael

    essa história das senhas é meio exagerada. No artigo “REPORT ON THE OLIVER LODGE POSTHUMOUS TEST” é dito:
    .
    “Que evidências existem de que qualquer médium tenha revelado qualquer um dos detalhes da mensagem final, ou das “pistas” nos primeiros envelopes antes de serem lidos pelos assistentes? Ninguém deu a mensagem completa, mas um médium se referiu a uma parte da mensagem final sem conhecer nenhuma das pistas, e os detalhes a que ele se referia estavam no envelope final e desconhecidos aos acompanhantes. Duas sessões foram realizadas com este médium.”
    .
    O artigo do Augustine tem muitos problemas, repito.

  23. Rafael Diz:

    Vitor concordo com essa informação de que o artigo tem muitos defeitos. Eu falei a mesma coisa no nosso blog e mostrei diversos textos sobre isso. A minha questão é a critica especifica das senhas secretas.

    Essa critica especifica das senhas secretas é algo que até hoje nao encontrei argumentos para deburrubar, até agora, já que vc esta me mostrando que um medium teve conhecimento parcial de uma das senhas

    Existe polemica ou controversia se esse medium realmente acertou parte da senha, isto é, podemos confiar mesmo nisso, ou há muito questionamento sobre o evento ?

    Digo isso porque, por exemplo, no caso de Robert Thouless disseram que acertaram a senha, após centenas de mediuns das sociedades de pesquisa americana tentarem, mas depois descobriram que nao foi tanto acerto, pois a primeira parte da senha podia ser desvendado facilmente atraves de um razoavel programa de computador

    Se podemos confirar nesses acertos, a hipotese de vida pos morte continua firme e forte

    Até mais

  24. Carlos Diz:

    Marcelo,
    .
    Seus comentários são bem vindos, não precisa se desculpar.
    .
    Algumas considerações sobre suas afirmações:
    .
    1. Não há consenso entre os estudiosos, nesse aspecto.
    .
    2. Não conheço os escritos de Raymond Brown.
    .
    3. Sugiro um estudo mais detalhado (se for o caso) do mundo greco-romano. O que afirmo é que o modelo trinitário da divindade não fazia parte do judaísmo à época de Jesus (e mesmo hoje).
    .
    4. De fato, há boas evidência de que Jesus jamais rompeu com o judaímo; a cisão veio depois da crucificação, provavelmente com a recusa dos judeus em aceitar Jesus como o messias. Essa tese é defendida por vários estudiosos e é, na minha opinião, a que me parece melhor argumentada.
    .
    Outro abraço, Carlos

  25. Vitor Diz:

    Oi, Rafael
    qual é o blog que você fala?
    Não conheço controvérsias sobre o caso, mas pode ser que existam.
    Um abraço.

  26. Marcos Arduin Diz:

    Ei José, só umas dúvidas:
    O Céstio Galo, de acordo com um lixruxo dos testemunhas de jeová (quer dizer, do Corpo Governante deles, pois NENHUM testemunha de jeová pode escrever coisa alguma de sua religião) teria avançado pela Palestina, cercado Jerusalém e até tomado parte da cidade. Mais um pouco, teria liquidado a revolta. Mas aí, SEM MOTIVO APARENTE, retirou suas legiões e então sua retaguarda foi atacada e custou para evitar ser massacrado.
    Encaixa-se aí uma SUPOSTA profecia de Jesus, que alertou que quando seus seguidores vissem a cidade cercada por soldados, teriam de fugir na primeira oportunidade que surgisse. Assim, como Céstio Galo se retirou, os cristãos deixaram Jerusalém e se salvaram do massacre.
    .
    Sabe me dizer se Céstio Galo chegou mesmo a cercar e tomar parte de Jerusalém e QUASE liquidar a revolta? Ou isso nunca aconteceu e seria só uma fraude piedosa (como aquilo tudo que Flávio Josefo fala de Jesus) para se fazer “cumprir” a profecia de Jesus?
    .
    Grato

  27. Sebastião Pinheiro Martins Diz:

    Prezado José Carlos Ferreira Fernandes:

    Antes de mais nada, agradeço por vossa atenção, em esforçar-se por tirar quaisquer dúvidas que, porventura, ainda tivéssemos sobre a historicidade de “Públio Lêntulus”. Mas vou ser breve e objetivo, pois o tempo me falta agora e, para lhe enviar esta resposta, estou praticamente roubando o tempo de outras atividades que agora me são urgentes.
    Está bom, senhor: levanto bandeira branca e me rendo. “Públio Lêntulus” não tem comprovação histórica documentada de forma indubitável. Ponto final e não discuto mais isso. Se os espíritas querem acreditar nele como “entidade” ou “guia espiritual”, agora é problema deles; já não é mais o meu, pois não sou mais vinculado ao movimento espírita. Trata-se agora de uma questão de fé, não mais de ciência.
    Concordo também quanto à incompetência e má-vontade dos espíritas em esclarecer esta e outras questões correlatas: estavam tão ansiosos em obter “consolação espiritual” que não quizeram enxergar mais nada. Eu mesmo sofri na pele, há alguns anos atrás, quando tentei chamar a atenção para alguns aspectos pontuais do que temos debatido aqui. Fui apodado de “rapaz arrogante, espírito pseudo-sábio, metido a intelectual, orgulhoso do próprio intelecto”, etc., etc.
    Sabe o que mais me disseram? “A caridade e a consolação são mais importantes que a verdade”. (Engraçado, me parece que o Senhor Jesus disse algo diferente sobre a verdade…)
    Agora, sou agnóstico, e não estou nem aí mais para a existência de Emmanuel, Públio Lêntulus, André Luís, Joana de Ângelis (a quem eu já achava antipática mesmo quando ainda era espírita). Se Emmanuel não existe, tanto melhor: seu ainda fosse médium espírita, jamais iria querer um “guia”tão pedante e inoportuno quanto ele.
    Já não sei mais nem se existe Deus ou se “Jesus está vivo” em algum improvável Céu.
    Mas, e o senhor, meu caro José Carlos Ferreira Fernandes? Em benefício do quê, ou de quem o sr. se dedica a atacar o Espiritismo? Eu hoje o ataco (ao Espiritismo) pela má-fé de seus integrantes, que são infiéis aos próprios preceitos de sua doutrina (onde está o acompanhamento da evolução da Ciência, originalmente preconizado por Kardec?).
    E o senhor, trabalha por quem? Pela Santa Madre Igreja? Eu não tenho nada a ver com ela. A esta altura da minha vida, não me filio a religião alguma. Por isso, pouco me importa agora que a autoria dos textos da Bíblia seja realmente autêntica, no que se refere a seus escribas humanos. Que Paulo (e outros) tenha(m) escrito realmente tudo aquilo, já não me afeta mais: minha vida já não gira em torno do que está lá escrito. Só digo mais uma coisa: para mim, a Bíblia NÃO foi “escrita pelo próprio Deus”, e nem me sinto obrigado a acreditar no dogma da Trindade. Posso um dia até chegar a me convencer da existência de um Deus (em termos deístas, provavelmente), mas não entendo para quê eu teria de dividi-lo em três. Um só já está de bom tamanho.
    E o senhor, caro José Carlos Ferreira Fernandes? Para quem trabalha? Se é em nome de alguma outra religião que o senhor ataca o Espiritismo, então não merece respeito maior do que o Francisco Campos (abstração feita de seus maiores conhecimentos, pelos quais o senhor até merece ser parabenizado) ou mesmo o Chico Xavier.

    Cumprimentos de

    Sebastião Pinheiro Martins

  28. Vitor Diz:

    Eu diria que o JCFF trabalha simplesmente pelo amor à verdade.

  29. José Carlos Ferreira Fernandes Diz:

    Caro sr. Arduin:

    Cada um vê aquilo que quer; e, mesmo diante do que, de fato, ocorreu (ao menos, diante daquilo sobre o que se tem uma certeza razoável de que ocorreu), pode pensar o que quiser.

    A situação no Oriente romano, em geral, e na Palestina, em particular, na época imediatamente anterior à eclosão da grande revolta de 66-72 dC, era muito complexa. O desenrolar da revolta judaica pode ser interpretado de muitas maneiras, escatológicas inclusive, mas, na minha modesta opinião, isso é sempre algo muito complicado e arriscado (para se dizer o mínimo). Quanto a isso, prefiro elencar as causas históricas prováveis, e, somente a partir daí, e FORA do âmbito da investigação histórica, meditar sobre possíveis explicações extra-históricas, ou mesmo supra-históricas. Deus nos guarde de querer, levianamente, interpretar Seus muitas vezes imperscrutáveis desígnios.

    Portanto, não creio que eu deva me manifestar acerca de tal tipo de interpretação. Mas posso lhe passar, caro sr. Arduin, um resumo da situação histórica, e das explicações históricas, tanto quanto se as pode ter (e tanto quanto eu as conheço, a partir das minuciosas leituras e pesquisas que venho realizando há anos), para os acontecimentos. Qualquer explicação adicional que o sr., ou qualquer outro, queiram desenvolver, deveria (a meu ver) levar isso (i.e., o contexto histórico) em conta.

    As expectativas messiânicas judaicas, que sempre existiram, e que ganhavam contornos cada vez mais “apocalípticos” desde a revolta (vitoriosa) dos judeus contra os selêucidas, nos meados do séc. II aC, estavam num “crescendo” desde o início da era cristã. A submissão da Judéia a uma potência estrangeira (Roma) e o progressivo depauperamento dos camponeses, consequência da “inserção” da Palestina no conjunto da economia mediterrânica romana (a par do enriquecimento das elites locais, pró-romanas, e do progressivo aumento das cargas tributárias, necessárias a fim de sustentar a nova estrutura administrativo-militar do Império no Oriente) acrescentavam ingredientes mais “radicais” a esse fervor “messiânico” e “apocalíptico”, em si especificamente religioso, e especificamente judaico. Todos “sentiam” que viviam “tempos especiais” (“os últimos tempos”?), e que “algo” haveria de ocorrer. Cada um sentia isso de modo diferente, caso fosse um saduceu, um fariseu, um essênio, um “nazareno” (judeu-cristão), um camponês galileu no limite da sobrevivência, sempre arriscado a perder suas terras, um proletário hierosolimitano que já as havia perdido, etc. Mas, sem dúvida, havia “algo” no ar. Nesse clima, alguns acontecimentos bem prosaicos, mais especificamente alguns portentos naturais, a par duma situação de aparente enfraquecimento do poderio romano no Oriente, isso tudo temperado com ações inábeis dum procurador, e depois dum legado propretoriano, ateou, por assim dizer, fogo num monte de palha seca.

    Primeiramente, os portentos. No ano 60 dC, um cometa brilhou no céu (cf. Tácito, “Anais”, livro XIV, cap. 22); e de novo em 64 dC (cf. Tácito, “Anais”, livro XV, cap. 47); e, logo depois, em 66 dC, o ano em que estourou a revolta (mas uns meses antes, em janeiro), o cometa de Halley, por sua vez, fez uma de suas espetaculares aparições periódicas (a ele provavelmente alude Flávio José, “A Guerra Judaica”, livro VI, cap. 5º, par. 3º [289]). Eventos comuns para nós, sem dúvida, mas não para os antigos – um cometa era sempre o anunciador de algo extraordinário (usualmente, da morte dum soberano); e, especificamente quanto aos judeus, havia uma profecia bíblica bem determinada, no famoso oráculo de Balaão (em Números, cap. 24, vers. 17), que dizia: “Eu vejo, mas não para agora; eu contemplo, mas não de perto: uma estrela avança de Jacó, um cetro se levanta de Israel, esmagando as têmporas de Moab e o crânio dos filhos de Set”. Ou seja, para os “literalistas” (e sempre os há, e eles sempre são capazes de criar muitos problemas…), a vinda do Messias, nos “últimos tempos” (“não para agora”), com a “libertação” de Israel (seu “cetro” se levantando) e a eliminação (física) de seus inimigos (simbolizados por “Moab” e “Set”) seria anunciada a partir duma “estrela” que se manifestaria para “Jacó” (i.e., para Israel, para o “povo eleito”). Para nós, fenômenos astronômicos; para os antigos, do mais sofisticado (mesmo ateu) ao mais simples, um sinal dos Céus. Aparições repetidas desses astros, em tão poucos anos, sem dúvida, indicavam que algo portentoso viria. Para os gentios, provavelmente a queda dum soberano (ou dum Império?); para os judeus, além disso, o reerguimento do poder (do “cetro”) de Israel, com uma “estrela” brilhando para Jacó…

    Depois dos portentos, a situação militar no Oriente romano.

    As principais pressões militares romanas encontravam-se nas fronteiras; era nas fronteiras que estacionavam as legiões e as tropas auxiliares, eram as províncias fronteiriças aquelas mais sensíveis. Na Europa, quer ao longo da fronteira do Reno, quer ao longo da do Danúbio, os inimigos de Roma eram povos “bárbaros”, sempre em pé de guerra, mas desunidos, com uma civilização material inferior à romana, e que podiam ser mantidos à distância – enfim, eram um estorvo, mas não uma ameaça. O mesmo ocorria ao longo da fronteira africana, da Mauritânia até à Líbia e ao Egito. Ao sul do Egito, havia o reino de Meroé (com uma cultura sub-egípcia, mais ou menos no que é hoje o Sudão), mas a zona de contato entre os dois Estado era pequena, e, desde as escaramuças na época de Augusto, a região vivia em paz. Na fronteira oriental, havia os eternos árabes ao sul, mas eles eram, então, apenas mais um estorvo, e era possível se contar com os reinos-clientes da Nabatéia, bem como de Herodes o Grande (e depois, com as tetrarquias remanescentes) para manter a ordem. Não obstante, havia, ao longo do Eufrates, um Estado civilizado, um Império que nada ficava a dever ao de Roma, o Império Parta, que englobava, “grosso modo”, os atuais Iraque e Irã (e partes do Afeganistão), herdeiro, para todos os efeitos práticos, do antigo Império Persa. Embora fosse um inimigo formidável, que não podia ser simplesmente derrotado, e nem mesmo reduzido à condição de “reino-cliente”, era, ao fim e ao cabo, um Estado civilizado, com o qual se podiam celebrar tratados, que tinham uma chance razoável de serem respeitados. Os partas, governado pela casa real os Arsácidas (i.e., os “descendentes de Arsaces”, o fundador da dinastia), eram iranianos; sua base de poder encontrava-se no norte do planalto iraniano, mas sua capital situava-se na parte mais rica de seu Império, e perto da fronteira romana, a Mesopotâmia – na cidade de Ctesifonte (ao lado da antiga fundação grega de Selêucia-sobre-o-Tigre), próxima à atual Bagdá.

    O “pomo de discórdia” entre Roma e a Pártia era a Armênia, que ambos os Impérios queriam. Mas os armênios eram (mesmo na época) um povo aguerrido, e se aproveitavam da rivalidade entre seus dois poderosos vizinhos para, do melhor modo possível, manterem sua independência – ou quase. Augusto, o primeiro Imperador romano, havia negociado em 20 aC um acordo com Fraates (Afrahat) IV, o Rei dos Reis (“Shahnshah”) parta, segundo o qual Roma se abstinha de anexar a Armênia, mas, em contrapartida, a Pártia, por sua vez, reconhecia que o soberano armênio deveria sempre ser nomeado e entronizado por Roma, estando a Armênia, embora “independente”, na “esfera de influência” romana. Por mais de 70 anos, esse arranjo funcionou de modo satisfatório, e garantiu uma certa estabilidade à fronteira romana oriental, que seguia, pelo Ponto, pela Capadócia e pela Síria, ao longo do Eufrates.

    Essa prolongada “paz” na fronteira oriental havia proporcionado um desenvolvimento econômico, e comercial, enorme na região (embora houvesse sempre a tentação, quer de um lado, quer de outro, de tentar novos avanços). A prolongada paz, do lado romano, levou a uma progressiva, quase imperceptível, deterioração no valor militar das legiões estacionadas na província da Síria e no seu anexo capadócio, quer pela inação militar, quer pelo fato de estarem aquarteladas numa área próspera, civilizada, onde um tipo de vida mais “ameno”, bem mais confortável do que aquele que se vivia nas aguerridas fronteiras do Reno e do Danúbio, era possível.

    A província propretoriana da Síria dispunha de 4 legiões, sendo que duas estavam estacionadas na região da Capadócia. A Capadócia fazia parte, tecnicamente, da Síria, mas, tendo em vista as dificuldades de comunicação, bem como a importância estratégica de tal região (que fazia fronteira diretamente com a Armênia), tinha um comandante militar em separado, que, embora respondesse ante o legado propretoriano residente em Antióquia, podia gozar, na prática, de muita liberdade de ação.

    No ano 54 dC, aproveitando-se de rixas internas sucessórias na Armênia, bem como da mudança do poder em Roma (com a morte do Imperador Cláudio e a ascensão do adolescente Nero ao principado, sob a regência de sua mãe, Agripina), o Rei dos Reis Vologeso (Valgarsh) I deu o golpe: instalou como soberano na Armênia, pela força das armas, e sem levar em conta os termos do tratado ainda em vigor com Roma, seu próprio irmão, Tirídates (Trdat).

    Tal provocação, assim, significava guerra. Então, após um longo período de relativa paz no Oriente, legiões novamente iriam marchar, requisições extraordinárias (“indictiones extraordinariae”) seriam, mais uma vez, impostas à população (fornecimento de animais de carga e de suprimentos em geral; corvéias para a construção ou reparo de estradas e pontes; serviços de transporte de bagagens e de mantimentos – “se alguém te pedir que ande com ele uma milha, vai com ele duas”…; “hospedagem” e alimentação dos exércitos em trânsito…). Mais uma vez, “nação se ergueria contra nação”. Não estariam chegando os “últimos tempos”?

    Se a guerra tivesse sido rápida e decisiva, talvez as expectativas das populações (e especialmente dos judeus) não tivessem sido levadas até ao limite – mas não foi o que ocorreu. Como Roma lidaria com a “questão armênia”? O que todos esperavam (tanto os “chauvinistas” romanos quanto os próprios provinciais) era que, mais uma vez, as legiões marchassem imediatamente e esmagassem os partas. Esperavam, influenciados pela própria propaganda romana, uma vitória rápida e acachapante. Mas a realidade era muito diferente.

    A providência imediata de Nero (ou melhor, de sua mãe e de seus conselheiros, Aneu Sêneca e Afrânio Burro) foi nomear para o comando capadócio um general capaz, que pudesse auxiliar adequadamente o legado propretoriano da Síria, Lúcio Dúrmio Umídio Quadrato, na guerra que viria (e que os “realistas”, em Roma, sabiam que não seria um mero “passeio militar”). Esse homem foi Gneu Domício Corbulão (c.7 – 67 dC).

    Corbulão era natural de Peltuíno (hoje San Paolo di Peltuino), uma pequena cidade nos Apeninos, região central da Itália. Seu pai, de mesmo nome, havia sido o primeiro senador da família, chegando à pretura na época de Tibério; sua mãe era a tão famosa Vistília, célebre por seus longos períodos de gestação (ela casou-se seis vezes, e teve sete filhos). Uma meia-irmã de Corbulão (por Vistília), Milônia Cesônia, foi a 4ª esposa de Calígula, e essa proximidade com o Imperador rendeu-lhe um consulado no ano 39 dC, e alavancou sua carreira. Após a morte de Calígula (41 dC), a carreira de Corbulão tornou-se mais lenta, mas ele deve ter se mostrado capaz, já que em 47 dC o Imperador Cláudio (reinou 41-54 dC) o fez governador (legado propretoriano) da província da Germânia Inferior, na fronteira renana, onde estacionavam 4 legiões (a V “Alauda”, a XV “Primigenia”, a XVI “Gallica” e a I “Germanica”). Foi um governador hábil, enfrentando com sucesso os bárbaros germanos; retornou a Roma c. 50 dC, sendo nomeado procônsul da Ásia para 52-53 dC. Logo após a morte de Cláudio (54 dC), sob o novo governo de Nero, foi então nomeado para o comando da zona militar da Capadócia.

    Esse era o homem que Roma mandava ao Oriente, para comandar as duas legiões capadócias (a III “Gallica” e a VI “Ferrata”). O legado propretoriano da Síria, Umídio Quadrato, o “chefe” de Corbulão, comandava pessoalmente as outras duas (a X “Fretensis” e a XII “Fulminata”).

    Como quer que fosse, a chegada do novo comandante da Capadócia impressionou suficientemente Vologeso para que ele se retirasse da Armênia, enviando também vários reféns a Umídio Quadrato (55 dC); mas Corbulão exigiu que os reféns fossem entregues a ele, já que era ele o responsável direto pelas campanhas armênias (pois a Capadócia fazia fronteira direta com a Armênia). Quadrato aquiesceu, mas, a partir de então, surgiu uma grande frieza, e mesmo hostilidade, entre ambos.

    A situação militar que Corbulão encontrou no Oriente era tal a inspirar temores, ainda mais a alguém com experiência na luta contra os “selvagens” bárbaros germanos e acostumado à dura disciplina reinante nas legiões da fronteira do Reno. Ele decidiu então iniciar um programa intensivo de treinamento, de reforço e de restauração de estrita disciplina militar entre seus soldados, antes de se aventurar a prosseguir na guerra; e mais uma legião, a IV “Scythica”, proveniente do Danúbio, foi enviada para reforçar as forças romanas. Com Corbulão ficaram então, na Capadócia, três legiões (III “Gallica”, VI “Ferrata” e X “Fretensis”), e duas (IV “Scythica” e XII “Fulminata”) ficaram com Umídio Quadrato. Com tudo isso se passou o restante do ano de 55 dC, todo o ano de 56 dC e todo o ano de 57 dC. Essa aparente (mas necessária) “inação” teve duas conseqüências: a) foi exasperante para a população do lado romano da fronteira, que teve os impostos e requisições aumentados sem poder testemunhar nenhuma ação militar aparente, que justificasse a carga extra posta sob seus ombros; e b) convenceu os partas de que Roma se encontrava enfraquecida, encorajando o reinício das hostilidades, a fim de que o Império Parta pudesse tirar vantagem dessa situação.

    Na primavera de 58 dC, Tirídates da Armênia enfim resolveu atacar, ultrapassando o Eufrates e penetrando na Capadócia. Imediatamente Corbulão reagiu, empurrando Tirídates de volta para a Armênia e invadindo o próprio país com suas três legiões; nos fins daquele ano, conquistou Artaxata (a atual Yerevan), uma das capitais da Armênia, e em 59 dC conquistou a outra capital, Tigranocerta (provavelmente a moderna Siirt). Tirídates abandonou o país, e um outro príncipe parta, Tigranes (Tigran), que havia sido enviado havia muito a Roma, e lá criado, foi então solenemente instalado por Corbulão como o novo (e obediente) soberano armênio. Um bom início de campanha.

    Ao retornar à Capadócia (59-60 dC), Corbulão soube que Umídio Quadrato havia morrido, e que o Imperador Nero o havia nomeado, a ele, Corbulão, como o novo legado propretoriano da Síria, devendo um novo comandante ser oportunamente enviado para a Capadócia. Mais uma legião, a V “Macedonica”, seria enviada à Síria, a fim de reforçar ainda mais a guarnição romana na região; lá chegaria em 61 dC. Nisso tudo se passou o fim do ano de 59 dC, todo o ano de 60 dC e boa parte do ano de 61 dC.

    Esse segundo período de “inação” teve as mesmas conseqüências que o anterior; e, no final de 61 dC, os partas invadiram novamente a Armênia, dessa vez com vigor redobrado; na primavera de 62 dC, haviam levado tudo a ferro e fogo, alcançando Tigranocerta e pondo cerco à cidade. Até esse instante, o novo comandante da Capadócia não havia ainda chegado. Vendo-se em desvantagem, Corbulão achou melhor entrar em entendimentos com Vologeso, e uma trégua acabou sendo acertada: os partas levantariam o cerco a Tigranocerta, e os romanos evacuariam a Armênia; ao mesmo tempo, Tigranes seria destronado, e o governo de Tirídates (o irmão de Vologeso) seria reconhecido. Para todos os efeitos práticos, a Armênia escapava das mãos de Roma. Tudo voltava à “estaca zero”.

    Pelo verão de 62 dC, o novo comandante da Capadócia, enfim, chegou: era Lúcio Júnio Cesênio Peto (c.20 – c.72 dC), que havia sido cônsul (e cônsul ordinário) no ano anterior. Era um aristocrata de estirpe, oriundo duma família etrusca, e possuía boas conexões na alta sociedade de Roma. A ele Corbulão deu o comando de três legiões: a V “Macedonica”, a IV “Scythica” e a XII “Fulminata”. Considerando inaceitável a trégua acertada por Corbulão, e também almejando conquistar glória militar a fim de alavancar sua própria carreira, Cesênio utilizou a IV “Scythica” e a XII “Fulminata” para um ataque frontal à Armênia, cruzando o Eufrates na altura de Melitene (atual Malatia, na Turquia) e seguindo Armênia adentro até às vizinhanças da cidade de Arsamosata (atual Elazig), no lugar chamado Randéia, onde foi emboscado. Não teve alternativa a não ser render-se; suas duas legiões, desarmadas, tiveram que “passar sob o jugo”, como outrora ocorrera nas Forcas Caudinas. Corbulão, ao saber da situação de Cesênio, dirigiu-se apressadamente a Melitene, mas apenas para se encontrar com as tropas (e seu comandante) que, desarmadas e desmoralizadas, retornavam melancolicamente ao território romano.

    Nada mais havia a fazer, ao menos no curtíssimo prazo, a não ser negociar uma paz, do melhor modo possível, com Vologeso; Cesênio foi destituído de seu comando na Capadócia, retornando a Roma (onde foi perdoado por Nero), e o comando das operações contra os partas foi confiado exclusivamente a Corbulão. As negociações estenderam-se por todo o inverno de 62-63 dC, mas acabaram mostrando-se infrutíferas, já que Corbulão era de opinião de que, antes de se sentar à mesa de negociações, precisava de alguma vitória que contrabalançasse o desastre de Randéia. Mais uma legião, a XV “Apollinaris”, foi enviada ao “front” armênio, aumentando para 7 o número de legiões presentes. Mas Corbulão não confiava nas duas desmoralizadas legiões que haviam se rendido em Randéia, a IV “Scythica” e a XII “Fulminata”, e as deixou, juntamente com a X “Fretensis”, na retaguarda, guardando respectivamente a Síria e a Capadócia.

    Então, na primavera de 63 dC, Corbulão novamente invadiu a Armênia, com as outras 4 legiões (IV “Gallica”, V “Macedonica”, VI “Ferrata” e XV “Apollinaris”). Vologeso e Tirídates sentiram que, dessa vez, tanto pelo número de forças quanto pela qualidade do comando, a vitória não seria fácil, e recusaram-se a oferecer batalha formal a Corbulão; e como o próprio Corbulão também soubesse que a guerra seria difícil e prolongada, após algumas ações sem importância, e uns tantos passeios militares, “apenas para constar”, dispôs-se a negociar um tratado de paz com Tirídates e Vologeso.

    O negociador romano foi ninguém menos que o judeu alexandrino Tibério Júlio Alexandre o Moço, o futuro Prefeito Augustal do Egito. Acertou-se que Tirídates seria reconhecido como rei da Armênia, bem como seus descendentes (assim, o reino da Armênia passava a ser governado por um ramo da casa real Arsácida da Pártia), mas deveria receber a coroa das mãos do próprio Imperador Nero, em Roma; e que tanto as forças romanas quanto as partas retirar-se-iam da Armênia, que seria considerada um “Estado-tampão” neutro entre os dois Impérios. Na própria Randéia Tirídates depositou a coroa aos pés duma estátua de Nero; ele depois faria toda a viagem até á Itália e Roma, onde, numa cerimônia de impressionante pompa, foi coroado por Nero (66 dC). Na propaganda romana, a coroação de Tirídates por Nero foi mostrada como uma vitória romana sem paralelo; as portas do templo de Jano foram fechadas, moedas comemorativas foram cunhadas e Corbulão recebeu todas as honras possíveis.

    Mas, na prática, qualquer um que raciocinasse um pouco perceberia que não houve nenhuma vitória romana; na melhor das hipóteses, houve um empate (menos até que isso, já que os Arsácidas conseguiram colocar um de seus membros, permanentemente, no trono armênio). Dez anos de guerra, com o envolvimento de várias legiões, e com o aumento da carga tributária, não haviam sido suficientes para que a máquina militar romana obtivesse nenhum triunfo digno desse nome. Para isso tudo há, claro, as explicações de ordem econômico-militar (e, mesmo, sociais): o depauperamento das legiões e a necessidade de reorganização de toda a estrutura militar, algo inevitavelmente demorado; as dificuldades de comunicação em terrenos muito acidentados; o relativo equilíbrio entre as forças romanas e partas (eram dois Impérios, mais ou menos do mesmo tamanho e potência, que lutavam entre si). No entanto, para as mentes da época – para muitas mentes, inclusive as de pessoas sofisticadas e instruídas – a explicação era simples, e aliás bastante “racional”, apoiada mesmo em irrefutáveis dados “empíricos”: a derrocada dum soberano, ou mesmo dum Império, se avizinhava; os Céus, com seus cometas, estavam prevendo isso, e os fatos já estavam tomando forma…

    Não foi à toa que Nero procurou dar ao espetáculo teatral da coroação de Tirídates em Roma a maior importância (e pompa) possível…

    A glória de Corbulão, contudo, durou pouco; logo Nero achou melhor se livrar de seu general, que se havia tornado por demais popular. É quase certo que, em 63 dC, ele foi destituído do governo sírio. Por ocasião de sua visita à Grécia (66-67 dC), Nero enfim ordenou que Corbulão se apresentasse diante de sua pessoa. Ao desembarcar em Cêncreas, o porto de Corinto, recebeu de emissários do Imperador a ordem de se suicidar, que ele cumpriu imediatamente, e sem hesitar (67 dC).

    Para suceder a Corbulão, é quase certo que foi nomeado Gaio Céstio Galo, que havia sido cônsul sufeta em 42 dC (e que devia ter, portanto, cerca de 60 anos, ou mais, em 66 dC). Não se conhece dele nenhum feito militar anterior, o que sugere que sua carreira tenha tido mais ênfase em postos civis e administrativos do que propriamente militares – talvez a sua nomeação fosse uma reação mais ou menos lógica à nova situação no Oriente romano, após a paz com os partas; já não havia necessidade dum grande general no comando do Oriente, mas sim dum hábil administrador e coletor de recursos. Uma passagem um tanto dúbia de Tácito (“Anais”, livro XV, cap. 25) faz crer que ele tenha sido o sucessor de Corbulão e que, portanto, tenha exercido a legação propretoriana da Síria desde 63 dC; embora as moedas remanescentes emitidas em seu nome se iniciem apenas a partir de 65 dC. O que pode ter ocorrido foi simplesmente uma demora entre a efetiva saída de Corbulão e a chegada (e tomada de posse) do novo legado propretoriano; é possível que ele tivesse alcançado enfim sua província pelos fins de 63 dC ou inícios de 64 dC, sendo que uma das consequências dessa mudança de comando na Síria teria sido também a mudança na procuradoria judaica, com Lucéio Albino sendo substituído por Géssio Floro (64 dC), o último dos procuradores romanos pré-revolta. Ao que parece, a procuradoria judaica de Floro caracterizou-se por um alto grau de rapacidade e de corrupção, mesmo para os padrões da época, mas é possível que ele estivesse apenas seguindo instruções no sentido de obter a maior quantidade possível de dinheiro – já que, tendo em vista tanto os custos da prolongada (e economicamente ruinosa) guerra parta quanto as extravagâncias de Nero, o tesouro romano estava passando por sérias dificuldades.

    Na Páscoa de 65 dC, o próprio Céstio Galo, visitou Jerusalém; na ocasião, as autoridades judaicas locais entregaram-lhe uma petição, protestando contra os abusos do procurador Floro (Flávio José, “A Guerra Judaica”, livro II, cap. 14, par. 3º [280-81]); Galo prometeu investigar o assunto, mas, aparentemente, nada fez (isso, de certo modo, confirma que as ações de Géssio Floro estavam em linha com diretrizes do legado propretoriano da Síria e, possivelmente, com as do próprio governo central de Roma, desesperadamente necessitado de dinheiro). No ano seguinte (maio de 66 dC), Floro não apenas tomou o partido dos gentios contra os judeus durante tumultos na Cesaréia Marítima, durante os quais uma sinagoga havia sido profanada, mas também, subindo até Jerusalém, demandou do tesouro do Templo a quantia de 17 talentos de ouro, a serem remetidos ao Imperador. Essas ações irritaram profundamente a população judaica, levantando uma oposição tal que inviabilizou a entrega do dinheiro (mesmo que esse tivesse sido o desejo da aristocracia sacerdotal). Mais importante do que isso, a diferença de opiniões acerca de como agir diante da situação provocou um “racha” dentro da própria classe dirigente judaica, com vários de seus elementos se colocando claramente contra o governo romano. Logo em seguida, vários jovens começaram a “passar o chapéu” entre a multidão, a fim de conseguir umas moedas para o pobre procurador Floro (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 14, par. 6º [295]). Essa zombaria – e desafio à sua autoridade – irritou Floro profundamente; ele demandou imediatamente das autoridades de Jerusalém a entrega de tais elementos, mas elas se recusaram a fazê-lo, alegando não poder identifica-los (uma clara confissão de que os jovens zombeteiros eram oriundos da classe dirigente). Floro então atacou a esmo a multidão, mas encontrou uma oposição resoluta, perdendo progressivamente o controle da cidade, e da situação – isso apesar dos esforços do sumo-sacerdote Ananias e do rei Agripa II no sentido de tentar acalmar a multidão. Ao fim, Floro resolveu abandonar Jerusalém, deixando, contudo, guarnições na fortaleza Antônia e no palácio de Herodes o Grande (finais de maio ou inícios de junho de 66 dC), retornando à Cesaréia Marítima.

    A situação, assim, estava rapidamente escapando ao controle, e um motim em Jerusalém estava evoluindo rapidamente para uma revolta contra a própria administração romana; subindo pela cadeia de comando, era agora a vez do próprio legado da Síria, Céstio Galo, tomar as providências cabíveis. Mas ainda havia chances de se resolver a situação por meios “legais” (ao menos era o que se pensava); e as autoridades de Jerusalém mandaram uma embaixada a Galo, com queixas contra Floro. Mas este, ao mesmo tempo, também enviou mensagens ao legado da Síria, contando a sua versão dos acontecimentos. Por volta de julho de 66 dC, Céstio Galo, em Antióquia, já estava ciente dos fatos, tais como reportados pelos dois lados. Os conselheiros de Galo recomendaram que ele fosse a Jerusalém imediatamente, com suas legiões, a fim de restabelecer a ordem, mas o legado preferiu enviar como emissário o tribuno Neapolitano, a fim de se inteirar da situação e confeccionar um relatório circunstanciado (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 16, par. 1º [333-335]). Mas o tempo para esse tipo de providência já havia passado; os ânimos estavam por demais exacerbados. Embora tenha sido bem recebido em Jerusalém pelas autoridades, ainda desejosas de evitar o conflito (mais especificamente, pelo sumo-sacerdote Ananias), nem a sua presença, e nem as tentativas apaziguadoras de Agripa II, aquietaram a população, cada vez mais influenciada pela ala “radical” da classe dirigente, e que agora se encontrava em revolta aberta. Diante da situação, tanto Neapolitano quanto Agripa II acharam melhor sair de Jerusalém (agosto), embora ainda houvesse tropas romanas (e soldados de Agripa II) na fortaleza Antônia e no palácio de Herodes o Grande (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 17, par. 1º [407]).

    Logo após a partida de Agripa II, a situação explodiu em Jerusalém. O comandante da guarda do Templo, Eleazar, filho do sumo-sacerdote Ananias, e um dos expoentes da ala “radical” da classe dirigente (embora seu pai fosse um “moderado”), convenceu os sacerdotes a cessarem os sacrifícios que eram realizados, duas vezes ao dia, no Templo, pela saúde e prosperidade do Imperador e do povo romano – era o sinal de revolta aberta (“A Guerra Judaica”, livro II, cap 17, par. 2º [409]). Concomitantemente, um bando de rebeldes, chamados “sicários”, comandado por Manassés, ao que se dizia neto de Judas o Galileu (o que havia liderado a revolta judaica contra Roma em 6 dC), tomaram a fortaleza de Massada, massacraram a guarnição romana e apoderaram-se de seus arsenais (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 17, par. 2º [408]). Uma luta encarniçada de 7 dias nas ruas de Jerusalém (finais de agosto) opôs as facções “revolucionária” e “moderada”. Eleazar e a ala “revolucionária” entrincheiraram-se na Cidade Baixa e no Templo; seus opositores “moderados”, apoiados pelos soldados de Agripa II e pela guarnição romana, além da fortaleza Antônia e do palácio de Herodes o Grande, ocuparam a Cidade Alta, e tentaram obter o controle do Templo, mas em vão.

    Nos inícios de setembro de 66 dC, os sicários que haviam tomado Massada (ou alguns dentre eles) seguiram para Jerusalém, e juntaram-se aos “revolucionários” no Templo (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 17, par. 6º [425]); com esse reforço, os “moderados”, incluindo o sumo-sacerdote Ananias, tiveram que abandonar a Cidade Alta, e se refugiaram no palácio de Herodes o Grande; os rebeldes, logo a seguir, queimaram a mansão de Ananias, bem como o palácio de Agripa II e os registros de documentos (a fim de fazerem desaparecer as confissões de dívidas – tratava-se duma manobra “populista”, a fim de ganhar a simpatia das classes mais baixas). Investiram a seguir contra a fortaleza Antônia, que acabou por ser capturada, sendo a guarnição romana executada. Manassés, o líder dos sicários, chegou então a Jerusalém, vindo de Massada; apresentou-se como “rei” (Messias?), e pôs cerco ao palácio de Herodes o Grande, o último refúgio dos “moderados” e “pró-romanos”, onde ainda resistiam o sumo-sacerdote Ananias, o restante da guarnição romana e os soldados de Agripa II (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 17, par. 8º [434]).

    Pelos fins de setembro, os rebeldes enfim conseguiram assaltar o palácio de Herodes o Grande, que foi então queimado (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 17, par. 8º [440]); os soldados de Agripa II foram autorizados a se render, e deixaram a cidade; mas o sumo-sacerdote Ananias e seu irmão Ezequias foram mortos (par. 9º [441]), e a guarnição romana, mesmo após se render, foi sumariamente executada (par. 10 [454]). A partir de então, Jerusalém quedou-se totalmente em poder dos rebeldes, e a revolta espalhou-se por todo o pais, com judeus e gentios se massacrando mutuamente. Na Cesaréia Marítima, bem como nas cidades de maioria pagã, os judeus foram ou hostilizados ou mesmo mortos; e os judeus mataram tantos pagãos quantos puderam na Judéia, na Galiléia e na Gaulanítide (região do Golan).

    Manassés, no entanto, não conseguiu gozar de seu triunfo por muito tempo: logo depois, quando fazia uma entrada solene no Templo, vestindo trajes reais, foi emboscado e morto por ordem de Eleazar, o comandante da guarda do Templo, e filho do finado sumo-sacerdote Ananias, que Manassés havia executado quando havia tomado o palácio de Herodes o Grande. Os sicários remanescentes, então, abandonaram Jerusalém, retornando a Massada, onde se fortificaram e permaneceram, dela fazendo uma base guerrilheira pelos próximos anos.

    Quando as notícias acerca da deterioração progressiva da situação em Jerusalém, bem como da escalada da revolta, chegam a Céstio Galo, em Antióquia, este percebeu enfim que não havia mais nada a fazer, a não ser marchar com suas tropas até Jerusalém e debelar os insurretos. Nos meados de outubro de 66 dC, juntamente com Agripa II, e comandando a XII “Fulminata”, reforçada com contingentes da III “Gallica”, da IV “Scythica” e da VI “Ferrata”, mais auxiliares e soldados de Agripa II, Galo marchou pelo litoral rumo à Judéia, fazendo uma pausa e erguendo sua base de operações em Ptolemaida. Suas forças atacaram a seguir a região de Cabulonte (Zabulon), na Galiléia, saqueando também todas as aldeias das imediações, antes de retornarem a Ptolemaida (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 18, par. 9º [499-506]). Pelo final do mês, Galo marchou mais ao sul, até à Cesaréia Marítima; lançou a seguir ataques que resultaram na tomada de Jopa, matando milhares de judeus e saqueando e queimando, a seguir, inúmeras aldeias na região da Narbatena (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 18, par. 10º [507-09]). Pelo início de novembro, Galo ordenou que a XII “Fulminata”, sob o comando de Cesênio Galo (não confundir com Cesênio Peto), partisse da Cesaréia e se adentrasse pela Galiléia, até Séforis; a cidade, decididamente pró-romana, rapidamente se rendeu aos romanos, sem luta, e, por isso, escapou de ser arrasada. Os rebeldes remanescentes da região fugiram para as montanhas próximas, mas foram caçados e mortos pelos romanos (par. 11 [510-512]). Mas o restante da Galiléia permaneceu hostil aos romanos.

    Depois desses acontecimentos, a XII “Fulminata” retornou a Cesaréia; as forças romanas então retomaram sua progressão no rumo sul, alcançando Antipátrides e por fim Lida, por altura da festa dos Tabernáculos (provavelmente na 1ª metade de novembro de 66 dC), encontrando esta última cidade virtualmente deserta. De Lida, então, as forças romanas adentraram-se na Judéia, em direção a Jerusalém, através do passo de Bet-Horon; ultrapassaram-no, acampando então em Gabaão, a bíblica Gibeon ou Gabaon (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 19, par. 1º [513-516]). Ao saberem que as forças romanas estavam próximas de Jerusalém, uma grande massa de rebeldes deixou a cidade, em plena festividade dos Tabernáculos e as atacou resolutamente, em pleno dia de sábado, forçando Galo a retroceder em direção ao passo de Bet-Horon. Um dos líderes rebeldes, Simão bar-Gioras, comandou habilmente seus homens em ataques à retaguarda romana, capturando muitas armas e suprimentos; enquanto isso, os rebeldes conseguiram ocupar todos os lugares altos que controlavam o passo de Bet-Horon (par. 2º [517-22]).

    Após mais uma tentativa frustrada de negociar com os rebeldes, a partir dos préstimos de Agripa II – seus enviados foram mortos (par. 3º [523-26]), Céstio Galo atacou com força, conseguindo furar o bloqueio dos rebeldes, e alcançar os subúrbios de Jerusalém (meados de novembro de 66 dC). Instalou o seu acampamento no monte Escopo, pilhando depois as aldeias das vizinhanças, a fim de coletar comida e suprimentos diversos (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 19, par. 4º [527-28]); avançou a seguir para a própria cidade, conseguindo capturar o distrito ao norte, chamado “Bezetha”, ou “Cidade Nova”, que ainda não estava totalmente amuralhado (par. 4º [528-30]), queimando-o e alcançando a muralha da Cidade Alta, que protegia o Templo. Uma última tentativa foi feita pelos remanescentes “moderados” da classe dirigente hierosolimitana de terminar a rebelião; com efeito, eles tentaram entabular negociações com Galo, mas os rebeldes acabaram atacando os “moderados”, eliminando sem piedade seus líderes, e depois bombardeando os romanos, do alto das muralhas da Cidade Alta, com projéteis de pedra (par. 5º [533-36]).

    Mesmo sob ataque, os romanos iniciaram seus trabalhos de sapa, estando a ponto, pela 2ª metade de novembro, de fazer ceder trechos da muralha da Cidade Alta ao norte, e de tornar possível atear fogo nos portões do Templo (“A Guerra Judaica”, livro II, cap. 19, par. 5º [537]), causando pânico nos habitantes da cidade (par. 6º [538]). No entanto, aparentemente por razões inexplicáveis, Céstio Galo suspendeu os trabalhos de sapa (par. 6º [539] a par. 7º [540]), retirando-se um tanto precipitadamente para o monte Escopo e depois para Gabaão, sempre hostilizado pelos rebeldes, que perseguiram implacavelmente as forças romanas, atacando seus flancos e sua retaguarda, e forçando-as a abandonar boa parte de sua bagagem (par. 7º [541-44]).

    Céstio Galo deteve-se em Gabaão por três dias, a fim de reorganizar suas forças; logo após, continuou sua retirada, seguindo em direção ao passo de Bet-Horon – mas todos os lugares altos que controlavam esse passo estavam, como já citado, nas mãos dos rebeldes (par. 7º [545] a 8º [546-47]). Assim, a retirada transformou-se num desastre, e somente o cair da noite impediu que sua derrota fosse completa. Fazendo uso da escuridão da noite, ele e o remanescente de suas forças conseguiram escapar, deixando, não obstante, um grupo constituído de 400 de seus melhores soldados para trás, a fim de lhe cobrir a retaguarda. Esses soldados seguraram pelo máximo de tempo possível os ataques das forças judaicas, possibilitando a retirada (ou melhor, a fuga) dos romanos. Ao serem por fim sobrepujados pelos rebeldes, e dando-se estes conta da situação, os mataram imediatamente, e sem piedade (par. 8º [548-50] e 9º [551-552]). Pelos finais de novembro de 66 dC, os restos das forças romanas conseguiram retornar à base de Antipátrides, sempre com os rebeldes em seus calcanhares. Como um detalhe adicional de sua desgraça, a XII “Fulminata” havia perdido sua própria águia. Além do estandarte da legião, e, sem dúvida, bem mais valiosos em termos práticos, os vitoriosos rebeldes tomaram vários itens: muitas armas, todas as máquinas de guerra, e uma enorme quantidade de suprimentos abandonados pelos romanos, levando esse butim triunfalmente, em meio a cânticos, no seu retorno festivo a Jerusalém, onde foram recebidos como heróis. A vitória dos revolucionários, ao menos na ocasião, era completa; toda a Judéia, e a Galiléia, encontravam-se “livres” (par. 9º [552-55]).

    A tradição posterior, tanto judaica quanto cristã, data dessa época (i.e., de imediatamente após a derrota de Galo e do triunfo total dos “revolucionários” em Jerusalém) o êxodo da cidade dos últimos elementos “moderados” que não estavam dispostos a se comprometer com a revolta – tanto os fariseus moderados (que, após a revolta, organizariam o Judaísmo rabínico) quanto os judeu-cristãos. Embora não sejam verificáveis, tratam-se de acontecimentos plausíveis (como se verá logo a seguir).

    Retornando derrotado a Antióquia, Céstio Galo morreu pouco depois, quase certamente ainda antes da primavera de 67 dC (Tácito, “Histórias”, livro V, cap. 10), sendo substituído como legado da Síria por Gaio Licínio Muciano (cônsul sufeta c. 65 dC), que já havia servido por muito tempo sob as ordens de Corbulão. Ao mesmo tempo, Tito Flávio Vespasiano, um general veterano das campanhas na Britânia, era nomeado para um comando extraordinário, de três legiões, com a finalidade de debelar a revolta judaica. Novamente, os “militares” estavam na berlinda…

    A época que se seguiu imediatamente à derrota de Céstio Galo, e antes do início das campanhas de Vespasiano, no ano seguinte, foi de júbilo e de otimismo para os rebeldes judeus (e para todos aqueles que, diretamente ou não, os seguiram). A vitória sobre o mais poderoso, disciplinado e organizado exército do mundo antigo parecia um milagre – e foi assim considerado. Como na época em que Jerusalém havia sido cercada pelo assírio Senaquerib, no tempo do rei Ezequias, e milagrosamente libertada pela mão de Deus, novamente um exército poderoso não havia conseguido tomar a cidade, porque (obviamente) Deus não havia permitido, postando-se ao lado de seu “povo eleito”:

    “‘Portanto, assim diz o Senhor sobre o rei da Assíria: ele não entrará nesta cidade, nem lançará nenhuma flecha nela. Não se aproximará com o escudo, nem levantará aterro contra ela. Ele voltará por onde veio, e não entrará nesta cidade, oráculo do Senhor. Eu protegerei esta cidade e a salvarei, pela minha honra e pela honra do meu servo Davi’. Nessa mesma noite, o Anjo do Senhor saiu e feriu cento e oitenta e cinco mil homens no acampamento assírio. De manhã, ao despertar, só havia cadáveres. Senaquerib, rei da Assíria, levantou o acampamento e partiu; voltou para Nínive, e lá ficou”. (II Reis, cap. 19, vers. 32-36)

    As expectativas messiânicas mais fantásticas pareciam, por conseguinte, se confirmar plenamente; e, especificamente, o lugar da derrota dos romanos (Bet-Horon) em muito contribuiu para reforçar essa mística. Com efeito, foi nessas mesmas regiões, Gabaão e Bet-Horon, mais especialmente no passo de Bet-Horon que os cinco reis amorreus foram derrotados, no tempo de Josué, tendo os israelitas recebido especial ajuda divina:

    “E o Senhor dispersou os inimigos diante de Israel, causando-lhes uma grande derrota em Gabaon; e os perseguiu até ao caminho da subida de Bet-Horon, derrotando-os até Azeca e Maceda. Enquanto fugiam diante de Israel, na descida de Bet-Horon, o Senhor mandou do Céu uma forte chuva de grandes pedras, que os matou até Azeca. De fato, morreram mais pessoas por causa da chuva de pedras do que pela espada dos israelitas. E no dia em que o Senhor entregou os amorreus aos israelitas, Josué falou ao Senhor e disse na presença de Israel: “Sol, detém-te em Gabaon! E tu, ó Lua, no vale de Aialon!”. E o Sol se deteve, e a Lua ficou parada, até que o povo se vingou dos inimigos. No Livro do Justo está escrito assim: “O Sol ficou parado no meio do céu, e um dia inteiro ficou sem ocaso”. (Josué, cap. 10º, vers. 10-13).

    Também no passo de Bet-Horon Judas Macabeu havia derrotado o exército selêucida da Síria (tropas vindas da Síria, como as de Céstio Galo…), viabilizando a independência da Judéia, nos meados do séc. II aC:

    “Seron [o comandante do exército sírio] avançou até à subida de Bet-Horon, onde Judas [Macabeu] foi enfrentá-lo com pouca gente. Ao ver a multidão que vinha se aproximando para enfrentá-los, os homens de Judas lhe disseram: “Somos poucos; como poderemos enfrentar essa multidão forte e armada? Além disso, estamos cansados, hoje ainda não comemos nada”. Judas respondeu: “Não é difícil que muitos caiam na mão de poucos. Não faz diferença para Deus salvar com poucos ou salvar com muitos. A vitória na guerra não depende da multidão de soldados, mas da força que vem do Céu. Eles vêm contra nós cheios de insolência e de injustiça, para nos eliminar, a nós, a nossas mulheres e a nossos filhos, e levar tudo o que temos. Nós, porém, lutamos por nossa vida e por nossas leis. Por isso, Deus vai esmagá-los diante de nós! Não tenham medo!” Judas então terminou de falar, e os atacou de surpresa. E Seron, juntamente com seu exército, foram esmagados diante de Judas. Os homens de Judas perseguiram o inimigo pela baixada de Bet-Horon, até à planície. Seron perdeu oitocentos homens, e o resto fugiu para a região dos filisteus”. (I Macabeus, cap. 3º, vers. 16-24).

    Portanto, o passo de Bet-Horon foi palco de alguns dos mais famosos milagres e vitórias da história judaica; a derrota do poderoso exército de Céstio Galo era apenas mais uma vitória que Israel conquistava, com a ajuda da mão de Deus. Isso fez com que os últimos indecisos, moderados ou pró-romanos abandonassem o país (cf. “A Guerra Judaica”, livro II, cap. 20, par. 1º [556]), ou silenciassem, ou, mesmo, aderissem, ao menos exteriormente, à causa revolucionária.

    Portanto, caro sr. Arduin, sim, os romanos sob o comando de Céstio Galo chegaram diante dos muros de Jerusalém, e conseguiram até tomar parte da cidade – de fato, o subúrbio norte, chamado “Bezetha”, uma região recentemente incorporada à área urbana hierosolimita, e que ainda não se encontrava totalmente amuralhada. A retirada de Galo, ao menos na narrativa de Flávio José, é tida como “inexplicável”, mas isso, sem dúvida, deve ser visto mais como uma figura de retórica do historiador, do que propriamente como uma descrição exata da causa do evento (mais uma vez, a questão dos “fatos” e da “explicação dos fatos”, nas convenções da historiografia antiga). Galo deve ter percebido que, apesar de estar sitiando Jerusalém, e de estar, talvez, a ponto de ultrapassar os muros da Cidade Alta, encontrava-se em desvantagem, com pouco suprimento e sem apoio logístico adequado (não dominava sequer a rota até ao litoral, que atravessava obrigatoriamente o passo de Bet-Horon, nas mãos dos rebeldes), correndo o risco de ser, ele próprio, pego numa armadilha. Essa situação, e mais a sua inexperiência militar, fizeram-no optar por uma retirada que ele não pôde controlar adequadamente, e que se transformou em debandada, e depois em fuga. A estratégia de Galo sempre foi pobre, dependente por demais apenas de ações de terror e violência (massacres, queima de aldeias), sem um planejamento sofisticado. Assim:

    A) Demorou demais para partir para a ação e mandar suas legiões à Judéia; tentou resolver por vias “administrativas” uma situação que já havia degenerado além da possibilidade da aplicação razoável de tais medidas;

    B) Posicionou sua bagagem na retaguarda, não no meio de suas forças, fazendo com que fosse mais fácil perdê-la, se os insurgentes optassem não por batalha aberta, mas por incursões nos flancos e na retaguarda (o que acabou ocorrendo);

    C) Não dominou a rota essencial, de Antipátrides e Lida até Jerusalém, passando por Bet-Horon e Gabaão, deixando, ao invés, que os pontos estratégicos (lugares altos e trilhas) fossem ocupados pelo inimigo. E isso ocorreu duas vezes no passo de Bet-Horon: tanto no avanço para Jerusalém quanto, depois, na retirada.

    Enfim, note, sr. Arduin, que tudo (e, mais especialmente, as “profecias” messiânicas) parecia estar do lado dos insurretos. Eles tinham, ao menos, algumas razões para se sentirem otimistas de que a “redenção de Israel”, por fim, ocorreria. Afinal, as próprias Sagradas Escrituras assim asseguravam. As próprias profecias pareciam estar se cumprindo. Ou não?

    Espero ter podido esclarecer suas dúvidas. Sds,

    JCFF.

  30. Marcos Arduin Diz:

    Sim. Obrigado. Não precisava escrever tanto, mas valeu.
    .
    Um abraço
    Marcos

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