AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 23)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.

Correio Paulistano – Sábado, 24 de junho de 1916, página 3  

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério 

O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador 

OS MIRABELLI PROLIFERAM 

Um novo emulo do “homem misterioso” aproveita os tais fenômenos para curar uma sua criada de alcoolismo habitual 

Uma interessante missiva do diretor do “Argus” 

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Plínio Reys – o nosso sherlock, encontrou o papá do Sr. Carlos Mirabelli no tapete do salão nobre desta folha.  

OS MIRABELLI PROLIFERARAM 

como cogumelos. Pois, logo que o mistério foi por nós desvendado e que o “homem de longas barbas” podia ser imitado por qualquer mortal, várias pessoas arvoradas em “profetas” e “enviados” andaram por aí, investidas de funções de “super-homem”, dotados de “força mediúnica” extraordinária. Alegavam, muito naturalmente, a “imprevista” manifestação da “mediunidade”, ao contato com o famigerado “vidente”, que a tantos embaiu com a sua prosápia e as suas sortes.  

Entre os muitos “Mirabelli-mirim”, que assombraram espectadores, contam-se, para só nos referirmos a alguns, o DR. MARTINHO BOTELHO, que, encravando solenemente, ao tempo que se dava ares de feiticeiro, o monóculo formidável no olho direito, se punha a fazer de “homem misterioso”, com uma linha tal que até ele próprio estava quase a convencer-se, como aconteceu ao “outro”, de que possuía realmente uma força excepcional… 

O nosso distinto amigo, assim que se assenhoreou do “grande segredo”, resolveu fazer algumas experiências, em família. Uma das criadas de sua casa, luzida preta de rubras gengivas despidas de dentes, tinha o mau hábito de se entregar ao vício de desenfreadas libações alcoólicas. Durante a “comoeca”, a preta não aparecia ao serviço, apesar de ser empregada antiga da casa e muito boa empregada, quando não estava sob a influência do álcool. Cada vez, porém, que ela curava as suas carraspanas, dava mostras de tanto arrependimento, fazia tantos protestos de não recomeçar a “cousa”, tornava-se tão humilde e se dedicava tanto ao serviço, que o nosso amigo não tinha coragem de despedi-la.  

Aconteceu que a inveterada amiga das monas tinha tido uma das suas costumeiras crises, justamente no dia em que o dr. Martinho ficara “aparelhado” a reproduzir as “invocações espíritas”, à Mirabelli. 

– Que melhor ocasião para uma experiência? Seria até aplicar o “truque” numa obra de benemerência, transformando-o em remédio, porventura salutar.  

Não hesitou o dr. Martinho. Chamou a preta, fê-la sentar-se numa cadeira e preparou um “sermão”: 

– “Olha, Carolina, eu tenho estudado muito e agora já posso ver a alma dos mortos, almas boas que andam ao redor de nós, para nos guiar e proteger”. E, mais ou menos nesse diapasão, falou longamente. Eis senão quando, ergueu-se num salto, e, apontando para um canto da sala, gritou: 

– “Olha lá ela! Está vendo?!” 

A preta voltou-se, assustada, benzendo-se toda: “Cruz-credo, que será? Uai, seu dotô, que é que você tá vendo?” 

– É a alma da sua mãe, Carolina! E ela está muito triste porque você bebe. Se você continuar assim, vai parar no inferno. Ela está zangada…Olhe lá! Vem andando para o seu lado… 

A pobre preta, com os olhos esgarçados, virava a cabeça de um lado para outro, dando mostras do mais vivo terror. 

– Quer que ela apareça para você?

– Não, seu dotô. Hoje não. Otrodia sim.

– Quer que ela entre no seu corpo?

– Cruiz, credo! Pramorde Deus não faça isso, seu dotô, tem dó da pobre negra. Pode dizê que ela se assucegue, que eu não bebo mais. Juro por Deus!

– Está bom. Então vamos pedir a sua mãe que dê qualquer sinal, para que você veja que ela está aí.

E, dirigindo-se a um canto da sala, olhou para o ar e disse:

– Siá Zabé, você precisa dar uma prova de sua presença, para sua filha acreditar. 

Deixou passar alguns minutos para impressionar mais, fingiu que respondia à pergunta do fantasma e, virando-se para Carolina, disse: 

– Sua mãe vai fazer um lápis sair sozinho de dentro de um copo.  

O dr. Martinho preparou tudo, e daí a pouco o lápis começou a sair do recipiente. Carolina olhava assombrada. O Martinho invocava a alma de siá Zabé, gritando, fazendo um vasto e proposital espalhafato. E perguntava: 

– Está vendo, Carolina? Vê a sua mãe tirando o lápis?

– Eu tô vendo, seu dotô, dizia a preta, mal se contendo no seu pavor.  

E outras mais “sortes” fez o nosso caro amigo.  

Terminada a sessão, com uma reza que Carolina acompanhou muito compungida, de joelhos e mãos postas, o [ilegível] Martinho monologou satisfeito:  

– Agora, sim, a Carolina entra nos eixos e não bebe mais. Vai ser uma criatura ideal.  

Qual não foi a surpresa do dr. Martinho quando, no dia seguinte, Carolina pedia as contas: ia procurar outro emprego, bem longe da tutela incômoda da alma de “siá Zubé”.  

OUTRO “MIRABELLI”, QUE FEZ UM SUCESSO DOS DIABOS, 

foi o chefe da revisão desta folha, o poeta Raymundo Reis. O nosso companheiro, que é desconfiado como um mineiro e que em matéria de crendice é um dos mais céticos e zombador, logo que soube da “notável tramóia”, deu saltos de júbilo, antegozando os “triunfos” que ia alcançar, pois preconcebera o “formidável plano” de arvorar-se em médium vidente, auditivo e quejandas cousas, a fim de exibir-se a umas famílias de suas relações, as quais, além de serem eminentemente espíritas, eram admiradores incondicionais das patifarias do “ilustre desconhecido, graças ao qual decretaram a bancarrota da física…” 

Pois bem. O Raymundo, que em família se chama Mundico, que é quase uma corrupção de [mufarrico?], foi, deveras, um “diabo perfeito”, que se diria haver assomado, por descuido do Tricéfalo sanhudo da lenda, das profundas cavernas de Pedro Botelho. Magro, esquelético, de dedos descomunais, com uns óculos de aro de ouro, enormes, pesando cabalisticamente no avantajado apêndice nasal, o Raymundo, em visita às aludidas famílias, pôs-se a queixar-se, numa voz de baixo-profundo, em variações de marchas fúnebres e “de-profundis”, de que sofrera uma “transformação radical” na sua organização física e moral. Era até há pouco tempo ateu; no entanto, protestava ele, com um sério convincente, fora forçado “por motivos superiores” a virar casaca… 

– Quê? Exclamaram as senhoras, as senhoritas e os cavalheiros presentes, num frêmito de alegria, pois conheciam as “tendências revolucionárias” do bom do rapaz, que, a “ir como ia, estava destinado a uma excomunhão de liquidá-lo para toda a eternidade.”

– Pois é. Estou espírita, disse, solene.

– Espírita! – e só faltaram matar o Reis de contentamento.

– É, arriscou ele, e desconfio até que tenho “algumas qualidades de médium”…

– Não diga?!

– Tal e qual!

– Como isso? Mas que felicidade!

– Ando assim não sei como… Creio que tenho um pouco “das propriedades” do Mirabelli.

– Eu não dizia! – exclamou uma senhorita da roda continuando, com um ar de triunfo – “já desde o ano passado que ando dizendo a mamãe que você deve ter força mediúnica…” 

O Reis sorriu, agradecido, “Não era para tanto assim; ele, um simples mortal, ser favorecido com uma graça dos deuses…” 

– Que é que tinha isso? disseram.

– Enfim…

– Mas que é que o sr. sente, seu Reis? – perguntaram-lhe.

– “Cousas”. Qualquer dia hei de experimentar se posso realizar aqui uma “sessão”. – arriscou timidamente.

– Por que não há de ser hoje?

– Hoje não. Primeiro vou fazer só, pois “temo o fiasco”. Demais, isto é apenas uma desconfiança, não sei se serei mesmo capaz de…

– Experimente hoje, hoje mesmo – pediram todos.

O Raymundo, que estava magnificamente munido de um “espírito”, e desejoso mesmo de dar uma prova da sua “potencialidade mediúnica”, arriscou: 

– Mas é preciso muito “respeito”, muito silêncio e sobretudo que, numa “corrente”, v.v. me ajudem. Sou ainda novato… 

Os presentes gruparam-se então, e arranjou-se, enquanto o diabo esfrega um olho, uma ótima “corrente”. O Raymundo, numa “tremenda sensação de frio”, revirou a gola do seu casaco cor de macaco. Depois, dizendo que não “garantia” o resultado da sua “invocação”, porque não estava treinado, pediu uma garrafa, pois ia “tentar” fazer o que fazia o Mirabelli.  

Preparada a “cousa”, reinou na sala um silêncio sepulcral. O “médium”, trêmulo, alçou no ar [ilegível] as mãos magras e espalmadas, regalou os olhos da [ilegível], murmurou num arranco de gelar o sangue nas veias: 

– Vejo [sombras?]… 

Houve um frêmito na assistência. Os espectadores, de uma impassibilidade de estátuas, nem piscavam; uns estavam pálidos, outros suavam frio.  

– Vamos! Dêem-me um lápis. 

Deram-lho. O Reis, mais que depressa, não perdendo a atitude de mago da idade média, meteu-o pelo gargalo da garrafa abaixo. Depois, “concentrando-se”, começou a operar, dando “grunhidos terríveis”. A comoção era geral. Todos os olhos se cravavam na garrafa… De repente, o lápis trepidou. O Reis redobrou de “energia” e o lápis subiu de uma vez até cair, de lado de fora, para um dos lados… 

Foi um sucesso tremendo… A assistência encheu-se de uma larga admiração pelo “jovem médium que, à maneira de ‘outro’, contribuía para a bancarrota da falada ciência experimental”… 

Finda essa experiência, com o mesmo êxito, realizou outras o nosso companheiro, que, por fim, fingindo um cansaço enorme, numa lassidão umectante, caiu prostrado numa cadeira. 

O Reis, se já era estimado na casa, agora então… nem é bom falar. 

HÁ OUTROS “MÁGICOS NOTÁVEIS”, 

Como o poeta Júlio César da Silva. O ilustre homem de letras, depois que assistiu a uma das sessões do nosso secretário, “anda agora assombrando” a população do Braz. Munido de “aparelhos”, o cantor das Estalactites, em sessões dedicadas ao belo sexo, tem feito “um êxito” formidável, de pôr água na própria boca do Mirabelli… 

Assim também um nosso colega do “Comércio de S. Paulo” e inúmeros outros, munidos dos “aparelhos”, tem levado aos quatro cantos da capital provas cabais de que, graças ao “Correio Paulistano”, têm hoje “uma força” misteriosa, invejável. Neste ponto de vista, os nossos companheiros são mesmo muito superiores ao mágico, pois que “distribuem” nababescamente a sua mediunidade, ao passo que AQUELE é egoísta e quer tudo só para si, não admitindo que os outros mortais possam também ser “enviados”…

Entre os muitos que aproveitaram as magias mirabellescas, para divertir-se e divertir aos conhecidos, salienta-se, também, o  

BARÃO DE ERGONTE, 

que, dias depois de descoberta a “marosca”, entrava o Correio, dizendo ao Fonseca:  

– Arranja-me aí um “espírito”, quero fazer uma “sessão”, para uns conhecidos. 

E Mucio Teixeira levou, com efeito, um dos melhores “espíritos” que o nosso secretário possuía. Levou-o para realizar, como realizou, com êxito estrondoso, as mais gaiatas cousas mirabellicas. 

* * 

O Sr. Carlos Mirabelli detém os “seus espíritos” no fundo prosaico de uma garrafa.

(Dos jornais).

 

ALMAS ENGARRAFADAS 

O homem de ciências, o letrado, aquele,

Que envelheceu entregue a altos estudos,

Resolvendo os problemas os mais rudes,

Curva-se diante do prestígio dele.

 

Sim, ninguém o compara; apenas ele

Simples mortal, aliás dos mais peludos

Conseguiu descobrir que “seres mudos”

Vibram e atuam fortemente nele

 

Ah! Nunca mais morrer, que as nossas almas,

Em vez de alar aos céus, tranqüilas, calmas,

Caem, como peixinhos, na tarrafa.

 

E quando, dos pecados redimidas,

Julgam as suas penas já cumpridas,

O Carlos Mirabelli as engarrafa…

NHONHO 

* * 

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O festejado e brilhante poeta Aristéo Seixas, nosso bravo companheiro nesta moralizadora missão de restabelecer a verdade em benefício da proverbial cultura paulista. 

MIRABELLI INCULCA-SE REDATOR DO “ARGUS” 

Relativamente a referência que anteontem fizemos a Carlos Mirabelli, como ex-redator do “Argus”, recebemos do Sr. Natalino Graciano, digno diretor daquele bem-feito periódico, a seguinte carta: 

“Cumprimento-o. Na qualidade de assistente e assíduo leitor que sou do jornal de que v.s. é digno redator-secretário, estou lendo com bastante interesse a louvável campanha que o “Correio Paulistano” move não propriamente contra o Sr. Carlos Mirabelli, mas contra a superstição que se ia alastrando nesse Estado e contra a excessiva boa fé dos nossos homens de ciência.  

Acompanho apaixonadamente a corajosa atitude de seu brilhante matutino e a aplaudo com entusiasmo, inimigo figadal que sou de tudo quanto cheira a mistério e a mistificação. 

Hoje, porém, fiquei surpreso com uma alusão – filha, talvez, de uma informação inexata – ao “Argus”, jornal de que sou fundador e redator-chefe.  

Não pretendo, em resposta ao tom de descaso com que o “Correio” se referiu à minha folha, fazer a defesa do “Argus”, que muitas pessoas – especialmente as que não o conhecem – julgam um jornaleco de “[chantage?]” ou “[cavação?]”, quando, na realidade, conforme pode atestar quem o lê sem prevenção, ele se bate por um ideal bem alto, como seja o da moralização de costumes da nossa mocidade. Não é disso que vou tratar. 

Se lhe escrevo, Sr. Fonseca, é para fazer-lhe saber que o Sr. [Capisine?] (tal é o seu verdadeiro nome) nunca fez parte do pessoal do “Argus”, nem como simples remessista.  

Freqüentou, é certo, há uns 6 ou 7 anos, por alguns meses, a nossa modesta tenda de trabalho, mas fazia-o, apenas, como amigo e conterrâneo do sr. João B. Poeta, que por esse tempo era nosso auxiliar, e não em outra qualidade e muito menos na de redator! 

Foi desse modo que o conheci e me convenci de que, apesar de quase analfabeto, o sr. Mirabelli é superlativamente audacioso, pois, segundo ele mesmo me há referido, teve a ousadia de empregar-se na Light como engenheiro-eletricista, quando, de fato, não tinha a mínima noção de técnica elétrica! 

Na ocasião em que se começou a falar nos seus “milagres”, logo vi na nova atitude dele um dos lances de refinada audácia em que é mestre inigualável, e, em palestra com o sr. Edgar Leuenreth, redator-secretário d’“ACapital”, narrei alguma coisa que sabia, acerca do incorrigível prestímano.  

Dei estas explicações, sr. Fonseca, para que v. s., gentil como sei que é, faça uma ligeira retificação, pois o público precisa saber que o “Argus” em tempo algum foi redigido por intrujões e (modéstia à parte) iletrados. 

Sem mais, agradecendo-lhe de antemão, subscrevo-me, com elevada estima, de v. s., [ilegível], e humilde admirador, Natalino Graciano.” 

A referência que fizemos, aliás sem nenhum menosprezo pelo “Argus”, funda-se no fato de ter o prestímano, ora em evidência, se inculcado redator daquele jornal, há tempos, no posto policial da Consolação. 

Tendo aquele periódico feito referências pouco lisonjeiras à conduta da jovem Vicência de Lourenço, residente à rua Júlio Conceição, no bairro do Bom Retiro, um irmão desta, de nome Paschoal de Lourenço, pediu para o caso a interferência do sr. dr. Antonio Nacarato, que então exercia inteiramente o cargo de quarto delegado.  

Intimado o editor responsável do “Argus” a entender-se sobre o assunto com a autoridade, compareceram perante esta um indivíduo baixote, pálido e zarolho e o sr. Carlos Mirabelli, que, evocando a si mesmo a responsabilidade da aludida publicação, se comprometeu a jamais inserir no “Argus” qualquer referência àquela jovem. 

E isso se deu efetivamente. 

Daí porque atribuímos ao comediante das “manifestações espíritas” a qualidade de ex-redator do “Argus”.  

Para amanhã:

AS NOSSAS PESQUISAS

Mais depressa se apanha um mentiroso…

Desfazendo lendas

A CAVEIRA DA “CASA FRETIN”

Curiosa verificação na “Casa Villaça”

UMA SAÍDA HONESTA PARA O SR. MIRABELLI

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