ESTUDO DA APARÊNCIA FÍSICA DE JESUS – PARTE 2

Para comemorar o Natal, o “Obras Psicografadas” traz a 2ª parte do estudo do Senhor José Carlos Ferreira Fernandes sobre a aparência física de Jesus, que é na verdade uma continuação de sua análise sobre o livro “Há Dois Mil Anos”, de Chico Xavier.

Para fazer o download da segunda parte, os links são

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III.3) A Gênese da Imagem Canônica de Jesus:

            Portanto, a imagem atualmente usual para a face de Jesus – a do homem adulto, com barba, de cabelos longos – não aparece nem nos antigos testemunhos indiretos (literários) e nem diretos (arte cristã das catacumbas) até à época da “Paz da Igreja”, ou seja, até ao primeiro quartel do século IV dC.  Ao contrário, a representação artística de Jesus, quando ocorre, tende sempre a apresentá-Lo como jovem e imberbe, com cabelos curtos, ou não muito longos.  Portanto, a questão que ora se coloca é justamente a seguinte: de onde originou-se a representação “alternativa”, por assim dizer, de Cristo (adulto, barbado, cabelos longos, etc.), que acabou por prevalecer sobre todas as demais, a ponto de se tornar a figura usual, dir-se-ia mesmo quase única, do Salvador, prontamente reconhecida por qualquer fiel, oriental ou ocidental, tanto então quanto hoje?

            Deve-se admitir que, apesar dessa representação ser a mais difundida, mesmo virtualmente a única, de Jesus, ao menos a partir do séc. VI dC, pouco, ou quase nada, se sabe acerca de suas origens, e de como (e por quê) passou, rapidamente, no curso duns dois séculos no máximo (meados do séc. IV dC a meados do séc. VI dC) a ser a preferencial, e depois a “canônica”.  Em parte, isso se deve ao fato de que muito pouco chegou aos tempos atuais da primeira arte cristã da época da “Paz da Igreja” – ou seja, do período que vai do fim das perseguições (séc. IV dC) até ao séc. IX dC, mais especificamente até ao ano 843 dC, quando, no Império Oriental (bizantino), foi superada definitivamente a questão da licitude do uso de imagens nas igrejas, com o fim da querela iconoclasta.  Quer pela ação do tempo, quer pela substituição posterior, quer pela destruição deliberada, há poucos testemunhos da arte cristã dessa época nos territórios romanos, a não ser para alguns lugares específicos, que, de tão poucos, merecem ser citados explícita e detalhadamente:

a)      Representações nalguns monumentos (principalmente, embora não apenas, igrejas) da cidade de Ravena, no norte da Itália.  Ravena foi a capital operacional do Império Romano do Ocidente a partir do ano 402 dC[232], e, posteriormente, tanto dos reinos bárbaros sucessores na Itália quanto da Itália bizantina, após a “reconquista” efetuada por Justiniano, mediante as medonhas guerras góticas.  A importância da cidade diminuiu consideravelmente a partir do século VIII dC, e muitas decorações “antigas” (mais especialmente dos séculos V e VI dC), constituindo-se principalmente de soberbos mosaicos, sobreviveram;

b)      Representações, nalgumas igrejas romanas, de imagens confeccionadas entre a 2a metade do séc. IV dC e os meados do séc. VI dC.  A grande maioria das igrejas romanas, construídas a partir da época de Constantino o Grande, e até aos meados do séc. VI dC, sobreviveram, tendo sido utilizadas ininterruptamente para o culto desde então.  Contudo, o próprio uso ininterrupto fez com que, quase sempre, a decoração primitiva fosse, nalguma época, substituída (quer ao longo da Idade Média, quer a partir do Renascimento[233]), isso quando o próprio edifício não era objeto de remodelações, ou mesmo (como no caso da basílica de São Pedro, no Vaticano) de total reconstrução.  Assim, embora haja testemunhos primitivos da arte cristã dos sécs. IV, V e VI dC em Roma, eles não são em absoluto numerosos;

c)      Algumas decorações em mosaico e ícones (imagens), basicamente do séc. VI dC, que sobreviveram no mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai.

Os testemunhos orientais da arte cristã dos séculos IV a VI dC virtualmente desapareceram: a) nas regiões que caíram sob domínio islâmico nos sécs. VII e VIII dC, pela destruição ou pela posterior islamização; b) nos Bálcãs, por causa das destruições que se seguiram às invasões eslavas, que submergiram toda a região, dos finais do séc. VI dC aos meados do séc. VIII dC; c) nos territórios que permaneceram sob o domínio imperial (Ásia Menor ocidental, Egeu, partes da Trácia e da Grécia, e principalmente Constantinopla) por causa das destruições deliberadas levadas a cabo durante a crise iconoclasta (726-843 dC).  Alguns locais isolados (como o mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai) puderam manter intactos, ou quase, espécimes artísticos dessa época.  Mas a grande “arte cristã” bizantina, com seus mosaicos e ícones, desenvolveu-se após a crise iconoclasta, ou seja, a partir da 2a metade do séc. IX dC.  Foi a partir dessa época que as igrejas foram redecoradas, ou reconstruídas (nas regiões retomadas aos eslavos), e que a arte religiosa expandiu-se entre os russos, já com um cânone fixado (inclusive no que tange à imagem de Cristo).

Os testemunhos ocidentais, por outro lado, sofreram um lento processo de destruição e de substituição.  Havia, em todo o Ocidente romano, igrejas (basílicas) construídas no período que se seguiu à Paz da Igreja, nos séculos IV e V, e mesmo VI dC, sendo tais edifícios, muitas vezes, de dimensões consideráveis, e decorados. Mas eles foram sendo paulatinamente substituídos (quer por remodelação, quer por reconstrução seguindo-se a incêndios) a partir do séc. X dC, primeiramente por novas edificações no estilo “românico”, e depois, no estilo “gótico”[234].  A decoração dessas igrejas seguiu, de perto (embora com inúmeras variantes e reelaborações locais, muitas vezes de riquíssimo conteúdo), as linhas gerais traçadas a partir do que os peregrinos viam nas grandes basílicas da cidade de Roma[235].  Ora, as igrejas romanas, como visto, tiveram sua decoração sucessivamente renovada ao longo de toda a Idade Média, e mesmo depois.  A cidade permaneceu, culturalmente, bastante ligada ao Oriente bizantino, pelo menos até aos séculos IX e X dC, e nela ecoou também a influência da nova imagística cristã oriental posterior ao fim da querela iconoclasta – incluindo-se a consolidada representação de Cristo na sua forma “canônica”, como o adulto barbado, de cabelos longos, entronizado em majestade.  Assim, mesmo por vias indiretas, o cânone artístico consolidado no Oriente entre os finais do séc. VIII dC (2o concílio de Nicéia, 787 dC) e os meados do séc. IX dC (fim da querela da imagens, 843 dC) pôde também triunfar no Ocidente e, via Roma, a partir de peregrinos, artesãos e artistas vários, influenciar toda a Europa Ocidental nos novos edifícios religiosos, primeiramente da “renascença carolíngia”, depois românicos e finalmente góticos, que viriam a ser erguidos nos séculos seguintes.

A situação esboçada nos parágrafos anteriores, assim, explica, ainda que bem resumidamente, a disseminação e o triunfo da nova imagem do Salvador, tanto no Oriente quanto no Ocidente.  Contudo, ainda permanece a questão da gênese de tal iconografia – quando, onde e por quê Cristo começou a ser representado como um adulto barbado e de cabelos longos, e como tal imagem triunfou sobre as anteriores representações.

Precisamente quanto a esse tema, fascinante em si, há apenas hipóteses – diante das poucas sobrevivências materiais e da quase total ausência de testemunhos literários.  Assim, muitos modernos formularam suas conjecturas; mais usualmente, tais conjecturas ligam-se ao aspecto pretensamente “pagão” e “sincrético”, mesmo “venal”, segundo tais autores, que a Igreja passou a exibir desde o final das perseguições, mais precisamente a partir da época de Constantino o Grande, e de sua transformação em religião oficial do Império Romano, ao longo do séc. IV dC.

Segundo tal corrente, a representação de Cristo seguiria a dos antigos deuses, e a imagem “canônica” seria uma reelaboração da imagem de Zeus Olímpico, representado usualmente com barba e cabelos relativamente longos.  Essa concepção, contudo, deve ser revista.

As representações artísticas cristãs, como já visto no que concerne à arte das catacumbas, sempre se ligaram às tradições artísticas (clichés, typoi) da arte greco-romana, e isso é perfeitamente natural.  Os aspectos da representação diziam respeito a simbologias correntes e perfeitamente reconhecíveis como tais, que se aplicavam a tudo, inclusive (mas não somente) às imagens dos deuses.  Havia deuses que eram representados imberbes (como Apolo, ou Orfeu); havia outros que o eram com barba (como Zeus).  O rosto imberbe era símbolo da juventude, e daí, por associação, da eternidade e da imortalidade (para Jesus, especificamente, da vitória sobre a morte); um rosto barbado, por outro lado, representava, para o homem do sexo masculino, o amadurecimento e a autoridade – era um símbolo “patriarcal” numa sociedade marcadamente patriarcal e, dir-se-ia hoje, “machista”.  Um deus ser representado de tal ou qual modo ligava-se ao atributo que mais se lhe queria enfatizar.  Assim, era razoável que Apolo, ligado à música, às artes, aos aspectos mais amenos, permanentes e “pacíficos” da civilização, fosse representado imberbe (e o mesmo diga-se de Orfeu); por outro lado, era perfeitamente cabível que Zeus, ou Júpiter, o “pai dos deuses”, o “grande patriarca” por excelência, fosse representado barbado.  Essas simbologias, de resto, e isso deve ser sempre enfatizado, transcendiam as representações divinas – no Oriente, e mesmo na Grécia clássica, os homens feitos, no pleno vigor de sua força, na guerra e no exercício de seus exclusivos direitos de cidadania, usavam barbas[236]; rostos sem barba apareceram apenas a partir de Alexandre o Grande.  Esse rei não usava barba, alegando que, no curso duma batalha, ela poderia ser agarrada pelo inimigo – e iniciou uma moda, ao menos entre os soldados.  Mas essa moda foi, a pouco e pouco, recuando, a partir da época romana.

Os filósofos sempre usaram barba, pois ela lhes conferia um caráter mais “professoral”, ou de autoridade (mais uma vez, o arquétipo do “patriarca”).  Os romanos, por tradição imemorial, não usavam barba – seus rostos eram lisos, e seus cabelos, curtos; isso já foi citado no presente trabalho.  Mas a ligação entre a “barba” e a “maturidade”, e, por extensão, a “autoridade”, permaneceu.  O Júpiter romano (o Zeus dos gregos) era barbado.  E, a partir dos meados do séc. III dC, mesmo entre os militares, a barba passou a ser mais comum – geralmente uma barba curta, a “barba em estilo militar”, para que os inimigos não pudessem agarrá-la[237].

Assim, uma representação de Cristo como um adulto barbado não teria, necessariamente, nada a ver, em termos diretos, com uma “assimilação” a Zeus – teria, isso sim, a ver com uma nova atitude diante do Salvador, uma atitude que privilegiaria, mais e mais, a Sua autoridade, o Seu poder.  Justamente o que passou a ocorrer a partir da época da “Paz da Igreja”.

Os tempos de perseguição e de incertezas haviam terminado; o triunfo do Cristianismo parecia óbvio, e tal percepção somente fez se fortalecer ao longo do séc. IV dC.  O poder da Igreja aumentou; passou a ser possível a representação desse poder na própria pessoa de Cristo, não mais visto como um jovem, mas sim como um adulto no pleno uso de suas capacidades.  Com efeito, se a figura imberbe passava a idéia da eternidade, também poderia passar a idéia da subordinação e da imaturidade.  Era mais importante, agora, enfatizar o poder de Deus, e de Cristo – e um maior desenvolvimento do dogma trinitário ajudaria nisso, como se verá.

É nessa nova percepção, muito mais do que numa “paganização”, que se pode descobrir a gênese da representação de Jesus como um adulto barbado e de cabelos longos.  Os tempos eram outros; outra deveria ser a figura do Salvador.  Obviamente, a imagística tradicional (o Jesus “jovem” e “imberbe”) não foi suplantada duma hora para a outra – ela, afinal, já estava entranhada nas comunidades cristãs.  Mas o que se nota, a partir dos meados do séc. IV dC, é o progressivo avanço da “nova” representação de Jesus, ainda que não de forma exclusiva.  As vicissitudes posteriores é que a fariam triunfar definitivamente.

Quais as mais antigas representações de Cristo no “novo estilo”? Mais uma vez, para tanto, deve-se procurar na cidade de Roma e arredores; e, nos (poucos) exemplos sobreviventes, que podem ser datados do séc. IV dC, o autor deste trabalho crê poder identificar a origem de tal representação.  Para isso, serão analisados circunstanciadamente, a partir de agora, os espécimes sobreviventes: a) os dois mosaicos da “traditio legis” presentes nas absidíolas laterais da igreja de Santa Constança; b) o “Cristo Pantocrátor” encontrado em Óstia; c) o Cristo Entronizado na abside da igreja de Santa Pudenciana; enfim, d) o busto de Cristo nas catacumbas de Comodila.

 

III.3.1) O “Cristo Jovem” e o “Deus Pai” nas Absidíolas da Igreja de Santa Constança:

            A cessação das perseguições e a conversão de Constantino o Grande ao Cristianismo significou o início duma “arte cristã” patrocinada pelo Estado, que suplantou a antiga arte presente nas catacumbas e, talvez, nos antigos “tituli” e salas de reuniões das congregações.  Para tal, a planta original da “basílica”, o amplo salão de audiências ou tribunal, usualmente com três naves, sendo a central mais alta que as laterais e iluminada por um renque de janelas (“clerestório”), apresentando ou não absides em seus extremos, foi adaptada para os novos prédios cristãos, destinados a receber as congregações, agora cada vez mais numerosas, para a celebração das missas.  Houve, é claro, inúmeras variações (p.ex., ausência de transepto ou de abside, ou existência de mais de uma abside), mas o esquema usual duma basílica cristã primitiva (1o quartel do séc. IV dC aos inícios do séc. VI dC) pode ser com proveito mostrado na imagem a seguir[238].

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            Constantino o Grande construiu igrejas dentro desse estilo tanto em Jerusalém e em Belém quanto em Roma (e também em Constantinopla[239]).  Além do uso do plano “basilical” ilustrado acima, contudo, havia uma outra opção para a construção de edifícios religiosos, o assim denominado “plano central”, ou seja, uma estrutura circular, ou octogonal, que poderia ser encimada por uma cobertura cupulada (semelhante ao Panteão de Agripa).  O “plano central” podia ser utilizado quer para monumentos comemorativos, quer para túmulos, dum mártir ou duma figura importante (dentro da tradição etrusca, continuada pelos romanos, de túmulos redondos), quer para uma simples capela, quer para um batistério, quer para um conjunto disso tudo, e podia ser posto ao lado dum edifício construído em “plano basilical”[240].

            Constantino construiu, em Roma, as basílicas de São Pedro (nos contrafortes da esplanada do Vaticano, ao largo da via Cornélia, com cinco naves, uma central e quatro laterais, um trabalho que envolveu grandes obras de terraplenagem) e de São Paulo Extramuros (na via Ostiense), para comemorar, no local de seus túmulos, os dois grandes mártires, fundadores da Igreja romana.  Do mesmo modo, fez construir as igrejas de São Sebastião Extramuros (na via Ápia) e de São Lourenço Extramuros (na via Tiburtina), também no local dos sepulcros desses mártires.  Adaptou também, no palácio Lateranense (situado no interior do recinto murado de Aureliano, dando fronteira, num dos lados, na própria muralha), uma basílica (inicialmente consagrada ao Salvador, a atual São João de Latrão), servindo o conjunto tanto para ser a “catedral” do bispo de Roma (i.e., a sua igreja principal, onde ele possuía o seu trono, ou sede, cathedra), quanto o palácio administrativo da igreja romana.  Sua mãe, Santa Helena, fez construir, próxima à basílica lateranense, também dentro dos muros de Aureliano, a basílica da Santa Cruz de Jerusalém, onde mandou instalar um fragmento da Verdadeira Cruz, que ela havia descoberto por ocasião de escavações no Gólgota.  E o próprio Constantino, enfim, fez erguer uma basílica de três naves consagrada à mártir Santa Inês (Agnes), na via Nomentana (“Sant’Agnese fuori le mura”, a antiga), próxima ao seu túmulo, a pedido de sua filha Constantina.  Ela era devota de Santa Inês, por ter conseguido, ao que se diz, mediante sua intercessão, a cura duma doença que a havia afligido na adolescência.

            Na Palestina, as edificações constantinianas foram feitas a pedido de sua mãe, Santa Helena, que liderou, por assim dizer, uma série de “escavações” nos lugares ligados ao nascimento, à morte e à ressurreição de Jesus.  Assim, em Belém a “Gruta da Natividade” foi encontrada num antigo santuário pagão dedicado ao deus Pã.  O monumento pagão foi destruído, erguendo-se no local o santuário da Natividade, uma estrutura mista, englobando um edifício de “plano central” (octógono) cobrindo a Gruta da Natividade e uma basílica anexa.  Em Jerusalém, um edifício octogonal, de plano central, foi erguido no Monte das Oliveiras, em torno da pedra que, segundo dizia-se, exibia as marcas dos pés de Jesus, na ocasião de sua Ascensão aos Céus; o edifício foi conhecido como a Eleona (“monumento do monte das Oliveiras”, ou “monumento da Ascensão”).  E, no Gólgota, foram iniciadas escavações para se descobrir o sepulcro de Cristo.  Inicialmente, foi “descoberto” o local da Crucifixão, com os restos da “Verdadeira Cruz”.  Para comemorar o fato, a pedra do Gólgota foi enquadrada num dos lados dum átrio, que servia de entrada a uma portentosa basílica de cinco naves, chamada “o Testemunho” (Martyrion); a oeste da abside do Martyrion foi enfim “descoberto” (não se sabe se também por Santa Helena) o sepulcro de Cristo, imediatamente cercado por uma estrutura circular em “plano central”, ligada ao Martyrion por um segundo átrio.

            A edificação constantiniana dos Santos Apóstolos, em Constantinopla, era também uma estrutura mista – uma basílica ao lado duma estrutura octogonal, semelhante ao conjunto do Santo Sepulcro de Jerusalém.  O octógono serviria de túmulo para Constantino, e para os imperadores orientais posteriores, embora o conjunto tenha sido totalmente remodelado na época de Justiniano (reinou 526-565 dC), numa estrutura ao que se diz bastante parecida com a da atual catedral de São Marcos, de Veneza (com cinco cúpulas)[241].

            Esses, enfim, os monumentos constantinianos, que serviriam de protótipo para a “arte cristã imperial” dos séculos IV e V dC, e mesmo depois.  Voltar-se-ão as atenções, agora, para a basílica romana que Constantino ergueu para honrar a mártir Santa Inês (Agnes).

            A basílica constantiniana, em si, não mais existe.  Sabe-se que o edifício, que se achava então em condições críticas, foi restaurado sob o pontificado do papa Símaco (498-514)[242], mas ela já estava seriamente comprometida nos inícios do séc. VII dC, tanto que, sob o pontificado de Honório I (625-638), uma nova basílica, menor, foi construída perto dali, diretamente sobre a cripta de Santa Inês (“Sant’Agnese fuori le mura”, a nova – o atual santuário de Santa Inês)[243], quedando a antiga basílica constantiniana em ruínas, pouco mais restando que as paredes externas.

            Mas um dos edifícios ligados à basílica constantiniana sobreviveu.  Trata-se duma estrutura em plano central, que é hoje conhecida como a igreja de Santa Constança (Santa Costanza), originariamente um apêndice da primitiva basílica, como se pode ver na ilustração a seguir[244].

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            Uma planta mais detalhada do edifício é mostrada abaixo.  A um nártex de entrada, bi-absidado (“1” na ilustração) segue-se uma rotunda cupulada (“2”), circundada por um deambulatório (“3”).  Separando a rotunda do deambulatório, há doze pares de elegantes colunas de granito, com capitéis coríntios, cada par ligado por arcos.  O deambulatório é circundado por 14 nichos (pequenas absides, “absidíolas”), alternadamente circulares e retangulares.  A absidíola retangular oposta à entrada (“4”) é a maior, sendo o lugar original dum sarcófago; as duas absidíolas semicirculares ao centro, maiores que as demais, ainda ostentam decorações em mosaico.

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            A abóbada do deambulatório circular ainda conserva os soberbos mosaicos originais, do século IV dC, que, num estilo naturalista, alternam motivos geométricos e cenas de vindima, ostentando retratos inseridos em medalhões.  A cúpula, bem como as absidíolas, eram antigamente recobertas de mosaicos, com temas especificamente cristãos, ainda registrados em desenhos, aquarelas ou descrições na época renascentista, mas que foram eliminados em 1620 pelo cardeal Fabrício Veralli, por causa de seu péssimo estado de conservação, e que os substituiu por afrescos (os quais, por sua vez, foram eliminados no séc. XX).  Sobraram apenas os dois mosaicos das duas absidíolas semicirculares ao centro.  As paredes, por sua vez, eram ornamentadas com marchetaria policrômica de mármore (opus sectile), retirada no pontificado de Urbano VIII (1623-1644).

            Sabe-se, como já citado, que a basílica de Santa Inês foi construída por Constantino o Grande, a pedido de sua filha Constantina, e isso antes do ano 335 dC.  O testemunho do Liber Pontificalis, quanto a isso, é explícito: o Imperador dedicou a basílica da “santa mártir Inês, bem como um batistério no mesmo local, a pedido de sua filha; e lá foram batizadas  tanto a sua [de Constantino] irmã, Constância [ou Constança, se se utilizar a grafia atual], quanto a sua filha [Constantina], pelo papa Silvestre”[245].  São Silvestre I foi papa de 314 a 335 dC.  Mais ainda, uma inscrição acróstica, em versos, na abside da basílica, ainda visível na época de Honório I (625-628), composta provavelmente pelo papa São Dâmaso (366-384), confirma Constantina como a responsável pela construção da basílica.  A igreja de Santa Constança é considerada como sendo ou o túmulo de Constantina, ou o batistério que ela dedicou juntamente com a basílica.

            Constantina, filha de Constantino, irmã do imperador oriental Constâncio II (337-361), casou-se inicialmente com seu primo Anibaliano[246], c. 335 dC, depois de ter comissionado em Roma a basílica dedicada a Santa Inês.  Esse Anibaliano havia sido nomeado por Constantino como rei do Ponto e da Armênia, mas, como outros membros da família imperial, foi assassinado em 337 dC, logo após a morte do Imperador.  Ela retornou a Roma, onde permaneceu até ao ano 350 ou 351 dC, quando então foi dada em casamento, por seu irmão Constâncio II, a um outro primo, Galo[247].  Galo foi nomeado por Constâncio II “César” (i.e., imperador auxiliar) para a Síria, indo residir em Antióquia.  Constantina seguiu-o, mas foi chamada a Constantinopla pelo irmão em 354 dC, morrendo na viagem.  Dando a palavra ao historiador Amiano Marcelino:

A fim de dissimular quaisquer suspeitas que o César [Galo] pudesse nutrir, Constâncio usou duma série de artifícios hipócritas a fim de persuadir sua irmã [Constantina, esposa de Galo] a ir visitá-lo [em Constantinopla], como se estivesse com saudades dela e a quisesse logo rever.  Apesar de sua hesitação, ela decidiu-se enfim a empreender tal viagem, mesmo temendo a habitual crueldade do irmão, esperando que, pelo fato de serem parentes tão próximos, conseguiria demovê-lo [de suas suspeitas com relação ao marido].  Não obstante, após ter alcançado a Bitínia, foi presa dum inesperado ataque de febre na estação chamada Cenos Galicanos, vindo a falecer.  Após a sua morte, o César Galo, considerando que o suporte com o qual ele próprio poderia contar para sua segurança [junto a Constâncio] havia acabado, quedou-se, em ansiosa incerteza, sem saber como proceder, ou o que esperar.[248]

(Amiano Marcelino, “Histórias”, livro XIV, cap. 11, par. 6o)

            Logo depois, nesse mesmo ano, o César Galo, vítima das suspeitas imperiais, seria preso e executado por Constâncio II, por causa de seu governo excessivamente cruel na Síria.  Em 355 dC, o meio-irmão de Galo, Juliano, foi nomeado por Constâncio II como “César” (imperador auxiliar) para as Gálias.  Constâncio II o fez casar com Helena, sua (dele, Constâncio) outra irmã.

            Sabe-se, pelo próprio Amiano Marcelino, que o corpo de Constantina foi levado da Bitínia para Roma, e lá sepultado.  De fato, num outro trecho de suas “Histórias”, ao falar das providências de Juliano (então “César” nas Gálias), no que se referia ao traslado do corpo de sua esposa Helena, recém-falecida, para Roma (360 dC), o historiador assim se expressa:

Nessa ocasião [360 dC], igualmente, ele [Juliano] enviou os restos de sua finada esposa, Helena, a Roma, para serem sepultados na sua propriedade [ou de Helena, ou do próprio Juliano, mais provavelmente dela] na via Nomentana, onde também estava sepultada [a irmã de Helena] Constantina, esposa de Galo[249].

(Amiano Marcelino, “Histórias”, livro XXI, cap. 1o, par. 5o)

 

            Juntando-se tais testemunhos, tem-se que: a) Constantina, antes de 335 dC, fez seu pai, Constantino o Grande, construir uma basílica em honra a Santa Inês, de quem era devota, na via Nomentana, próxima à cripta da mártir, bem como um batistério no próprio local, tendo sido aí batizada pelo papa São Silvestre I (314-335 dC), juntamente com sua tia Constância, irmã de seu pai Constantino o Grande; b) ela (Constantina) deixou Roma c. 335 dC, a fim de se casar com seu primo Anibaliano, rei do Ponto e da Armênia; c) após o assassinato de Anibaliano (337 dC), na confusão que se seguiu à morte de Constantino o Grande, Constantina retornou a Roma, onde permaneceu até 350-351 dC, quando então, por vontade do irmão, o Imperador Constâncio II, casou-se com outro primo, Galo, César do Oriente, acompanhando-o a Antióquia da Síria; d) Constantina morreu em 354 dC, na Bitínia, numa viagem a Constantinopla para se encontrar com o irmão; e) seu corpo foi levada a Roma, e lá sepultado na via Nomentana; f) Amiano Marcelino não menciona explicitamente um túmulo, e dá a entender que o sepultamento teria sido efetuado numa propriedade de Constantina na via Nomentana; contudo, é perfeitamente possível que a “propriedade” a que alude o historiador fosse um terreno cemiterial, adjacente à (ou próximo da) basílica de Santa Inês, terreno esse de propriedade de Constantina, e onde ela, obviamente, havia construído um mausoléu; g) a irmã de Constantina, Helena, que se havia casado com Juliano, meio-irmão de Galo e César das Gálias (o futuro Imperador Juliano, o Apóstata), morreu em 360, sendo que o marido providenciou para que seu corpo fosse também levado a Roma, a fim de ser sepultado igualmente na via Nomentana, junto com a irmã; não se diz explicitamente que ambas tivessem sido sepultadas no mesmo túmulo, mas depreende-se isso da narrativa, e tal situação é aliás bem provável, apontando para a existência dum monumento fúnebre ligado às filhas de Constantino o Grande nas imediações da basílica de Santa Inês Extramuros e do túmulo da mártir.

            Podem ser adicionados aos testemunhos anteriores os seguintes fatos: a) em 1993, o especialista norte-americano David Stanley publicou os resultados de suas escavações entre Santa Constança e as ruínas da basílica constantiniana de Santa Inês, revelando que não havia conexão construtiva entre ambas as estruturas; contudo, havia conexão entre a basílica constantiniana e uma estrutura de “plano central” com três absides (uma estrutura chamada “de três conchas”, ou “triconco”), situada abaixo do nártex bi-absidado de Santa Constança, conforme ilustração a seguir[250]; b) estudos de datação foram efetuados em amostras de argamassa de Santa Constança, a partir de 1998[251]; os resultados, com 95,4% de certeza, situaram a feitura da argamassa entre os anos 290 e 430 dC, e, com 68,2% de certeza, entre os anos 330 e 410 dC; isso sugeriria, com mais probabilidade, uma data situada no 3o quartel do séc. IV dC (350-375 dC).

 

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            Combinando, assim, todas as evidências disponíveis, podem ser levantadas as seguintes hipóteses: a) ou o edifício atual de Santa Constança foi construído por Constantina, no período em que permaneceu em Roma após a morte de Anibaliano (337-350 dC) para ser seu mausoléu; ou b) o edifício foi construído um pouco depois (c. 355-360 dC) por Helena, a irmã de Constantina, para servir de túmulo para si e também para sua irmã – possivelmente, em substituição a um edifício anterior erguido por Constantina, menos ambicioso.

            Esse edifício anterior bem poderia ser o triconco que Stanley descobriu sob a atual Santa Constança.  Essa estrutura, menor e mais modesta, sim, pode ter sido originariamente o túmulo construído por Constantina, entre 337 e 350 dC, quando esteve em Roma, entre seus dois casamentos.  Com a sua morte, na Bitínia (354 dC), seu corpo foi levado a Roma, e enterrado nesse mausoléu.  A irmã de Constantina, porém, Helena, que se casaria com o César Juliano (futuro Imperador Juliano, o Apóstata), resolveu engrandecer o monumento, a fim de que também ela fosse lá enterrada.  Assim, o triconco original foi demolido, e (a atual) Santa Constança foi erguida – esses eventos explicariam a datação da argamassa.  As obras devem ter sido efetuadas entre c.355 e c. 360 dC (ano da morte de Helena), e podem mesmo ter se estendido até 363 dC, ou um pouco além.  De fato, Juliano tornou-se Imperador após a morte de Constâncio II (reinando 361-363 dC), e poderia tranquilamente ter financiado o final da construção, mesmo em “grande estilo” – como demonstram os belíssimos mosaicos sobreviventes no teto do deambulatório, os 12 pares de colunas de granito, o dispendioso revestimento de marchetaria de mármore que outrora revestia as paredes, o rico sarcófago de pórfiro na absidíola retangular oposta à entrada, habilmente lavrado e decorado.  Embora Juliano fosse pagão, Helena era cristã, e, por uma tradição profundamente enraizada na mentalidade romana, a última vontade de alguém, especialmente no que concerne aos procedimentos de seu funeral e sepultura, devia ser escrupulosamente respeitada.

            Como quer que seja, o edifício que hoje se chama “a igreja de Santa Constança” foi erguido (e decorado), quase certamente, no 3o quartel do séc. IV dC, estando lá sepultadas, provavelmente, duas das filhas de Constantino o Grande, Constantina e Helena, num sarcófago de pórfiro vermelho egípcio instalado na absidíola retangular oposta à entrada.  Ele lá ficou até 1467, quando foi transferido, como elemento decorativo, para a praça de São Marcos; foi devolvido ao seu lugar original em 1471, lá permanecendo até 1797, quando o papa Pio VI o fez levar para o Museu Vaticano, onde até hoje se encontra (no local há apenas uma cópia, em gesso).

            É quase certo que, pouco tempo após o seu uso como túmulo, o edifício passou a exercer as funções de batistério da basílica (constantiniana) de Santa Inês Extramuros[252].  Sabe-se com certeza que foi utilizado como tal no pontificado de Bonifácio I (418-422 dC)[253].  Quando a basílica constantiniana caiu em ruínas, sendo substituída pela (atual) basílica de Santa Inês (“Sant’Agnese fuori le mura”, a nova), sob o pontificado de Honório I (625-638 dC), o edifício passou, a pouco e pouco, a assumir uma identidade própria, como uma igreja de pleno direito.  Em 865 é documentada, pela 1a vez, a realização duma missa no local, que passa a ser denominado de “igreja de Santa Constança”.  Em 1256, foi oficialmente instalado um altar no meio do edifício, pelo papa Alexandre IV, em honra da “bem aventurada Constança, filha de Constantino” (beatae Constantiae filie Constantini).  A dedicatória de tal altar sobreviveu até 1605, quando foi retirada.  Assim, embora o prédio seja hoje uma igreja, e seja conhecido como “a igreja de Santa Constança”, deve ficar registrado que nenhuma filha de Constantino o Grande chamou-se Constança (Constância), e que não existe, tampouco, nenhuma Constança referida no Martirológio Romano.  O nome “Constança” é, quase certamente, uma corrupção de “Constantina”, referindo-se à filha de Constantino o Grande que fez o pai erguer a 1a basílica em honra a Santa Inês na via Nomentana, e que também ergueu lá o seu mausoléu, provavelmente no local da atual Santa Constança (o “triconco”), mausoléu esse que veio a ser substituído logo depois pela estrutura ora presente[254].

            Os leitores devem perdoar o autor deste trabalho por deter-se em tantos detalhes acerca do complexo de Santa Inês, na via Nomentana, e especialmente no edifício que hoje se denomina “igreja de Santa Constança”.  Contudo, a importância do testemunho artístico desse prédio, no que tange à fixação da imagem canônica de Jesus, é de tal ordem a exigir uma apresentação mais cuidadosa.  Quis-se mostrar, sem sombra de dúvida, que Santa Constança, e a decoração de mosaico subsistente, data, inequivocamente, no mais tardar, do 3o quartel do séc. IV dC, e mais, que era um edifício intimamente ligado à família imperial – portanto, seu testemunho artístico tem o peso dum programa “oficial”, capaz de influenciar o curso posterior dos acontecimentos.

            A partir de agora, enfim, pode-se fixar a atenção para as decorações em mosaico que subsistiram nas duas absidíolas semicirculares, ao centro.  As ilustrações a seguir mostram, respectivamente, os mosaicos presentes nas absidíolas leste e oeste.  Ambas as cenas estão repletas de simbolismos.

 

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            A 1a ilustração (mosaico da absidíola leste) é de interpretação relativamente fácil: Cristo, jovem e imberbe, com os cabelos dourados e a cabeça envolta num halo, vestindo túnica e manto também dourados, desce dos Céus até a uma montanha sagrada (o monte da Ascensão? O Calvário?), ainda em meio a nuvens, numa teofania próxima àquela que cercou o descenso de Deus no Sinai (Êxodo, cap. 19, versículos 16-25), ou a própria ascensão de Jesus (Lucas, cap. 24, versículos 50-51 e, principalmente, Atos, cap. 1o, versículo 9o).  Na mão direita tem um rolo aberto (o rolo da Nova Aliança) com a expressão “Dominus pacem dat” (“O Senhor dá a Paz”), seguida pelo cristograma; com a mão direita, faz um gesto alocutório e de autoridade, como o Mestre prestes a emitir um ensinamento.  À esquerda de Jesus, o Apóstolo Pedro recebe o rolo da Nova Aliança com a sua mão direita, enquanto na esquerda tem a “vara da virtude” (virgo virtutis); à direita de Jesus, o Apóstolo Paulo parece receber o ensinamento emanado do Mestre.  Atrás de cada Apóstolo há um edifício, sendo que de cada um emerge uma palmeira: tratam-se dos símbolos da Igreja dos hebreus (ecclesia ex circumcisione) e da Igreja dos gentios (ecclesia ex gentibus), respectivamente, para Pedro e para Paulo – uma lembrança do caráter universal da mensagem cristã.  Abaixo de Cristo e dos Apóstolos, quatro cordeiros (dois de cada lado), simbolizando as almas dos santos, de origem judaica ou gentia, dirigem-se à fonte de Água Viva que brota dos pés de Jesus.

            Tem-se, nessa cena, simultaneamente, duas figuras da arte cristã que depois seriam tratadas duma forma um tanto mais explícita, e separadamente: a traditio legis (“entrega da Lei”) junto com a largitio pacis (“difusão da paz”).  A “lei”, a Nova Aliança, é entregue a Pedro, a “rocha”, cabeça da Igreja (cf. Mateus, cap 16, versículos 13-19); essa lei, o Evangelho, ou seja, a doutrina cristã (subentendendo-se a verdadeira doutrina da Verdadeira Igreja), por sua vez, é a garantia da Paz Divina – a Paz que, agora que o Império era cristão, estender-se-ia, mercê dos Imperadores, instrumentos de Deus, a todo o mundo civilizado.  Essa a mensagem, a nova mensagem oficial, que a cena queria mostrar.  Como antes os Imperadores, sumos pontífices da religião estatal, eram a garantia da “paz dos deuses” (pax deorum), sinônimo da “paz romana” (pax romana) a todo o Império, agora os Imperadores, vigários de Cristo na Terra, eram os fiadores da “paz de Deus” (pax Dei), por intermédio da Verdadeira Igreja, alicerçada nos ensinamentos apostólicos (Pedro e Paulo).

            Ideologia imperial à parte, note-se que o Cristo é representado na sua iconografia tradicional do tempo das catacumbas, jovem e imberbe; e seus cabelos são dourados.  Isso não se deve a qualquer tipo de racismo – os germanos louros, afinal, eram considerados “bárbaros” pelos romanos, e desprezados.  O dourado dos cabelos liga-se não a uma característica racial, mas ao próprio ouro, que simbolizava (pelas características do metal) a eternidade e a incorruptibilidade[255].

            Isso tudo quanto à imagem na absidíola leste; a 2a ilustração, referente à absidíola oeste (ocidental) é de interpretação mais delicada.  No centro, uma figura adulta masculina, de cabelos e barba longos, com a cabeça envolta num halo, vestindo uma túnica púrpura, senta-se num Orbe (o globo simbolizando o Universo), segura com a mão esquerda um rolo fechado, entregando, com a direita, algo (um rolo menor? Chaves?) a uma figura masculina de certa idade (cabelos brancos), mas sem barba e de cabelos curtos, que recebe o dom com as mãos veladas.  Essa cena poderia ser interpretada, à 1a vista, como uma ilustração da traditio clavium (“entrega das chaves”) por Cristo a Pedro (cf. Mateus, cap. 16, versículo 19), mas essa interpretação tem, em si, uma série de problemas, e é sumamente improvável, devendo ser desconsiderada.

            De fato, se Cristo já havia sido representado (inequivocamente) na absidíola oriental como o jovem imberbe, ao lado de Pedro e de Paulo (e entregando a Pedro os rolos da Nova Aliança), por que representar novamente a cena, com uma nova iconografia para Cristo, e sem a presença de Paulo? Usualmente, Pedro e Paulo eram representados juntos na primitiva arte cristã imperial – o chefe do colégio apostólico juntamente com o grande apóstolo dos povos.  Eles eram também representados juntos porque a Igreja de Roma considerava-se fundada por ambos – já que ambos haviam sido martirizados em Roma, onde encontravam-se os seus túmulos (“troféus”), agora respectivamente sob as basílicas constantinianas de São Pedro do Vaticano e de São Paulo Extramuros.  Por ter sido “fundada” (i.e., por receber os ensinamentos) dos dois maiores Apóstolos, que nela morreram, testemunhando a sua fé, a Igreja de Roma era considerada “a Apostólica” por excelência, e o seu bispo era honrado com o título de “Apostólico”.  Deixando, quanto a isso, a palavra ao historiador eclesiástico Eusébio, bispo da Cesaréia Marítima:

Então esse homem [Nero], o primeiro a exibir-se explicitamente como um adversário de Deus, assassinou os Apóstolos.  Pois está registrado que em seu reinado Paulo foi decapitado em Roma, e Pedro foi crucificado (Paulos dê oun ep’autês Rhômês tên kephalên apotmêthênai, kai Petros hôsaytôs anaskolopisthênai), o que é confirmado pela existência dos cemitérios que ainda são chamados pelos nomes de Pedro e de Paulo; e também há o testemunho do presbítero romano Gaio, que viveu na época em que Zefirino era bispo de Roma [199-217/18 dC], que, em seu “Diálogo” contra Proclo, o chefe da seita dos frígios [i.e., dos Montanistas], diz o seguinte acerca dos locais onde os restos mortais dos Apóstolos foram reverentemente sepultados: “Eu vos posso mostrar os troféus [ou: monumentos, ou túmulos] dos vitoriosos Apóstolos; se fordes à colina do Vaticano, ou até à estrada para Óstia, podereis ver os troféus daqueles que fundaram esta Igreja” (“Egô de ta tropaia tôn Apostolôn echô deiksai.  Ean gar thelêsêis apelthein epi ton Batikanon hê epi tên hodon tên Ôstian, eurêseis ta tropaia tôn tautên hidrysamenôn tên Ekklêsian”).

(Eusébio de Cesaréia, “História Eclesiástica”, livro II, cap. 25)

 

Após o martírio de Pedro e de Paulo, o primeiro a exercer o ofício de bispo de Roma foi Lino.  Ele foi mencionado por Paulo, quando este escreveu a Timóteo a partir de Roma, na saudação no final da epístola[256] (Tês de Rhômaiôn Ekklêsias meta tên Paulou kai Petrou martyrian prôtos klêroutai tên episkopên Linos.  Mnêmoneuei toutou Timotheôi graphôn apo Rhômês ho Paulos kata tên epi telei tês epistoles prosrhêsin).

(Eusébio de Cesaréia, “História Eclesiástica” livro III, cap. 2o)

 

Portanto, tudo indica que a cena representada na absidíola oeste não se referia a Cristo e a Pedro; de fato, e surpreendentemente, ela se referia a Deus Pai entregando a Lei (a “Antiga Aliança”) a Moisés, e isso pode ser indiretamente confirmado pelas dez palmeiras que enfeitam a cena – um símbolo do Decálogo, dos Dez Mandamentos.  Assim sendo, as duas cenas nas duas absidíolas complementam-se perfeitamente – duas “entregas das leis”, traditiones legum, uma aludindo à Antiga Aliança (Deus Pai entregando a Lei a Moisés), outra referindo-se à Nova Aliança (Jesus entregando a Nova Lei, e a Paz Divina, aos dois grandes Apóstolos, Pedro e Paulo).

Portanto, o homem adulto, barbado, de cabelos compridos, na absidíola oeste, não é, como pareceria à primeira vista, Jesus – mas sim Deus Pai.  Essa constatação é, até certo ponto, espantosa; qualquer pessoa que contemplasse tal cena julgaria ver aí representado Cristo.  No entanto, cada uma das pessoas da Trindade está representada em características que Lhes eram consideradas inequívocas: Cristo com a eternidade (jovem imberbe, cabelos e túnica dourados); Deus Pai com a autoridade, ligada à idade adulta (cabelos e barba longos; túnica púrpura).

Assim sendo, a primeira (i.e., a mais antiga) representação conhecida da arte cristã que se assemelha à “imagem canônica” posteriormente associada a Cristo referia-se, especificamente, a Deus Pai, e ao Seu atributo próprio, a Autoridade[257] – não ao Filho.



[232] Desde meados do séc. III dC os Imperadores romanos normalmente não residiam mais na cidade de Roma, fixando suas “capitais” (entenda-se, os locais onde moravam e onde acantonavam suas tropas de elite e seus serviços de corte) em cidades estrategicamente localizadas, próximas às fronteiras, que eram cada vez mais ameaçadas pelos bárbaros.  Essa tendência consolidou-se a partir de Diocleciano (governou 284-305 dC) e de seus sucessores.  No Ocidente, as grandes sedes imperiais eram Tréveros (a cidade que os franceses conhecem como Trèves e os alemães como Trier), agora na Alemanha, próxima à fronteira renana; Mediolano (a atual Milão), no norte da Itália, bem no centro da planície do rio Pado (atual Pó), no que então se chamava a Gália Cisalpina e hoje se chama Lombardia; e Sírmio (a atual Sremsa Mitrovitza), nos Bálcãs, para guardar a fronteira danubiana; no Oriente, eram Nicomédia, na Bitínia, Ásia Menor (atual Izmit, na Turquia), que permitia cuidar tanto da fronteira baixo-danubiana quanto de parte da fronteira oriental; e Antióquia do Orontes, na Síria (a atual Antáquia), para fazer frente aos persas.  Constantino refundou a antiga cidade de Bizâncio, com o nome de Constantinopla (330 dC), e ela suplantou a Nicomédia.  No curso da pressão cada vez maior a que os germanos submeteram as fronteiras do Reno e do Danúbio, a partir de fins do séc. IV dC, e diante da decadência cada vez mais pronunciada do poderio militar romano, algumas dessas residências foram consideradas, elas próprias, por demais “expostas”, sendo suas funções transferidas para locais mais “seguros”: Tréveros cedeu lugar a Arelate, no sul da Gália (atual Arles, no sul da França); Mediolano foi substituída por Ravena, ainda no norte da Itália, uma cidade que possuía um porto marítimo (chamado Classe, a sede da frota do Adriático), e protegida além disso por um cinturão de pântanos; Sírmio cedeu lugar ao porto da Tessalônica (atual Salonica).  Todas essas “capitais” eram, bem entendido, residências temporárias, ocupadas intermitentemente, para fins estratégicos – Roma era ainda considerada “a capital”, “a cabeça do Mundo” (caput Mundi), embora, política e estrategicamente, fosse cada vez menos importante.  Duas dessas cidades, contudo, passaram, paulatinamente, a exercer as funções de capitais fixas: no Oriente, Constantinopla, desde, o mais tardar, os reinados de Arcádio (395-408) e de Teodósio II (408-450); no Ocidente, Ravena, desde 402 dC, quando substituiu Milão, e onde residiram quase ininterruptamente Honório (395-423) e Valentiniano III (425-455).  Ravena, assim, foi a sede “de fato” do Império Ocidental até à sua “queda” (476); também foi a capital tanto de Odoacro (476-496) quanto de Teodorico (496-526), os chefes bárbaros que, sucessivamente, governaram a Itália após o fim do Império Ocidental; e também foi a capital da Itália bizantina, até cair (750 dC) nas mãos dos lombardos.

[233] Muitas obras de arte antigas e medievais presentes nas igrejas romanas foram simplesmente destruídas a partir do séc. XV, e substituídas por exemplares de arte “renascentista”, “maneirista” e “barroca”, em estilo considerado mais “sofisticado” e “contemporâneo”.  A perda foi particularmente terrível na basílica de São Pedro do Vaticano – o antigo edifício, de 5 naves, erguido por Constantino o Grande e que resistiu ao longo de toda a Idade Média, foi totalmente demolido e substituído pela atual basílica, entre 1506 e 1615.

[234] Obviamente, nas regiões situadas fora do Império (principalmente a Alemanha, e depois o que é hoje a Escandinávia, a Polônia, a Hungria, a República Tcheca e a Eslováquia), não havia edifícios da época romana, e a tradição que se impôs foi inicialmente a “românica” e, depois, a gótica.  Na Inglaterra, totalmente submergida, entre os sécs. V e VII dC, pelas invasões dos germanos anglos, saxões e jutos, todas as cidades e todos os edifícios romanos foram destruídos, e a tradição artística cristã do país começou virtualmente do nada, sem nenhuma influência romana antiga perceptível.

[235] Das inúmeras igrejas romanas, as mais conhecidas eram, antes de tudo, as sete “basílicas constantinianas”: a) duas dentro do recinto dos muros de Aureliano, São João de Latrão (no antigo palácio Lateranense, originariamente a residência da família senatorial dos Sêxtios Lateranos Africanos, depois propriedade imperial, e doada ao papado por Constantino, tornando-se a igreja-sede do Bispo de Roma até aos dias de hoje) e Santa Cruz de Jerusalém (no antigo palácio Sessoriano, de propriedade de Santa Helena, mãe de Constantino, que a doou à igreja romana; nela havia, ao que se diz, um fragmento da Verdadeira Cruz, que Helena havia trazido de Jerusalém); b) cinco fora do recinto murado de Aureliano, todas ligadas a túmulos de mártires: São Pedro do Vaticano (nos contrafortes da esplanada do Vaticano, ao largo da via Cornélia, bem próxima aos muros de Aureliano), São Paulo Extramuros (na via Ostiense), São Lourenço Extramuros (na via Tiburtina), São Sebastião Extramuros (na via Ápia) e Santa Inês Extramuros (na via Nomentana); eram, respectivamente, as basílicas comemorativas de São Pedro, de São Paulo, de São Lourenço (diácono martirizado na perseguição de Valeriano, em 258 dC), de São Sebastião e de Santa Inês (martirizados na perseguição de Diocleciano).  Além dessas, também citam-se, intramuros, no Aventino: Santa Maria Maior (construída sob o papa Libério, 352-66), Santa Praxedes (séc. V dC, reconstruída no séc. IX dC) e Santa Sabina (construída entre 422-432 dC).

[236] Vejam-se as estátuas e bustos gregos da época clássica, e mesmo as representações nos vasos áticos.  Os homens feitos têm barbas; apenas os jovens e adolescentes, os “efebos”, têm o rosto liso.

[237] Muitos dos “imperadores-soldados” do período 235-284 dC a usaram.  Constantino o Grande, bem como seus filhos, não usaram barba (305-361 dC).  Juliano, o Apóstata (361-363) a usou, e longa – afinal, ele era um “filósofo”, e pagão.  Mas os seus sucessores cristãos, começando com Joviano (363-364), Valentiniano I (364-375, no Ocidente) e Valente (364-378, no Oriente), bem como todos os demais, até à época de Justiniano pelo menos (527-565), não usaram barba.  O 1o imperador a usar barba foi Heráclio (reinou 610-641), e isso mostra já um elevado grau de “helenização” e de “orientalização” do Império Romano (agora, Império Bizantino).  Os eunucos da corte imperial não usavam barba, por razões hormonais principalmente; a partir do séc. VII dC, com o retorno virtualmente total da barba para os adultos do sexo masculino, mesmo no Ocidente, mesmo em Roma, a expressão “homem sem barba” passou a ser sinônimo de “eunuco”.

[238] A origem da referida imagem é o MSN-Encarta, e ela é aqui reproduzida dentro da expectativa do “fair use”, tendo em vista o uso não-comercial deste trabalho.

[239] Atribuem-se-lhe nessa cidade três edificações: a (posterior) igreja dos Santos Apóstolos (Haghioi Apostoloi), que se destinaria a abrigar o seu túmulo, e que depois seria o mausoléu da maioria dos imperadores bizantinos até à época de Basílio II, o Massacrador de Búlgaros (reinou 976-1025) e as duas basílicas, dedicadas à Divina Paz (Haghia Eirênê, conhecida como “Santa Irene”) e à Divina Sabedoria (Haghia Sophia, conhecida como “Santa Sofia”).  Há, contudo, dúvidas a respeito da atribuição dessas duas basílicas; é possível que tenham sido iniciadas por Constantino, mas é quase certo que foram concluídas, e consagradas, por seu filho e sucessor no Oriente, Constâncio II (337-361).

[240] A união dos dois “planos”, a partir do encaixe de cúpulas numa estrutura basilical, mediante a solução técnica conhecida como “das trompas”, geraria a igreja bizantina típica – a basílica cupulada.  Isso ocorreu no 1o quartel do séc. VI dC, em Constantinopla, sob Justiniano, com a reconstrução das igrejas dos Santos Apóstolos, de Santa Irene e (principalmente) de Santa Sofia.  O novo esquema foi utilizado, no Ocidente, apenas a partir da Renascença (exceto nas áreas sob influência bizantina direta – São Marcos de Veneza, p.ex., ou Sicília).  A nova basílica de São Pedro, no Vaticano, é uma basílica cupulada.  A catedral de São Paulo, em Londres, a de Santo Isaac, em São Petersburgo, ou a igreja de Nossa Senhora da Candelária, no Rio de Janeiro, são outros exemplos de basílicas cupuladas.

[241] São Marcos de Veneza inspirou-se justamente nos Santos Apóstolos de Constantinopla.  A igreja constantinopolitana não mais existe, tendo sido totalmente demolida pelos turcos.  No seu local, atualmente, há uma mesquita.

[242] Segundo o Líber Pontificalis LIII, 10 (“Vida de Símaco”), sob este pontífice hic absidem beatae Agnae quae in ruinam inminebat et omnem basilicam renovavit.

[243] Liber Pontificalis (recensão de Anastásio o Bibliotecário), LXXII (“Vida de Honório I”): Eodem tempore fecit ecclesiam beatae Agnetis martyris milliario ab urbe Roma tertio, via Nomentana, a solo, ubi requiescit, quam undique ornavit et exquisivit, ubi posuit multa dona.

[244] A ilustração, bem como a seguinte, origina-se do portal oficial da própria igreja, www.santagnese.org, sendo aqui reproduzida dentro da expectativa do “fair use”, tendo em vista o uso não-comercial deste trabalho.

[245] Liber Pontificalis, XXXIV, 23 (“Vida de São Silvestre”): Eodem tempore fecit [Constantinus] basilicam sanctae martyris Agnae ex rogatus filiae suae et baptisterium in eodem loco ubi et baptizata est soror eius Constantia cum filia Augusti a Silvestrio episcopo, ubi et constituit domum hoc.

[246] Filho de Dalmácio, meio-irmão de Constantino.  Constantino o Grande era filho de Constâncio I com Santa Helena; tanto Dalmácio quanto Júlio Constâncio e Constância eram filhos de Constâncio I com sua 2a esposa, Teodora.

[247] Galo era filho do 1o casamento de Júlio Constâncio, meio-irmão de Constantino o Grande, com Gala.  Do 2o casamento de Júlio Constâncio, com Basilina, nasceria Juliano, o futuro Imperador Juliano, o Apóstata.  Assim, Constantina era prima de Galo e de Juliano, e Galo e Juliano eram meio-irmãos.

[248] Restabat ut Caesar post haec properaret accitus, et abstergendae causa suspicionis, sororem suam [eius uxorem] Constantius ad se tandem desideratam venire, multis fictisque blanditiis hortabatur.  Quea licet ambigeret, metuens saepe cruentum, spe tamen quod eum lenire poterit, ut germanum, profecta, cum Bithyniam introisset, in statione quae Caenos Gallicanos appellatur, absumpta est vi febrium repentina.  Cuius post obitum maritus contemplans cecidisse fiduciam qua se fultum existimabat, anxia cogitatione quid moliretur haerebat.

[249] (…) inter quae Helenae coniugis defunctae suprema [Iulianus] miserat Romam, in suburbano viae Nomentanae condenda, ubi uxor quoque Galli, quondam [soror eius] sepulta est Constantina.

[250] A ilustração é da publicação original de Stanley, conforme citada na publicação “Dolphins and Mortar Dating – Santa Costanza Reconsidered” (ver Bibliografia), e foi aqui reproduzida dentro da expectativa do “fair use”, tendo em vista o uso não-comercial deste trabalho.

[251] O princípio por trás da metodologia é o seguinte: o dióxido de carbono radioativo da atmosfera é absorvido pela argamassa no momento em que ela endurece.  Após tal endurecimento, a argamassa comporta-se, quanto a isso, como um espécime orgânico ordinário, ou seja, o isótopo passa a exibir uma meia-vida de 5.730 anos, podendo ser datado a partir duma análise normal de carbono-14.  Tal análise é efetuada por meio dum espectrômetro (AMS – “Accelerator Mass Spectrometre”), que mede os isótopos de carbono-14 e estabelece a datação; quanto menos isótopos, mais antiga é a amostra de argamassa.  Essa metodologia AMS-C14 foi utilizada desde 1994 para a datação de algumas igrejas medievais nas ilhas Aland.  Cf. “Dolphins and Mortar Dating – Santa Costanza Reconsidered” (ver Bibliografia).

[252] Que Santa Constança foi originariamente um mausoléu (e não um batistério) não há dúvidas.  Com efeito, sua estrutura é idêntica à de outros mausoléus da época, especialmente à do mausoléu de Santa Helena, a mãe de Constantino o Grande, que ela mandou erguer próximo às catacumbas dos Dois Loureiros (ou dos Santos Pedro e Marcelino), na via Labicana; o edifício, bastante arruinado, ainda subsiste, sendo conhecido como “Tor Pignattara”.

[253] Liber Pontificalis, XLIV, 3 (“Vida de Bonifácio I”): … Bonifatius vero, sicut consuetudo erat, celebravit baptismum Paschae in basilica Beatae Martyris Agnae.

[254] Especificamente quanto ao “batistério” que Constantina teria construído juntamente como a basílica antiga de Santa Inês, não foram encontrados vestígios dele até agora.  Quanto a isso, há duas hipóteses: a) ela efetivamente construiu um batistério, talvez dentro da basílica, ou então bem próximo a ela, que contudo não deixou traços discerníveis até à atualidade; ou b) o batistério em questão, mencionado no Liber Pontificalis, era a atual estrutura da igreja de Santa Constança, já no seu uso para as cerimônias de batismo, não mais percebida meramente como um túmulo.  Todo o complexo de Santa Inês era ligado à memória de Constantina – afinal, ela havia sido responsável pela construção da basílica original dedicada a Santa Inês, ela era a devota da mártir, e ela havia sido lá sepultada.  Sendo Helena a esposa do “apóstata” Juliano, o “anticristo”, o “traidor”, “justamente punido por Deus”, e responsável, no máximo, por um engrandecimento do mausoléu, era perfeitamente natural que o nome de Constantina prevalecesse na memória oficial.  Assim, todas as construções do complexo, inclusive o mausoléu, foram ligadas a Constantina, cujo nome foi confundido com “Constância” (Constantia), “Constança”, pelas gerações posteriores.  Sendo ela a filha de Constantino o Grande, o 1o imperador cristão, devota de Santa Inês, agraciada pela mártir com uma cura milagrosa, e fundadora do santuário na via Nomentana, era natural que a estrutura sobrevivente (após a ruína da basílica constantiniana, substituída pela nova basílica de Santa Inês, no pontificado de Honório I, erguida justamente sobre a cripta da mártir) ficasse conhecida como “Santa Constança”, embora, a rigor, não haja nenhuma santa com esse nome na época em questão.

[255] Imune à oxidação, o ouro não forma usualmente ligas na Natureza.  Pode, contudo, ocorrer numa liga natural (40% a 55% de ouro) com a prata, denominada “eletro”, na qual também podem estar presentes traços de outros metais, como o cobre.  Tal liga era abundante na Lídia, Ásia Menor, e com ela foram cunhadas as primeiras moedas (séc. VII aC), até que o rei Creso (c. 560-547 aC) estabelecesse a cunhagem bimetálica (ouro e prata).  O ouro somente se dissolve numa mistura dos ácidos nítrico (uma parte) e clorídrico (três partes), denominada “água régia”.  A água régia também dissolve a platina.

[256] Cf. 2a Epístola de São Paulo a Timóteo, cap. 4o, versículo 21.

[257] Além da datação específica da edificação de Santa Constança, a antiguidade dos mosaicos das absidíolas é atestada por uma série de características arcaicas das figuras, que seriam abandonadas na arte cristã posterior – como a representação de Cristo como jovem e imberbe; ou a de Pedro, Paulo e Moisés de perfil.  De fato, as personagens seriam, posteriormente, sempre representadas com os dois olhos voltados ao espectador (de frente ou de “três quartos”); apenas as personagens maléficas (Judas ou Satã) continuaram a ser representadas de perfil.

Uma resposta a “ESTUDO DA APARÊNCIA FÍSICA DE JESUS – PARTE 2”

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