LÊNTULO, O SUFETA – RESPOSTA A NAGIPE ASSUNÇÃO (Apêndice 1 – Figuras de Cristo, parte 1 de 3)

A pergunta que não quer calar (e que os adeptos da historicidade de “Públio Lêntulo” têm de explicar, e explicar detalhada e convincentemente) é – por que, tendo em mãos (ou conhecendo) uma “descrição” do Salvador, os escritores cristãos não a utilizaram? Por que nem sequer citaram, em parte alguma, o fato de que um “oficial” romano, em “missão” na Judéia, um tal de Públio Lêntulo, nobre de mais alta estirpe aliás, havia deixado um relatório, ou coisa que o valha, acerca de Jesus? 

Apêndice I – A Face de Cristo 

Idéias Literárias: 

Como não havia nenhuma base neotestamentária para se conceber a aparência física de Jesus, os antigos escritores cristãos que abordaram esse tema utilizavam-se de passagens veterotestamentárias consideradas messiânicas. 

Uma dessas passagens, e a mais antiga a ser utilizada, era retirada da profecia de Isaías, dum trecho do quarto “Cântico do Servo do Senhor” (Isaías, cap. 53, vers. 2º e 3º): “Ele cresceu como broto na presença do Senhor, como raiz em terra seca.  Ele não tinha beleza nem esplendor para atrair o nosso olhar, nem formosura para que pudéssemos apreciá-Lo.  Desprezado e rejeitado pelos homens, um homem familiarizado com o sofrimento [ou: com a enfermidade] e experimentado na dor; como um indivíduo de quem todos escondem o rosto, Ele era desprezado, e nem tomávamos conhecimento d’Ele”.  Essa referência tendia a apoiar um aspecto geral de fealdade para o Messias, ou seja, para Cristo, e foi, repete-se, a mais antiga idéia esposada pelos escritores cristãos sobre esse tema.  Dentre seus adeptos, podem ser citados: 

·        São Justino o Mártir (decapitado em Roma c. 165 dC, na época de Marco Aurélio, sob o prefeito urbano Júnio Rústico);

·        Santo Ireneu da Ásia Menor, bispo de Lugduno (Lião), nas Gálias (c.126/36 – c.200 dC);

·        Clemente de Alexandria (que morreu entre 203 e 215 dC, na Ásia Menor, para onde fugira após as perseguições de Septímio Severo em Alexandria);

·        Tertuliano de Cartago (c.160 – c.220 dC);

·        Orígenes de Alexandria (c.185 – 254 dC), ao menos em parte;

·        Evágrio do Ponto (346-399 dC), já na época pós-nicena; e

·        São Cirilo, bispo de Jerusalém (que morreu em 386 dC), numa forma já suavizada. 

Mas outra passagem do Antigo Testamento, retirada do Salmo 45 (44 na numeração dos Setenta e da Vulgata), considerado um salmo messiânico, tenderia a apoiar um aspecto geral belo do Messias, ou seja, de Cristo: “Tu és o mais belo dentre os filhos dos homens, e a graça escorre de Teus lábios, porque Deus Te abençoa para sempre” (Salmo 44/45, vers. 2º).  Inicialmente não favorecida, essa visão começou a ganhar força a partir do final das perseguições, e ao longo do séc. IV dC, quando o Cristianismo passou de religião perseguida, sucessivamente, a religião oficialmente tolerada, depois a religião preferida, e enfim a religião oficial do Império – embora já Orígenes tivesse considerado ao menos possível um aspecto físico belo para o Salvador. 

De fato, Cristo, humanamente falando, era considerado “da descendência de Davi”, porque, segundo as Sagradas Escrituras, o Messias viria da descendência de Davi – isso, inclusive, é explicitado nas duas genealogias de Jesus constantes nos Evangelhos de Mateus e de Lucas.  Ora, além da passagem do messiânico salmo 45/44, versículo 2o, as Escrituras consideravam Davi como de bela aparência (cf. 1º livro de Samuel, cap. 16, vers. 11-13); portanto, nada mais “natural” do que Cristo ter herdado, fisicamente, essa característica.  Quanto ao trecho de Isaías, cap. 53, versículos 2o e 3o, passou a ser interpretado cada vez mais de forma alegórica, como se referindo especificamente aos suplícios de Jesus na Cruz e à Sua humilhação na ocasião, que Lhe teriam imprimido tal aspecto.  Dentre os escritores cristãos que, até ao séc. V dC, esposaram a visão dum aspecto físico belo para Cristo podem ser citados: 

·        O próprio Orígenes de Alexandria (c.185 – 254 dC), que, na sua refutação a Celso, havia considerado ao menos possível um aspecto físico belo para o Salvador;

·        Santo Efrém (ou Efraim) o Sírio (c.308 – c.373 dC);

·        Santo Ambrósio, bispo de Milão (c.340 – 397 dC);

·        São João Crisóstomo (347 – 407 dC), natural de Antióquia da Síria e bispo de Constantinopla;

·        São Jerônimo (c.346 – 420 dC);

·        Teodoreto, bispo de Cirro, no Eufrates (c.393 – c.457 dC). 

A visão da “beleza” terminou por prevalecer. 

Nisso tudo, a pergunta que não quer calar (e que os adeptos da historicidade de “Públio Lêntulo” têm de explicar, e explicar detalhada e convincentemente) é – por que, tendo em mãos (ou conhecendo) uma “descrição” do Salvador, os escritores cristãos não a utilizaram? Por que nem sequer citaram, em parte alguma, o fato de que um “oficial” romano, em “missão” na Judéia, um tal de Públio Lêntulo, nobre de mais alta estirpe aliás, havia deixado um relatório, ou coisa que o valha, acerca de Jesus? 

Por que São Justino o Mártir pôde citar duas vezes em sua “Primeira Apologia” (parágrafos 35 e 48) uma pretensa “sentença de Jesus”, mas não um “relatório de Lêntulo”? E por que Tertuliano de Cartago pôde citar no seu “Apologético”, também duas vezes (cap. 5º, par. 2º, e cap. 21, par. 24), uma pretensa carta de Pilatos ao Imperador, mas não citou, em lugar algum, uma “carta de Lêntulo”? E note-se: ambos (São Justino e Tertuliano) eram adeptos dum Jesus de aspecto físico feio, que não condiz com as informações constantes na “epistula Lentuli”… Tocando, aliás, nesse ponto: por que a mais antiga idéia literária acerca do aspecto físico de Jesus, a da feiúra (fealdade), vai frontalmente contra o que diz a “carta de Lêntulo”? 

Enfim: onde estava a carta de Lêntulo nessa época, já que ninguém cita tal documento, e muito menos o seu autor? Se já era conhecida, ao menos em linhas gerais, deveria ter sido citada pelos escritores cristãos.  De nada adianta a desculpa esfarrapada de que partes da carta foram forjadas posteriormente, mas que o “núcleo” do documento, em si, é autêntico.  Se havia um “núcleo” autêntico, ligado a um “relatório” dum “Lêntulo”, onde estava tal “núcleo”, já que ninguém o menciona, sequer de passagem? 

Representações nas Catacumbas: 

Como visto, literariamente, a primeira idéia acerca do aspecto físico de Cristo supunha-O fisicamente não como belo, mas sim como feio, e, mesmo, desprezível, em alusão à profecia de Isaías.  Não obstante, a arte das Catacumbas (séculos III-IV dC), de resto meramente simbólica, representa Jesus sempre como belo, jovem e imberbe, usualmente dentro de três tipologias: o Bom Pastor, o Taumaturgo e o Mestre. 

Note-se: nem literariamente, e nem nas representações artísticas das Catacumbas, Jesus era representado tal como descrito na carta de “Lêntulo”… Por quê? 

Inicialmente, três exemplos do Cristo como Bom Pastor (as ilustrações constantes neste Apêndice foram retiradas livremente da Internet, geralmente da Wikipedia, e aqui são apresentadas sob a perspectiva do “fair use”).  Note-se que o pastor é sempre jovem (simbolizando a divindade e a vitória sobre a morte), e sempre carrega a ovelha perdida (cuidado pessoal de Jesus por cada membro do “rebanho”).  Essa era a mensagem que se queria transmitir – que Cristo cuidaria de Seu rebanho, não deixando que nenhum de Seus fiéis se perdesse, mesmo no meio dos mais atrozes sofrimentos.

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Catacumbas de Priscila, Roma, meados do séc. III dC: afresco do Bom Pastor, jovem e imberbe, carregando a “ovelha perdida”, numa idílica paisagem rural, com ovelhas, pássaros e oliveiras. 

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Catacumbas de Calisto, Roma, afresco de meados do séc. III dC – mais uma representação de Cristo como o Bom Pastor, jovem e imberbe.

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Famosa estátua do Bom Pastor, também com a “ovelha perdida” nos ombros, encontrada originariamente nas catacumbas de Domitila, Roma, datada, pelo estilo, também de meados do séc. III dC, atualmente no Museu Pio Cristão do Vaticano.  Mais uma vez, a figura se apresenta como a dum jovem imberbe. 

A seguir, um exemplo de Cristo como o Taumaturgo (i.e., o “milagreiro”), um “typos” que enfatiza a Sua Divindade e Seu poder sobre a Natureza. 

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A cura da hemorroíssa (a mulher com fluxo de sangue, cf. Mateus 9:20-22, Marcos 5:25-34 e Lucas 8:43-48), fins do séc. III dC ou inícios do IV dC, afresco nas catacumbas dos Santos Pedro e Marcelino, Roma. 

Enfim, Cristo também podia ser caracterizado como o Mestre; e havia um “typos” na arte greco-romana para a representação dum mestre, ou professor, ou filósofo – sentado em sua cátedra, com os rolos numa mão, a outra erguida, num gesto de autoridade, dirigindo-se a seus discípulos, que o rodeavam; e assim Jesus aparecia como Mestre.

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 Cristo o Mestre, fins do séc. III dC ou inícios do IV dC, catacumbas de Domitila, Roma. 

Gestação da Imagem Canônica: 

É a partir do último quartel do séc. IV dC que se nota, pela primeira vez, o surgimento do “typos” canônico atualmente considerado usual para a figura de Cristo, como o adulto barbado e de cabelos bem longos.  Os três mais antigos testemunhos, todos de Roma ou arredores, encontram-se a seguir.

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 O “Cristo de Óstia”, marchetaria de mármore, último quartel do séc. IV dC; já se nota o nimbo (auréola), e o gesto de bênção na mão direita.  Cabelos e barba longos, sendo a barba bifurcada.

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Cristo Triunfante, em Majestade e entronizado, calota (semicúpula) da abside da igreja de Santa Pudenciana, Roma, fins do séc. IV dC; Cristo, com nimbo, cabelos longos e barba, abençoa com a mão direita, tendo um códice aberto na esquerda, em que se lê DOMINVS CONSERVATOR ECCLESIAE PVDENTIANAE, “O Senhor, mantenedor da igreja de Pudenciana”.

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Afresco de Cristo, abóboda do cubiculum Leonis, catacumbas de Comodila, Roma, finais do séc. IV dC ou inícios do séc. V dC.  Notar o nimbo, mais uma vez presente, e, ao lado da imagem, as letras gregas alfa e ômega, primeira e última letras do alfabeto, simbolizando o princípio e o fim e, portanto, a plenitude de poder de Cristo.  Jesus com cabelos longos (e ondulados) e barba longa (mas não bifurcada). 

Assim, foi somente a partir dos finais do séc. IV dC que se fixou uma nova maneira de se representar Jesus – não mais o jovem imberbe, de cabelos curtos (ou não muito longos), mas o adulto barbado e com longos cabelos – justamente a descrição constante, ao menos em linhas gerais, na epistula Lentuli. 

Mas, por que apenas nessa época? Se a carta, ou relatório, ou o que seja, de Lêntulo fosse já conhecida, por que esperar essa época para utilizá-la artisticamente? Não se podem alegar motivos de “segurança”, pois a figura “canônica” (adulto barbado e de longos cabelos) poderia ter sido de uso na arte anterior das Catacumbas sem qualquer problema, já que, quanto a isso, seria inteiramente assimilável à figura de Zeus, ou de Serápis (como a figura do jovem imberbe podia ser assimilada à de Apolo, ou de Orfeu).  A imagem do adulto barbado e de longos cabelos não foi utilizada antes simplesmente porque ela não existia antes – foi criada nessa época. 

Convivência das Tipologias I – A Persistência da Tradição Anterior: 

O período compreendido entre os fins do séc. IV dC e os meados do séc. VII dC é de convivência entre as duas tipologias para a representação de Jesus, a antiga (jovem imberbe de cabelos curtos ou não muito longos) e a nova (adulto barbado de cabelos longos), com a progressiva preferência pela nova tipologia, principalmente a partir da 2ª metade do séc. VI dC.  Note-se que em nenhuma ocasião nesse período se faz menção à carta de Lêntulo para se justificar a preferência pela “nova” tipologia.  A seguir, exemplos da persistência da antiga representação fisionômica de Cristo nessa época.

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Sarcófago de Júnio Basso (c.359 dC).  Júnio Basso, da alta aristocracia romana, recentemente convertido ao Cristianismo, era Prefeito Urbano de Roma em 359 dC, quando morreu, aos 42 anos de idade.  Mármore; o sarcófago mede 234 cm de comprimento, 142 cm de altura e 142 cm de largura.  Detalhe das duas cenas centrais da parte frontal: acima, Cristo entregando a Lei (i.e., a Nova Lei, o Evangelho) a Pedro e a Paulo, os maiores Apóstolos (Traditio Legis), com os Céus sob Seus pés; embaixo, entrada de Cristo em Jerusalém.  A imagem de Jesus é a dum jovem imberbe, com cabelos não muito longos e ondulados, ainda bem próxima daquelas das Catacumbas.  Originariamente na cripta da antiga Basílica de São Pedro, Vaticano, agora nos subterrâneos da nova basílica, no Museu de São Pedro do Vaticano. 

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Sarcófago de Júnio Basso (c.359 dC); parte frontal superior (à direita, para quem olha, da Traditio Legis): Jesus diante de Pilatos.  Cristo (jovem e imberbe) carrega um rolo na mão, como um filósofo; Pilatos, sentado na sedia curulis dobrável de magistrado, com um acólito pronto a lhe lavar as mãos, faz o gesto contra o mau-olhado (por causa da fama de Jesus como milagreiro?). 

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O assim denominado “sarcófago de Domitila”, originariamente nas catacumbas de Domitila, atualmente no Museu Pio Cristão do Vaticano.  Mármore, meados do séc. IV dC (aproximadamente contemporâneo do sarcófago de Júnio Basso anteriormente mostrado).  O painel central mostra a Cruz, aqui nem tanto símbolo da morte mas sim da Vitória de Cristo; os painéis laterais, da esquerda para a direita, mostram: o Cireneu carregando a Cruz; Jesus sendo coroado por um soldado; Jesus diante de Pilatos; e Pilatos no julgamento, prestes a lavar as mãos.  Cada um dos painéis será apresentado com maior detalhe a seguir. 

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Sarcófago de Domitila: Simão de Cirene carrega a cruz de Cristo, forçado por um soldado.  Não se trata de Jesus, que, conforme se pode ver nos painéis seguintes, está vestido de outra maneira, como um filósofo, e não como uma pessoa comum do povo (caso, aqui, do Cireneu, de túnica curta, sem manto, e descalço).  A cena é visivelmente esquemática. 

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Sarcófago de Domitila: Cristo, vestido como um filósofo, com túnica e manto, e com os rolos da Nova Lei na mão, é coroado por um soldado (note-se o contraste entre as roupas de Jesus e as do Cireneu, no painel anterior).  Não se trata, aqui, da Coroa de Espinhos, mas sim duma grinalda (stephanos), símbolo da alegria e da vitória, com que as pessoas se coroavam nas ocasiões festivas.  A cena, assim, é altamente simbólica: a Coroa de Espinhos, símbolo de escárnio e irrisão, é aqui transfigurada como uma coroa de vitória, e Cristo é coroado como vitorioso diante da Morte.  Note-se que Jesus é representado como jovem e imberbe, na tradição das pinturas das Catacumbas, e de modo semelhante àquele mostrado no sarcófago de Júnio Basso. 

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Sarcófago e Domitila: painel central, e o mais importante.  A Cruz, aqui mostrada não tanto como o instrumento da morte de Cristo, mas sim de Sua Ressurreição – ou seja, de Sua Vitória e de Seu Sacrifício Salvífico.  A Cruz encontra-se encimada por uma grinalda (stephanos), símbolo da alegria e da vitória, dentro da qual se inscreve o monograma “qui-rô” (formado pelas duas primeiras letras do nome de Cristo em grego, qui, “X”, e rô, “P”); pousando na Cruz, duas pombas, símbolo das almas libertadas pelo sacrifício de Cristo (e capazes de “alçar vôo” para Deus); abaixo, dois soldados, que guardavam a tumba de Jesus, adormecidos – símbolo dos poderes deste mundo, aparentemente vitoriosos mas, na prática, derrotados pelo Poder de Cristo.  Note-se que não se representa, ainda, Cristo pregado à Cruz. 

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Sarcófago de Domitila: Jesus apresentado diante de Pilatos, ladeado por um soldado.  Jesus, jovem e imberbe, veste-se com a túnica e o manto dos filósofos, e carrega nas mãos um rolo.  Ao passo que o soldado carrega nas mãos uma lança, símbolo do poder deste mundo, Jesus tem, em suas mãos, o manto dos filósofos (a Sabedoria) e os rolos da Nova Lei, ou seja, dos Evangelhos, símbolos ambos do Verdadeiro Poder (a Sabedoria de Deus e a Sua Lei). 

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Sarcófago de Domitila: Pilatos julgando Jesus.  Um acólito, vestido como escravo, prepara a jarra de água e a bacia para que Pilatos, sentado na sua sedia curulis (a cadeira dobrável que apenas os magistrados podiam usar), lave suas mãos; o governador não ousa olhar para Jesus, mas desvia o rosto, fazendo (como no sarcófago de Júnio Basso) o gesto tradicional contra o mau-olhado.  Embora seja Pilatos o juiz, toda a cena sugere, ao contrário, que é ele (símbolo dos poderes deste mundo) que está sendo julgado por Jesus (veja-se a atitude de Jesus, o “réu”, no painel anterior, e compare-se-a com a de Pilatos, o “juiz”, neste painel). 

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O assim denominado “Painel da Ascensão”, marfim, 18,8 x 11,4 cm, finais do séc. IV ou inícios do séc. V dC, atualmente no Museu Nacional Bávaro, Munique.  Na parte inferior do painel, as Três Marias (tradicionalmente Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Maria Salomé) recebem do Anjo, em frente ao Sepulcro (modelado, sem dúvida, a partir da rotunda da Anástase, na igreja do Santo Sepulcro, de Jerusalém), símbolo da morte derrotada (guardado, inutilmente, por dois guardas adormecidos…), a notícia de que Cristo havia ressuscitado; na parte superior, à direita de quem olha, Cristo, identificado por um nimbo (halo), ascende aos Céus, levado por Deus (a Mão que sai das nuvens), diante de dois discípulos, entre espantados e aterrorizados.  Jesus apresenta-se como jovem, imberbe, com cabelos não muito longos, vestindo o manto dos filósofos e portando, na mão, os rolos da Nova Lei (o Evangelho).  Por detrás do Sepulcro (símbolo da morte), e em oposição a ele, uma frondosa árvore com frutos (a Boa Nova, fonte da verdadeira Vida), onde os pássaros (i.e., as almas dos fiéis) encontram repouso e alimento. 

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Placas do Ciclo da Paixão: trata-se de quatro placas de marfim (7,5 x 9,5 cm cada), confeccionadas provavelmente em Roma, e, pelo estilo, executadas c.420-430 dC.  Atualmente no Museu Britânico, originalmente encontravam-se encaixadas nas quatro laterais dum estojo ou cofre, ou talvez mesmo (tendo em vista os motivos da decoração) duma píxide ou âmbula (caixa para guardar hóstias, tanto antes da consagração quanto após a Eucaristia; quando uma caixa desse tipo tem a forma dum cálice, geralmente de metal, como é o usual atualmente, é denominada especificamente de “cibório”).  Nessas placas encontra-se o primeiro conjunto de decorações ligadas especificamente à Paixão de que se tem notícia, e, também, a mais antiga representação até aqui conhecida da Crucifixão, com o Cristo crucificado.  A confecção é de altíssimo nível, com cada cena trabalhada habilmente no marfim em alto relevo, e com abundância de detalhes.  Cada placa será apresentada e detalhada a seguir.

 

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Placas do Ciclo da Paixão: Jesus (representado jovem e imberbe, embora com cabelos longos) carrega a Cruz, escoltado por um soldado.  À esquerda de quem olha, Pilatos lava as mãos; à direita, uma mulher aponta para Pedro, ajoelhado diante de Cristo, afirmando que ele também era um discípulo do Galileu; mas Pedro nega (note-se a figura do galo, acima da cabeça de Pedro, e veja-se Mateus 26:69-75; Marcos 14:66-72; Lucas 22:54-62; e João 18:12-18 e 25-27).  Note-se que Jesus carrega a Cruz (numa cena altamente esquemática, aliás) aparentemente sem grande esforço, e sem perder Sua dignidade; ainda se está bem distante das cenas altamente carregadas de emoção da Paixão; o que se enfatiza nessa época é o poder, a serenidade e a Vitória final de Cristo, não Seus sofrimentos na Cruz. 

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Placas do Ciclo da Paixão: a mais antiga representação conhecida da Crucifixão.  Não se trata mais duma alegoria simbólica, como no Sarcófago de Domitila, mas da cena do próprio Jesus pregado à Cruz.  À esquerda, Judas, o traidor, enforcado numa árvore, tendo a seus pés o preço de sua traição, o saco aberto, com as trinta moedas parcialmente espalhadas no chão.  À direita do Cristo crucificado (à esquerda de quem olha), a Virgem e São João Evangelista; à esquerda do Cristo (à direita de quem olha), um soldado romano (por tradição, São Longino), cravando-Lhe a lança no lado.  Cristo, de cabelos longos, mas sem barba, mesmo na Cruz mantém seu auto-controle e dignidade, vitorioso diante da Morte, com o rosto impassível, os olhos abertos, o corpo sem nenhuma contorção ou esgar de dor.  No alto da Cruz, o titulus, com a inscrição REX IVD(aeorum), “Rei dos Judeus”.  Cristo, por pudicícia, é mostrado vestindo uma tanga (perizôma), embora, na realidade, os condenados à cruz fossem nela pregados nus.  Notar que, no ramo da árvore em que Judas, o traidor, se enforcou e que se situa mais próximo de Cristo (acima da cabeça da Virgem), um pássaro dá de comer às suas crias, num ninho – símbolo da vitória da Vida sobre a Morte, e da continuidade inextinguível da existência. 

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Placas do Ciclo da Paixão: o Sepulcro Vazio.  As pesadas portas do sepulcro (com batentes em forma de cabeças de leões) encontram-se escancaradas, sendo que a folha à esquerda de quem olha encontra-se arrebentada; consegue-se antever parte do interior do sepulcro, com um sarcófago vazio.  Na folha intacta da porta do sepulcro, acima do batente em forma de leão encontra-se a cena de Cristo ressuscitando Lázaro, e, abaixo, uma mulher reclinada, lamentando-se.  Ladeando o sepulcro vazio, testemunha da Vitória de Cristo sobre a Morte, dois soldados adormecidos, e, acima dos dois soldados, as duas Marias (Maria Madalena e Maria a mãe de Tiago), testemunhas das aparições do Cristo Ressuscitado. 

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Placas do Ciclo da Paixão: Cristo Ressuscitado (imberbe, de cabelos longos, e agora com um nimbo) apresenta-Se sobre um estrado, ladeado por quatro discípulos, um dos quais o incrédulo Tomé, que, à Sua esquerda (à direita de quem olha), Lhe põe a mão no ferimento do lado (cf. João 20:19-29).

A cidade de Ravena, na Itália, situada no litoral norte do Adriático, próxima à foz do rio Pó, dispondo de porto marítimo e, além disso, protegida em terra por um cinturão de pântanos e lagunas, foi a sede da corte imperial romana nos últimos tempos do Império Ocidental (402-476 dC), e capital da Itália sob o governo de Odoacro (476-493 dC), dos ostrogodos (493-540 dC) e dos bizantinos (540-751 dC).  Data dessa época (mais especialmente, do período compreendido entre o 2º quartel do séc. V dC e o 3º quartel do séc. VI dC, ou seja, aproximadamente 425-575 dC) uma importante série de testemunhos de arquitetura e de arte cristã, num conjunto de edifícios religiosos (com suas respectivas decorações, principalmente em mosaico) que, em quantidade razoável, sobreviveram até aos dias atuais.  Essa peculiaridade permite, mediante a análise de tais obras, traçar (juntamente com os testemunhos sobreviventes em Roma) a evolução da arte cristã de primeira linha (i.e., patrocinada por personagens importantes) nesse período, ao passo que, noutros lugares, principalmente no Oriente, os testemunhos artísticos dessa época acabaram desaparecendo, tendo em vista quer a conquista muçulmana no séc. VII dC (e a posterior islamização), quer a Querela das Imagens em Bizâncio (726-843 dC), que levou à destruição deliberada, nas áreas sob controle direto do Imperador, de muito da arte figurativa dos períodos mais antigos.  Especificamente, podem ser estudadas as formas de representação da figura de Jesus, podendo-se obter testemunhos quer da concepção mais antiga (o jovem imberbe), quer da “nova” concepção (o adulto barbado e de longos cabelos).  A seguir, uma série de testemunhos da persistência da imagética mais antiga. 

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Interior do mausoléu de Gala Placídia, Ravena, Itália, 2º quartel do séc. V dC.  Gala Placídia (392-450 dC), meia-irmã do Imperador ocidental Honório (reinou 395-423 dC), foi por ele casada com seu general de confiança, Constâncio (417 dC), elevado por um breve período à condição de co-Imperador (421-422), até à sua inesperada morte.  De Constâncio ela teve dois filhos, Justa Grata Honória (417/18 – antes de 455, a famosa “noiva de Átila”) e Flávio Placídio Valentiniano (419-455), que depois seria o Imperador ocidental Valentiniano III (425-455).  Durante a minoridade de seu filho, atuou como regente, governando o cambaleante Império Romano do Ocidente (425-437).  Construído e decorado pela regente para ser o seu túmulo, o mausoléu possui planta cruciforme, com tetos abobadados e exuberante decoração interior em mosaico; no extremo duma das alas, tem-se a cena aqui mostrada, representando Cristo como o Bom Pastor, retratado, imberbe, numa idílica paisagem, com as ovelhas de Seu rebanho (ver detalhe a seguir).

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Detalhe do mosaico de Cristo como o Bom Pastor (jovem e imberbe), mausoléu de Gala Placídia, Ravena, Itália, 2º quartel do séc. V dC.  Cristo, com nimbo, e carregando, à guisa de cajado, a Cruz, símbolo de Sua Vitória, apascenta os Justos (o rebanho de carneiros), no Paraíso (o idílico prado).  Como se pode notar, a representação de Jesus na tipologia do Bom Pastor (herdada da arte das Catacumbas), semelhante a Orfeu, continua plenamente vigente, inclusive na arte patrocinada pelos mais altos círculos.  Se a “carta de Lêntulo” fosse conhecida à época, e reputada como um documento autêntico, esperar-se-ia que, pouco depois da cessação das perseguições, e na esteira da progressiva transformação do Cristianismo como religião oficial do Império, a imagística “verdadeira” (i.e., a de “Lêntulo”) logo suplantasse aquelas herdadas da arte simbólica das Catacumbas, de modo que, entre os finais do séc. IV e os inícios do séc. V dC, tal imagem passasse a reinar inconteste – algo que, em absoluto, não ocorreu.  As duas tipologias, ao contrário, continuaram coexistindo, lado a lado, ao longo dos séculos V e VI dC, mais um indício tanto do caráter simbólico de ambas quanto da inexistência de fontes “históricas” e “seguras” que informassem a “verdadeira fisionomia” de Jesus.

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Decoração em mosaico do teto cupulado do Batistério dos Arianos, Ravena, Itália, construído e mandado decorar pelo rei ostrogodo Teodorico o Grande (493-526 dC) entre os finais do séc. V e os inícios do séc. VI dC (na mesma época em que mandava construir e decorar a igreja de Santo Apolinário o Novo).  Os Doze Apóstolos (incluindo São Paulo), em procissão, carregando coroas, circundam um medalhão central, com a cena de Jesus (jovem e imberbe, mas com longos cabelos) sendo batizado no Jordão por São João Batista.  Detalhes da cena do Batismo de Jesus serão fornecidos nas ilustrações a seguir. 

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Teto cupulado do Batistério dos Arianos, Ravena, Itália (fins do séc. V a inícios do séc. VI dC), detalhe do medalhão central, mostrando o Batismo de Jesus.  Cristo, ao centro, jovem, nu e imberbe (mas com cabelos longos), é batizado por São João Batista (à direita de quem olha), tipicamente vestido com peles de camelo.  À esquerda de quem olha, a personificação do rio Jordão (segurando um caniço), herdada da arte clássica; sobre a cabeça de Cristo, desce o Espírito Santo, como pomba. 

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Teto cupulado do Batistério dos Arianos, Ravena, Itália (fins do séc. V a inícios do séc. VI dC), detalhe do rosto de Cristo, no medalhão central.

clip_image051 Basílica de Santo Apolinário o Novo, Ravena, Itália, originariamente uma igreja palatina mandada construir pelo rei ostrogodo Teodorico o Grande (493-526 dC) e dedicada em 504 dC, parede sul.  As paredes laterais dessa basílica exibem três faixas de decoração em mosaico.  Na faixa inferior (logo acima das colunas), uma procissão de santos mártires, portando coroas, se dirige a Cristo Entronizado (como mostrado nesta ilustração, da parede sul), ou (na parede oposta, a parede norte) uma procissão de santas virgens, também portando coroas, se dirige à Virgem Entronizada.  Os mosaicos dos santos e das santas não são da época de Teodorico, mas sim da redecoração efetuada c.560 dC, sob o episcopado de Agnelo (557-570 dC).  Na faixa intermediária, entre as janelas, santos (ou patriarcas), todos carregando códices ou rolos, cada um num nicho individualizado (tanto na parede sul quanto na parede norte); enfim, na faixa superior, mais próxima ao teto, separados por desenhos de calotas em forma de concha, extensão dos nichos dos santos, abaixo, uma série de 13 painéis com cenas da vida de Cristo.  Na parede sul (nesta ilustração), os painéis retratam a Paixão e a Ressurreição de Cristo (mas não a Crucifixão), e neles Jesus é representado como um adulto barbado; na parede norte (oposta à ilustração aqui mostrada), os painéis retratam cenas de vários milagres de Cristo, e neles Jesus é representado como um jovem imberbe.  Várias hipóteses vêm sendo concebidas para explicar tal arranjo; o mais provável é que, nas cenas de milagres, se quisesse enfatizar o poder de Cristo, atemporal e eterno, sobre toda a Natureza, servindo a juventude para simbolizar tal poder e eternidade, ao passo que, nas cenas da Paixão e Ressurreição, se quisesse enfatizar a plena maturidade de Jesus, quando consumou Sua missão, mediante Seu Sacrifício salvífico – aspecto melhor simbolizado pela figura mais “idosa” e “patriarcal”.  O programa decorativo de Santo Apolinário o Novo é mais uma evidência (e evidência poderosa) do caráter simbólico da representação física de Cristo, fosse ela qual fosse, embasada tal representação (qualquer que fosse a physiognomia escolhida) em pressupostos teológico-salvacionistas, e não em (pretensas) descrições fidedignas do real aspecto do Salvador.  A seguir, serão mostrados alguns exemplos do Cristo jovem das cenas dos milagres. 

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Basílica de Santo Apolinário o Novo, Ravena, Itália, fins do séc. V ou inícios do séc. VI dC, mosaico do Milagre da Cura da Hemorroíssa (a mulher com fluxo de sangue, cf. Mateus 9:20-22, Marcos 5:25-34 e Lucas 8:43-48), parede norte.  Cristo, com nimbo crucífero, é mostrado jovem e imberbe. 

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Basílica de Santo Apolinário o Novo, Ravena, Itália, fins do séc. V ou inícios do séc. VI dC, mosaico do Milagre da Multiplicação dos Pães (e Peixes), parede norte.  Cristo, com nimbo crucífero, jovem e imberbe, abençoa os pães e peixes que seriam milagrosamente multiplicados.

clip_image057 Basílica de Santo Apolinário o Novo, Ravena, Itália, fins do séc. V ou inícios do séc. VI dC, mosaico da Conversão da Samaritana, diante do Poço de Jacó (cf. João, cap. 4º, especialmente vers. 4-26).  Cristo, com nimbo crucífero, é mostrado jovem e imberbe, na postura do Mestre, ensinando a Samaritana. 

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Cristo, vestido como um oficial militar romano, triunfando sobre o Mal (simbolizado pelo leão e pela serpente, calcados a Seus pés).  Mosaico da antecâmara da Capela do Palácio Episcopal, Ravena, Itália, decoração encomendada pelo bispo Pedro II (494-519 dC) em 494-495 dC.  Cristo é representado como um jovem imberbe; segura na mão direita a Cruz e na esquerda um códice aberto, com a inscrição Ego Sum Via, Veritas et Vita (“Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, cf. João, cap. 14, vers. 6º).

clip_image061 Visão geral do teto da Capela do Palácio Episcopal de Ravena, Itália, que ainda conserva a decoração em mosaico encomendada pelo bispo Pedro II em 494-495 dC (note-se, contudo, que a cena da Deposição da Cruz, na parte inferior esquerda da ilustração, é recente).  A decoração do arco que separa a nave da abside (cuja calota encontra-se decorada com uma cruz dourada num céu azul estrelado) mostra medalhões representando Cristo e alguns Apóstolos, e é apresentada em detalhe a seguir.

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Capela do Palácio Episcopal de Ravena, Itália, detalhe da decoração em mosaico do arco que separa a nave da abside (ver ilustração anterior).  Cristo, de cabelos longos mas de aspecto jovem e imberbe, com nimbo crucífero, no medalhão central, ladeado pelos Apóstolos Pedro (à direita de quem olha) e Paulo (à esquerda).  Decoração encomendada pelo bispo de Ravena Pedro II (494-519 dC), 494-495 dC.

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Basílica de São Vital, Ravena, Itália.  Mosaico da calota (semicúpula) da abside (c. 525-526 dC).  A basílica de São Vital teve sua construção iniciada pelo bispo Eclésio (522-532 dC) c.525 dC, sendo terminada em 547 dC, sob o episcopado de Maximiano (546-557 dC), embora a decoração da abside já estivesse terminada c.526 dC.  Cristo, em Majestade, com o Orbe a Seus pés, encontra-se ladeado por dois Arcanjos, oferecendo (à esquerda de quem olha) a coroa da vitória ao mártir Vital; na extrema direita de quem olha, o bispo Eclésio, por sua vez, oferece a Cristo uma maquete da basílica.  A figura de Cristo é a do jovem imberbe, e de cabelos curtos (ver detalhe na ilustração a seguir).

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Detalhe da face de Cristo no mosaico da calota da abside de São Vital (c.525-526 dC), mostrado na ilustração anterior.  Note-se o aspecto de Jesus (claramente identificado pelo seu nimbo crucífero, i.e., portador da Cruz), retratado como jovem, imberbe e de cabelos curtos.

Uma resposta a “LÊNTULO, O SUFETA – RESPOSTA A NAGIPE ASSUNÇÃO (Apêndice 1 – Figuras de Cristo, parte 1 de 3)”

  1. Gorducho Diz:

    Porque esse relatório ficou escondido por causa das perseguições e depois com a desintegração da parte ocidental. E os espíritos não podiam dizer onde estava porque a Igreja havia proibido os médiuns de se manifestarem, considerando bruxaria.
     
    Estou só brincando Sr. JCFF: não se irrite… Confesso envergonhado que não imaginava que iria sair-se tão bem! Foram meses de expressiva angústia…
    Muito bom o argumento da idade do sufeta. E acredito então que tenha sido o Scipio mesmo – assim nem tem contradição entre as duas fontes (fragmentos), certo?
    E de quebra o Sr. provavelmente descobriu a inspiração para o CX escrever o romance!

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