Vida e Obra da Sra. Piper, capítulos 1 a 3 (1929)
Seguem os 3 primeiros capítulos traduzidos do livro escrito por Alta L. Piper, uma das filhas da grande médium Leonora Piper. A tradução é de Márcio Rodrigues Horta, a quem muito agradeço!
ALTA L. PIPER
Vida e Obra
DA
Sra. Piper
Com uma Introdução por
SIR OLIVER LODGE
F.R.S., D. Sc.
KEGAN PAUL, TRENCH, TRUBNER & Co., LTD.,
BROADWAY HOUSE:
, E.C.
1929
IMPRESSO NA GRÃ-BRETANHA POR W, JOLLY AND SONS, LTD., ABERDEEN.
SRA. PIPER
RECONHECIMENTOS
Agradeço muito ao Conselho da Sociedade de Pesquisa Psíquica por me permitir utilizar e citar o material contido nos Proceedings da Sociedade. Também expresso meu reconhecimento a quem graciosamente me permitiu utilizar suas correspondências ao meu juízo. E à senhorita H. A. Dallas, por me permitir citar seu livro Mors Janua Vitae, também estendo meus agradecimentos.
ALTA L. PIPER
HARROW ON THE HILL
INGLATERRA,
1929
CONTEÚDO |
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PÁGINA |
Prefácio de sir Oliver Lodge |
ix |
CAPÍTULO |
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1. Mediunidade: algumas condições gerais |
1 |
2. Experiências da infância |
10 |
3. O casamento e a primeira mensagem |
16 |
4. O testemunho do prof. James |
21 |
5. O prof. James e o Dr. Hodgson |
29 |
6. O Dr. Hodgson começa sua investigação |
34 |
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42 |
8. Inglaterra, novembro de 1889 |
47 |
9. O Sr. Myers e sir Oliver Lodge |
54 |
10 As condições de transe |
62 |
11. Vida caseira |
69 |
12. “GP” |
76 |
13. O “Grupo Imperador” |
83 |
14. Fenômenos |
93 |
15. Aforismos do outro lado |
109 |
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115 |
17. Richard Hodgson, o homem |
121 |
18. Inglaterra de novo |
128 |
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135 |
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139 |
21. A mensagem latina, continuação II |
150 |
22. Mariemont e sir Oliver Lodge |
161 |
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169 |
24. O retorno do poder |
176 |
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180 |
26. Algumas hipóteses sugestivas |
185 |
27. Fenômenos recentes |
189 |
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198 |
PREFÁCIO POR SIR OLIVER LODGE
Há uma ideia popular que as pessoas que têm uma faculdade psíquica pronunciada devem possuir um caráter desequilibrado e inapto para a vida normal. Até certo ponto, o mesmo sentimento existe sobre as pessoas dotadas das faculdades matemática, artística ou musical, embora não com a mesma extensão. Não obstante, convém mitigar essa impressão, se não abandoná-la, para uma melhor compreensão dos fatos. Sem dúvida, existem muitos tipos de capacidades excepcionais, e há, naturalmente, alguma curiosidade de saber como tal poder foi descoberto em determinada pessoa, e qual é a sensação de ser tão dotado.
Sobre os dons da Sra. Piper não há qualquer dúvida. Ela foi trazida ao nosso conhecimento na Inglaterra cerca de quarenta anos atrás pelo prof. William James que, ao ser apresentado por damas de sua família a estranhos relatos de conhecimento supernormal apresentado por certa Sra. Piper de Boston, decidiu ir com um espírito forte e explodir a superstição. Disso resultou que ele se envolveu ao perceber que, inesperadamente, encontrara algo não reconhecido pela psicologia ortodoxa, algo que precisava muito de exploração e elucidação. Assim, por muitos anos, a Sra. Piper esteve sob o escrutínio e se submeteu aos métodos críticos da Sociedade de Pesquisas Psíquicas; com os resultados que todo o mundo sabe ou pode saber por livros ou pelos Proceedings daquela Sociedade.
De vida familiar exemplar, a Sra. Piper continua até hoje levando uma vida normal com suas duas devotadas filhas. Suas faculdades psíquicas que há alguns anos, durante um momento de tensão diminuíram ao nível mais comum da escrita automática, já retornaram. Não podemos legislar sobre tais coisas; nosso negócio é aprender com os fatos.
Com dedicação, o trabalho de sua vida tem sido fornecer material a uma ciência nascente, incluindo um tipo ou variedade de interação entre mente e matéria que, embora intrigante e incomum, já gera resultados instrutivos, beneficentes e reconfortantes. Na maioria das esferas da vida, pessoas que assim se sacrificaram e doaram para o bem da comunidade são apreciadas e honradas; a Sra. Piper tem feito muitos amigos devotados, mas enquanto o poder exibido em estado de transe for considerado anormal ou estranho, os serviços dos médiuns genuínos não receberão sua devida cota de gratidão e reconhecimento.
Por desejar que uma atitude mais sã e amigável seja gradualmente tomada pela comunidade em geral para com aqueles que a servem é que parabenizo a publicação de uma vida e obra da Sra. Piper por alguém que, desde a infância, viveu com ela e que, embora não seja dotada do poder de sua mãe, conhece o assunto e simpatiza com ele, tendo muitas vezes atuado como amanuense para comunicadores do outro lado. Não é uma tarefa leve e não pequeno o serviço que poucos médiuns excepcionalmente dotados realizaram e realizam. Assim, eles têm tido o privilégio de trazer conforto e restaurar a fé dos enlutados, de reatar de algum modo laços familiares quebrados, de demonstrar a verdade da sobrevivência do modo mais prático e definitivo e, geralmente, de auxiliar os investigadores científicos no esforço de compreender melhor a natureza e as propriedades da alma humana, para além de suas manifestações corporais habituais.
A atmosfera de dúvida e hesitação que ainda ronda o assunto nos meios científicos é indigna do que poderia ser nosso atual esclarecimento e da memória de nossos antepassados que, ao atestar novas experiências, enveredaram numa luta pela verdade. Mas embora o progresso seja lento, um dia melhor está amanhecendo. Os fatos são muito fortes para se resistir muito mais; e este volume cuidadoso e sincero pode ser de alguma ajuda, bem como de grande interesse, na medida em que publica e republica alguns dos fatos e, ao mesmo tempo, apresenta ao mundo a história privada de uma das mais famosas médiuns de nossos próprios dias.
OLIVER LODGE.
VIDA E OBRA DA SRA. PIPER
CAPÍTULO 1
MEDIUNIDADE: ALGUMAS CONDIÇÕES GERAIS
Durante a grande guerra, aquele terrível cataclismo cuja lembrança já misericordiosamente esmaece nas mentes humanas, milhões de vidas “apagaram” como velas ao vento. Mais rápido que o pensamento, aquele “algo” intangível, invisível e imperceptível que faz dessa massa de carne, sangue e ossos uma vida, coisa animada respirante, torna-se extinto para todos os efeitos. Os homens se descobrem interrogando: para onde foi? O que se tornou aquilo que chamamos “alma”?
Alguns afortunados, cuja herança de fé no porvir era mais forte que a tristeza, encontraram conforto na fé. Mas outros, constituindo a grande maioria, tendo de há muito rompido com a ortodoxia de seus pais, subitamente se apanharam confrontados com uma dor insuportável, esmagadora e, no limite, voltaram-se para as várias “doutrinas” da ocasião buscando e buscando um raio de conforto na escuridão; muitos deles, grandemente necessitados, dirigiram-se para investigar o até então algo rigidamente anatematizado reino da pesquisa psíquica. Foi esta esperança nascida do desespero (pois finalmente poderia ser descoberta a prova da imortalidade tão desesperadamente desejada) que criou o interesse sem precedentes manifestado pelo espiritualismo e pela pesquisa psíquica durante os últimos anos da grande guerra, e que ainda continua em grande medida profícuo. Com efeito, a pessoa culta de hoje que não está interessada em alguma fase da pesquisa psíquica constitui a exceção; embora, como é natural, tal interesse se manifeste de diferentes modos e em diferentes graus, segundo o temperamento e a formação do indivíduo. Porém, todos os homens e mulheres que pensam concordam num ponto: sem experiência pessoal, não importa quão extensa uma linha de leitura ou o estudo de alguém possa ser, é impossível tocar mais que a franja da parte mais externa desse assunto abrangente.
É justamente durante a aquisição da tão essencial experiência pessoal que reside um perigo potencial, ao menos para o novato. Pois, a fim de alcançar essa experiência, é forçosamente necessário obter os serviços de um médium (caso não se possua poder mediúnico) e, sendo mortalmente honestos, temos de admitir que nem todos aqueles que afirmam possuir tal poder estão justificados em suas pretensões: às vezes, infelizmente, trata-se de desonestidade deliberada do médium, mas mais frequentemente de genuíno auto-engano. Exemplos desta última categoria mencionada são encontrados especialmente na fase da mediunidade conhecida como escrita automática, que agora está comparativamente se tornando muito comum. No entanto, é muito estranho que assim seja, pois recordamos que tais manuscritos “automáticos” com maior frequência são genuinamente produzidos sem qualquer vontade ou conhecimento consciente do automatista; um fato que obviamente deve fortalecer a prontidão é a ansiedade, por vezes avidez, que o produtor desses manuscritos não raramente manifesta em atribuir suas origens a “espíritos”. Mas o automatista e o investigador devem constante e assiduamente se resguardar de aceitar muito prontamente uma suposição dessa natureza, pois, muito frequentemente, sob análise cuidadosa e imparcial, tais escritos nada realmente exibem senão o reflexo das convicções filosóficas, religiosas ou pensamentos materialistas do próprio automatista.
É bem verdade que uma das questões mais discutidas atualmente no estudo dos fenômenos mentais é em qual extensão a personalidade, educação, treinamento e ambiente de um médium influenciam os fenômenos produzidos. Mas no tipo de escrita automática acima referido, como tal, este problema obviamente não existe.
Até que ponto o próprio equipamento mental do médium influencia os fenômenos é um problema tão intrigante quanto importante e, no meu modo de pensar, é intimamente análogo ao símile do vidro da janela. É ponto pacífico que a luz atravessando uma vidraça limpa é mais forte e clara que aquela filtrada por uma vidraça suja, embora atravessando um vidro nublado ou parcialmente obstruído certa quantidade de luz passe. Noutras palavras, em certa medida, o meio afeta o que conduz. E isso é verdadeiro não apenas para a vidraça, mas para outros meios físicos de condução também. Portanto, não pode concebivelmente ser igualmente verdadeiro para os médiuns psíquicos?
Quanto a isso, todos estamos indubitavelmente familiarizados com a questão tão comumente feita: se a comunicação do espírito é possível, por que algo que realmente vale a pena, algo por exemplo da natureza de uma invenção, não foi passado desse modo a um mundo interessado e esperançoso? Considerando o equipamento e o temperamento dos médiuns que até agora produziram fenômenos intelectuais verídicos, essa questão, sempre que a ouço, imediatamente evoca a imagem em minha mente de, digamos, um sábio que se vê confrontado com a necessidade de telegrafar um discurso em russo e pode conseguir para este fim apenas um telegrafista anglófono a quem é obrigado a passar seu texto por telefone. Com a diferença, no entanto, que em nossa ilustração hipotética as dificuldades são bem conhecidas e compreendidas, enquanto, no outro caso, elas apenas podem ser imaginadas imperfeitamente.
Porém, por um momento, voltemos à análise da questão do auto-engano ou ilusão por parte do médium. Com efeito, esta é uma condição séria e requer cuidado, paciência e manuseio atencioso quando pode ser auxiliada a tempo; mas uma condição ainda mais séria com que por vezes nos vemos confrontados é o da desonestidade deliberada e intencional. Este é um fator que se deve ter em mente no início e, efetivamente, pelo curso de qualquer investigação cientificamente conduzida. Embora muito lamentável, contudo, é compreensível que médiuns aceitem pagamento por seus serviços (o trabalhador é digno de seu ganho) e possam concebivelmente ficar muito ansiosos para justificar o valor, pois eles o compreendem como seus honorários e, consequentemente, se fenômenos genuínos não estão no momento disponíveis, eles podem ser tentados em tais ocasiões a recorrer à fraude, ao invés de (como provavelmente lhes parece) decepcionar seus clientes. E esse estado de coisas é, sem dúvida, ainda mais complicado e agravado pelo fato dos fenômenos metapsíquicos genuínos não poderem ser produzidos em todos os momentos ou em todas as condições. Como sir Oliver Lodge disse, “não podemos legislar sobre essas coisas, nosso interesse consiste em compreendê-las”.
Provavelmente, nem todos os fatores que contribuem para esta inaptidão são conhecidos, mas dentre os que são, falarei aqui apenas dos dois mais importantes: doenças ou muita fadiga no psiquista por alguma causa. Mesmo desunidos, tais fatores agem possivelmente como poderosos dissuasores ao êxito da produção de fenômenos psíquicos sejam físicos ou mentais; e é imperativo destacar a importância de reconhecer e proteger o psiquista tanto quanto possível dos dois inconvenientes. Pois, quando o efeito dissuasivo dessas duas causas contributivas for realmente compreendido e as condições negativas remediadas inteligentemente, a melhoria resultante no trabalho do psiquista recompensará generosamente qualquer investigador.
Por outro lado, não se deve perder de vista que a cautela sábia e incessante do investigador bem como a tendência para ser mais crítico que crédulo quanto a todos os fenômenos obtidos são qualificações essenciais a um experimentador realmente bom. E talvez não seja muito necessário acrescentar que a primeira exigência no início de uma investigação é estabelecer além de qualquer dúvida razoável a integridade pessoal do médium com quem se trabalha.
A propósito dessa última observação, quero particularmente acentuar a sabedoria e a necessidade (para o bem dele e também da pesquisa psíquica) que cada médium potencial se submeta livre e graciosamente à investigação científica inteligente desde o início de sua carreira (se posso usar este termo nesse assunto). Também conviria que todo experimentador se lembrasse que a posição de investigador psíquico não é uma sinecura, pois ele deve estar sempre vigilante, alerta, invariavelmente preparado para detectar e lidar com problemas, situações e condições novas e intrigantes. Nem deve se permitir alguma vez esquecer que só com paciência perseverante, por vezes em face de dificuldades aparentemente insuperáveis, ele pode realmente esperar determinar quem sabe a autenticidade (para não falar da verdadeira natureza) dos fenômenos que observa.
Até aqui, consideramos apenas um ângulo da tarefa do investigador psíquico, talvez o mais óbvio. No entanto, há ainda outro ângulo, tão importante e que requer tanto (se não mais) cuidado e manuseio inteligente pelo investigador quanto aquele já considerado. Trata-se do entendimento simpático e a consideração devida ao médium com quem o experimentador tem o privilégio de trabalhar. Para que isto seja um privilégio também para o médium disposto a submeter-se à investigação científica, deve ser dada a medida mais ampla de consideração simpática compatível com as exigências da verdade, justiça e precisão – noutras palavras, com os ditames da ciência – isto felizmente está sendo mais e mais percebido e concedido a cada ano que passa.
Nem por um momento permitamo-nos esquecer que a mediunidade genuína é um fenômeno delicado e até agora de modo algum totalmente compreendido. Igualmente, lembremo-nos que, para o fenômeno perdurar, é essencial que seja tratado com o maior cuidado e circunspecção; e nunca pelo possuidor ou pelo investigador deve sofrer abuso.
Isso tudo a experiência tem nos ensinado. E se pensamos por um momento, percebemos que isso não é uma imposição peculiar ao médium vidente, mas que é igualmente aplicável a todos os médiuns de comunicação conhecidos. O sismógrafo, o rádio e o familiar telégrafo (para citar apenas alguns dos mais conhecidos) são todos meios de comunicação artificiais sensíveis e delicados que requerem manipulação cuidadosa para sua utilidade não ser prejudicada. Mesmo o telefone, instrumento comum e tão abusado da nossa comunicação moderna, não deve ser batido irresponsavelmente, caso se deseje os melhores resultados.
Assim se passa com os médiuns psíquicos. Se os investigadores desejam os melhores resultados, é tão essencial que exerçam a máxima consideração por seu instrumento quanto estejam constantemente atentos contra a possibilidade de fraude consciente ou não. As duas exigências são indispensáveis ao êxito da investigação.
Um investigador psíquico que combinou num grau extraordinário a compreensão inteligente de seu instrumento com a cautela necessária na condução de sua investigação foi Richard Hodgson, doutor em direito associado à Faculdade de S. João, Cambridge, Inglaterra. Por dezesseis anos como secretário e tesoureiro do ramo americano da Sociedade de Pesquisas Psíquicas inglesa, investigou os fenômenos da Sra. Piper. Além disso, os anais da Pesquisa Psíquica não contêm registro de qualquer outro psíquico que tão benevolente, rigorosa e longamente foi investigado pela ciência como a Sra. Piper. Portanto, este opúsculo sobre a vida dessa renomada psiquista, mesclado com um relato da investigação de seus fenômenos (pelo Dr. Hodgson, F. W. H. Myers, sir Oliver Lodge, prof. William James e outros homens de ciência e letras) por alguém que tem tido o privilégio de observá-los de um ângulo único, agora está sendo publicado na esperança que possa interessar e auxiliar todos os estudantes sérios da comparativamente nova mas sempre crescente ciência da pesquisa psíquica.
CAPÍTULO 2
EXPERIÊNCIAS NA INFÂNCIA
Iniciarei esta curta narrativa da vida e obra da Sra. Piper respondendo duas perguntas que são invariavelmente dirigidas a mim por desconhecidos. O primeiro ponto de interesse é quando e como a Sra. Piper descobriu seu poder psíquico; mas o segundo, se a família da Sra. Piper alguma vez se opôs ao desenvolvimento de seu poder, pode ser respondido mais rapidamente e considerarei inicialmente.
As únicas pessoas que poderiam justificadamente ter se oposto ao desenvolvimento do poder da minha mãe eram meu pai, minha irmã e eu. Quanto a meu pai, posso afirmar enfaticamente que desde que minha mãe descobriu seu dom psíquico até sua morte em 1904, ele esteve tão interessado não apenas nos fenômenos em si de minha mãe mas em sua solução última quanto a própria Sra. Piper; ademais, se recordarmos que minha irmã e eu éramos apenas bebês quando minha mãe começou seu trabalho, ver-se-á que alguma objeção que pudéssemos ter manifestado, ainda que inteligível, deveria ser pueril. Então, assim se descarta a questão de alguma objeção ao trabalho da Sra. Piper por parte de sua família.
No entanto, sobre isso, é interessante acrescentar que nenhum mistério jamais foi feito desse trabalho, mesmo quando éramos crianças pequenas. Dele sempre se falou e discutiu muito livremente diante de nós, tanto que enquanto crescíamos, considerávamos não a posse de dons psíquicos como inusual, mas antes sua ausência. Pessoalmente, só lamento até hoje que o trabalho de minha mãe à ciência ocupasse tanto de seu tempo que, quando crianças, nos privasse de muitas horas preciosas de sua companhia. Mas não obstante sua vida ocupada e os muitos compromissos que tinha de cumprir, havia um ritual diário que nunca permitiu que algo interferisse: ela mesma sempre ouvia nossa oração de boa-noite (que nos ensinou assim que pudemos balbuciar); então, com um beijo de boa-noite e um “Deus te abençoe, queridas”, deixava-nos aos cuidados de nossa babá.
Quero apenas acrescentar que alta, esguia, com graça e dignidade difíceis de descrever, de claras características de matriz grega e massas de cabelo douradas, minha mãe muito cedo na vida formou meu ideal de feminilidade; e bem me lembro quando, apenas uma garotinha, pedi a Deus para “ser como a mamãe quando crescer!”
Agora, passemos ao segundo ponto de interesse, como disse antes, à primeira pergunta. Como e quando a Sra. Piper descobriu seu poder psíquico? Para responder, devemos primeiro voltar as páginas da história de sua vida até sua infância. Uma tarde depois da escola, quando minha mãe tinha uns oito anos, ela brincava sozinha no jardim, ativamente engajada na ocupação absorvente de empurrar bolotas de carvalho pelo buraco de um dos bancos do jardim, aparentemente feito especialmente para esse fim. De repente, ela sentiu um estampido na orelha direita seguido de um som sibilante prolongado. Este gradualmente resolveu-se na letra S, que então foi seguida das palavras: “tia Sara, não morta, mas com vocês ainda”. Aterrorizada, a criança correu soluçando para a casa, segurando um lado da cabeça e gritando pela mãe. Minha avó, uma mulher inusualmente calma, muito equilibrada e inteiramente prática, tentou em vão por algum tempo consolá-la, pois em resposta às suas perguntas sobre o que tinha acontecido, a criança só gritava mais; no entanto, finalmente conseguiu balbuciar entre soluços: “oh, não sei – algo me atingiu na orelha e tia Sara disse que não estava morta, mas conosco ainda”.
Sua mãe acalmou gentilmente a criança assustada e, com a feliz resiliência da infância, ela foi mais uma vez brincar com suas bolotas como se nada fora do normal tivesse acontecido. Mas minha avó, perplexa e um pouco perturbada com o incidente, fez uma nota do dia e hora que o evento ocorreu e, então, esqueceu-se de tudo até vários dias depois, quando (a comunicação sendo mais lenta na ocasião que agora) uma palavra foi recebida de uma
SRA. PIPER—quando criança
parte distante do país. No dia e hora exatos da experiência estranha de sua filhinha, sua irmã, a “tia Sara”, havia falecido repentina e inesperadamente.
Apenas mais um incidente algo incomum precisa ser registrado aqui. Uma noite, poucas semanas após a experiência relatada acima, como de costume, minha mãe foi colocada na cama e a luz apagada, quando minha avó, que havia deixado o quarto apenas alguns momentos antes, apressou-se de volta em resposta aos gritos da criança: “mãe, mãe!” Parece que, desta vez, a criança não conseguia dormir por causa da “luz brilhante no quarto e todas as faces nela”, bem como porque “minha cama”, um grande dossel antiquado, “não vai parar de balançar”. No entanto, seus medos foram rapidamente aplacados e, segurando a mão de sua mãe, logo adormeceu, acordando na manhã seguinte renovada e imperturbável por qualquer lembrança de sua experiência na noite anterior.
A juventude e mocidade de minha mãe, exceto por uma experiência ocasional desse tipo, foi perfeitamente normal em todos os sentidos. A quarta de seis crianças, chefiava o grupo em todos os jogos e esportes segundo meus avós. Cheia de travessura e ânimo, naqueles dias, era a vida de todos à sua volta. Apesar de gostar muito dos grandes esportes ao ar livre e expostos, como todas as outras garotas de seu tempo, ela se tornou uma ótima costureira muito antes de sair da “adolescência”; e muitas evidências de seu bordado primoroso ainda estão preservadas nas roupas de bebê de minha irmã e minhas. Ela também era rápida e boa em seus estudos, que naqueles dias consistiam principalmente dos três “Rs”[1]: ortografia, geografia, história e gramática . Na ortografia, ela se destacava dentre as “abelhas ortográficas”, um costume único da Nova Inglaterra que Whittier imortalizou nos “Tempos escolares”: ela sempre chegava em primeiro ao “soletrar todos os ditados”.
Os pais da minha mãe possuíam ascendência inglesa e eram completamente tementes a Deus, muito amados e respeitados na comunidade em que viviam. Profundamente religiosos, eram membros da Igreja Congregacional e, nesta fé, minha mãe foi educada e permaneceu até sua visita à Inglaterra em 1910, quando foi batizada e crismada na Igreja da Inglaterra. Em seus dias de infância, as crianças eram obrigadas a assistir não apenas os longos e maçantes serviços matinais de domingo e também as escolas de sábado, mas os serviços noturnos de domingo e os encontros noturnos de preces das sextas também! A este regime minha mãe teve de se conformar, bem como as outras crianças. Então, talvez não surpreenda que, em seu nono aniversário, seu pai a tenha presenteado com uma pequena Bíblia como “uma recompensa por ter lido o livro sagrado de capa a capa!” Um feito, temo, do qual poucos de nós podem se orgulhar hoje.
Meus avós, posso acrescentar, eram pessoas saudáveis e fortes, normais para seu tempo.
Faz muitos anos, a morte de meu avô resultou de ferimentos recebidos durante a guerra civil americana, enquanto minha avó, uma velha senhora realmente notável, morreu de pneumonia há quatro anos, com a idade de oitenta e oito.
CAPÍTULO 3
O CASAMENTO E A PRIMEIRA MENSAGEM
Minha mãe casou-se com William Piper de Boston aos vinte e dois anos e nasci três anos depois. Logo após, minha mãe, que sofria dos efeitos de um acidente nas costas que suportava há muitos anos, foi persuadida pelo Sr. Piper a consultar um clarividente cego que, então, atraía considerável atenção por seus notáveis diagnósticos médicos e subsequente curas. Nesta época, meus pais viviam com a família do meu pai na Colina do Farol e, minha mãe, de início relutante, finalmente cedeu às suas súplicas; acompanhada por meu avô, foi à casa desse vidente num domingo, em 19/06. Durante a consulta, quando minha mãe sentou de frente para o clarividente, escutou dele (como mais tarde se verificou) o diagnóstico preciso do seu problema; ela notou que “seu rosto parecia tornar-se cada vez menor, recuando como se ganhasse distância, até que gradualmente perdi toda a consciência do meu ambiente”.
Este primeiro período de inconsciência, como meu avô registrou, durou apenas alguns minutos, durante os quais nada de muito importante ocorreu. Mas perturbada e muito intrigada com sua experiência, apenas depois de muita persuasão minha mãe no domingo seguinte consentiu acompanhar meu avô a uma das reuniões regulares, ou círculos, que o clarividente costumava realizar nas noites de domingo em sua casa. Esses “círculos” eram mantidos com o fim de realizar “curas” e “desenvolver mediunidade latente”. Na reunião que minha mãe e meu avô participaram nesta particular noite de domingo, os presentes sentaram-se na forma de um círculo em torno do qual o clarividente então passava colocando suas mãos sobre a cabeça de cada pessoa, uma por vez. Quando alcançou minha mãe, pouco antes de colocar a mão em sua cabeça, ela sentiu o que descreveu como “calafrios” e viu à sua frente “uma inundação de luz na qual muitos rostos estranhos apareceram”, enquanto “uma mão parecia passar para lá e para cá diante do meu rosto”. Então, ela levantou-se da cadeira e, sem ajuda, caminhou até uma mesa no centro da sala na qual material de escrever havia sido colocado anteriormente. Pegando lápis e papel, escreveu rapidamente por alguns minutos; em seguida, entregou o papel escrito a um membro do círculo e retornou a seu assento.
Recobrando a consciência em poucos minutos, mas não conservando qualquer recordação do que acabara de acontecer, a Sra. Piper ficou consideravelmente surpresa ao ser abordada pouco depois por um senhor idoso que, após se apresentar, disse basicamente: “Moça, sou espiritualista há mais de trinta anos, mas a mensagem que você acabou de me dar é a mais notável de todas as que recebi. Ela renovou minha coragem para prosseguir, pois sei agora que meu garoto vive”.
Esse homem era o juiz Frost, de Cambridge, um jurista veterano e notável que, parece, dirigiu-se (como muitos antes e depois) ao espiritualismo e ao reino do oculto tentando obter uma resposta para a mais velha questão do mundo – aqueles que cruzaram a “grande fronteira” estão para sempre perdidos para nós? Ou se adiantaram abrindo caminho aos que seguirão depois? Pois cada um, homem ou mulher, rei ou camponês, cedo ou tarde deve fazer essa mesma viagem; por sendas diferentes talvez, mas a mesma viagem para todos.
Então, é tão estranho que aqueles de nós que sentiram o ferrão daquela terrível separação, experimentando a perda irreparável da presença e cuidados de algum companheiro muito amado, se esforcem incansavelmente, revirando cada pedra em sua busca, procurando solucionar o enigma que assombra nossos pensamentos de dia e nossos sonhos de noite? A morte é para todos e cada um de nós o fim, a aniquilação do corpo, alma e mente? Ou verdadeiramente para todos nós é a porta de entrada para a vida; uma existência mais ampla, rica e plena do que somos capazes de conceber? Longfellow estava certo, por acaso, quando escreveu essas linhas?
“Não há morte; o que parece isto é transição;
Esta vida de fôlego mortal
É apenas um subúrbio da vida elisiana,
Cujo portal chamamos morte”.
Platão, Swedenborg e Henry James, o velho, agarraram o coração do mistério quando tão convictamente nos disseram que a vida futura é a real; enquanto esta vida aqui, aparentemente tão sólida, tão definida, é apenas um mundo onírico, a sombra do real? Bem, toda especulação é vã, exceto quando nos estimula a um conhecimento maior; então, voltemos à experiência do juiz Frost com a Sra. Piper. Parece que muitos anos antes de sua experiência naquela noite de domingo, o juiz Frost perdera seu único filho em circunstâncias trágicas, que deixaram uma inevitável marca no pai. O filho, na flor da idade, foi ferido fatalmente num acidente e permaneceu em estado semiconsciente por vários meses. Então, morreu efetivamente sem ter reconhecido após o acidente uma vez mais nem o pai nem a mãe.
Parece que foi essa incapacidade do filho em reconhecer seu pai que deixou uma ferida tão profunda e, por mais de trinta anos, esse jurista respeitado, embora tendo permanecido estritamente sub rosa, incansavelmente buscou obter através de vários médiuns algum fraco raio de esperança que seu amado filho houvesse efetivamente “apenas partido antes”. E na noite desse domingo, obteve finalmente o que há tanto tempo buscava – uma mensagem identificada de seu garoto. Segundo a mensagem a lápis que lhe foi entregue pela Sra. Piper, o filho do juiz Frost chamou-o de “pai”; forneceu seu próprio nome e assegurou ao seu pai que ainda “vivia”; mencionou que sua cabeça estava tão clara como sempre agora e, em seguida, acrescentou a esses detalhes a declaração enfática que, se seu pai pudesse conhecer e entender tudo, perceberia que o acontecido fora efetivamente o melhor.
Deste modo, o poder psíquico da Sra. Piper foi “descoberto”. Um relato da experiência do juiz Frost espalhou-se amplamente, tal como essas coisas acontecem. A Sra. Piper logo se viu literalmente sitiada com pedidos de “sessões”. Mas ela mesma, longe de ficar contente com esta notoriedade não procurada, angustiou-se muito com a situação e, salvo os membros de sua família imediata e um ou dois amigos íntimos, definitivamente recusou-se a ver alguém.
Assim, por uma curiosa volta da roda do destino, que conduziu a Sra. Piper até William James, professor da Faculdade de Harvard, um fenômeno psicológico interessante e desconcertante poderia jamais ter sido conhecido pelo mundo. No entanto, como veremos, o destino quis o contrário.
[1] Os três “Rs” são um termo para um programa de educação orientado às habilidades básicas dentro das escolas: leitura, escrita e aritmética (em inglês, reading, writing e arithmetic). Desde a sua criação original, muitos outros autores utilizaram o termo para descrever outros “Rs”. A ortografia não se inclui entre os 3 “Rs” (em inglês escreve-se spelling). (N. R.)