As Fraudes do Médium Mirabelli (Parte 17)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.

Correio Paulistano – Domingo, 18 de junho de 1916, páginas 3 e 4 

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério 

O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador 

No limiar da intrujice – Na pista do “homem misterioso”

O seu encontro • Uma experiência na casa de um redator do “Correio Paulistano” 

O vasto inquérito a que tem procedido esta folha foi dirigido, pessoalmente, pelo seu redator-secretário. – Muitas têm sido as informações por cartas a nós dirigidas; só nos aproveitaremos, entretanto, daquelas cuja inteira veracidade pudemos apurar. – Dada a extensão dos informes concatenados acerca do caso Mirabelli, dividimo-los em capítulos, que irão sendo doravante diariamente publicados, e em dose que, por demasiado grande, não fatigue o leitor. 

Carlos Mirabelli 

Este é, incontestavelmente, o fato local de mais sensação que, nestes primeiros lustres do século XX, figura nos domínios da imprensa paulista, enchendo de paixões e dúvidas, de polêmicas e ironias, as esferas em que se digladiam os sofismas e as afirmações de “respeito público”. Carlos Mirabelli, que foi, até há muito pouco, o obscuro auxiliar de uma casa de calçados, quis um dia, ou por força de necessidades pecuniárias, ou com a só [ilegível] de voar alto pelos intermúndios da glória, aparecer definitivamente no cenário da vida, afim de firmar, com a sua habilidade e a sua audácia, uma sólida reputação de médium e de predestinado. Filho de pais pobres, foi a princípio um modesto aprendiz de sapateiro: depois, como se verá no decorrer dos capítulos desta reportagem, exerceu várias profissões, passando, por fim, para assombro não só dos seus camaradas senão também de inúmeros dos nossos amadores do ocultismo, de simples negociante de lâmpadas elétricas, a pastor de almas e profetas… 

Essas altas responsabilidades, exerceu-as ele, ousadamente, á la groupe aventure, com tal ou qual aprumo e proficiência. A princípio, quando começou de sentir que era instrumentos de manifestações transcendentes, tinha aspectos lúgubres, rilhava os dentes, esbugalhava os olhos e, em grandes convulsos, realizava uma longa série de fenômenos que se sucediam sem interrupção, tous d’une tirade, embasbacando os circunstantes, que, confundidos ante as revelações de tais quilates, tinham calafrios violentos. Ao depois, porém, quando foi de nosso repto e já tomava vulto a fama de “notável médium”, as forças mediúnicas se lhe escassearam, tanto que os fenômenos só a muito custo, muito á la delobée, se manifestavam daí por diante, e isso mesmo em assembléias sabiamente joeiradas de todas as almas diabólicas. Para nós, essa circunstância da rareação imprevista dos fenômenos, mais não era do que uma evasiva, uma capitulação em termos – para nós, não é demais que se frise, bem como o seria para todo aquele que, sem paixão nem parcialidade, procurasse esclarecer os fatos, coordenando-os, estudando-os, analisando-os com ponderação e lógica. Para outros, no entanto, que, seduzidos pelos mistérios aparentes das extraordinárias levitações, se deixam arrastar cegamente para o terreno do maravilhoso, o não aparecimento dos fenômenos, nas seqüências de outrora, se antolha como um resultado circunstancial do meio impróprio em que porventura opera o médium. Assim pensam muitos, obcecados pelo que rezam os textos espiritistas, inclinados a verem as coisas pela rama, tudo aceitando passivamente, nem um exame detido, nem uma inspeção rigorosa, que, desprezando as belezas da aparência, porque nem tudo o que luz é ouro, revolva os mais fundos penetrais dos problemas, dos fatos, das coisas e dos homens. Esquecem-se eles que, acobertados pelas teorias que estudam a vida do espaço, surgem constantemente, em toda a parte, indivíduos pouco escrupulosos que, cônscios da boa fé alheia, se dizem médiuns, missionários, et reliqua, com o exclusivo intento de iludir os incautos, rivalizando em audácia com os criminosos que, de punhal ou carabina em punho, saem para as estradas solitárias a impor aos transeuntes toda sorte de meios extraordinários. 

Ora, o sr. Carlos Mirabelli, que se apresentou, ou antes, que foi apresentado á nossa sociedade por alguns dos seus admiradores, passou a ser considerado, da noite para o dia, como um extraordinário médium, que é a maravilha suprema destes últimos tempos. Não o estudaram suficientemente os nossos cientistas. Passaram-lhe alguns respeitáveis cavalheiros, indiretamente, mercê do concurso de um vespertino local, “valiosos atestados”, graças aos quais o valor mediúnico do “homem misterioso” assumiu proporções assombrosas. E isso apenas foi o bastante para que uma aluvião de crentes se levantassem a aplaudir inconscientemente a pseudo-potencialidade do sr. Carlos Mirabelli. É incrível que um meio culto, como se diz o nosso, seja assim tão facilmente iludido. Bastou, para tanto, que o perspicaz farsante estudasse o ambiente e para ele viesse invocando sacrilegamente, em transes patéticos, as sagradas almas dos que se foram.  

Quem foi que procurou esclarecer o caso? Quem veio pela imprensa, num testemunho honesto, pondo às claras as sortes que iam, como manifestações de além-túmulo, fazendo uma nova corrente de opiniões? Quem, num gesto leal e nobre, procurou fazer luz no noite do mistério, antes de “recomendar”, como prodigiosos, “fenômenos” que apenas são interessantes e que, muito longe de assombrarem e comoverem, apenas se devem destinar a um inofensivo recreio de palcos e salões? Que no-lo respondam os espíritos retos e imparciais. Para nós ninguém se investiu de tão delicada e tão bela missão. Muito pelo contrário – quando lançamos, já fartos de conhecer na essência as suas manobras de prestidigitador, um repto, muito justo e muito a propósito, ao sr. Carlos Mirabelli, foram atordoadores os brados inúteis que se levantaram, numa defesa irrisória e contraproducente, que atestava, à luz deste sol, e às vezes sob “palavra de honra”, que era verídica, indiscutivelmente verídica, a sua formidável potência metafísica… 

Fez-se uma bulha enorme. Todavia, para quê? para que não se chegasse a uma conclusão lógica, única, insofismável. De toda a parte surgiram cartas confirmadoras da vasta força do “homem misterioso”; de toda a parte surgiram atas e atestados comprobatórios da sublime mediunidade do moço botucatuense. Apenas uma pessoa, em todo esse movimento, se conservou de uma imobilidade de estátua; apenas uma pessoa não teve nenhum gesto de revolta ou de aprovação ao nosso ato; apenas uma pessoa não saiu a campo, afim de provar a lisura das experiências do médium em questão, e que acabáramos de reptar para que demonstrasse, a uma assembléia previamente constituída, a natureza dos fenômenos de levitação que tão amiúde e com tanta força provocava nos lares em que se exibia. Essa pessoa foi o sr. Carlos Mirabelli. Apenas esse senhor, que nos visitava constantemente e que aqui no nosso salão, quando se lhe pedia, realizava interessantes experiências, sem que lhe deixassem de assistir os enviados da altura; apenas esse senhor, que, lendo o nosso repto, podia haver chegado a nossa redação e, em dois minutos, ter provado que se não utilizava de truques; apenas esse senhor, nada disse; nada fez, nada nos respondeu, deixando que por ele falassem os que mistificara e que com tanto desvelo o defendiam, comprometendo os seus nomes e até os seus aturados estudos de ciências ocultas. Só oito dias depois, com a tirada diplomática de uma carta epistolar, foi que, como um náufrago que se agarra à tábua de salvação, respondeu ao nosso repto, prontificando-se a realizar, depois de mil e uma evasivas, as celebradas sessões em que comprovaria a existência da sua inestimável força mediúnica; realizou-as de fato, daí a dias, mas nelas, afinal, apenas comprovou ainda uma vez ser habilíssimo truquista, pois que disso mais nos certificamos diante das suas atitudes, preferindo operar na mesa de centro, perto dos espectadores, tão contrariamente aos seus processos iguais, que ótimos resultados têm dado e que são verdadeiramente infalíveis quando a assistência se compõe de velhos e de míopes… 

A uma circunstância que não deve ser taxada de fortuita, mas de feliz devemos a posse absoluta do segredo do sr. Carlos Mirabelli. No decorrer desta narrativa, relataremos, com todas as minúcias, [ilegível] que devemos a fortuna de pôr tanta gente a salvo das artimanhas do pseudo-médium. 

Não duvidamos em absoluto da sinceridade das pessoas que afirmam a existência da “magna força mirabéllica”, aproveitando a oportunidade que se lhes deparou para arrogarem amplos conhecimentos de ciências ocultas, em massudas divagações saturadas de uma documentação supérflua para o caso e emprestada aos modernos cultores das novas ciências. 

Acreditamos que sejam de boa fé, mas em erro. Agora, o que não é também menos verdade é que para muitas pessoas das que se enfeitiçaram pelas levitações por nós contestadas, continuará o sr. Carlos Mirabelli, ainda que ele próprio se confesse ilusionista, como um famoso médium de meter num chinelo todas as coisas maravilhosas narradas pelos Gibier, Esperance, Morin, Ochorowies e muitos outros. Isso pouco nos importa. O que é imprescindível é que para todos “se faça luz na noite do mistério”, em que felizmente não nos encontramos. Tanto assim é que, nesta questão, não visamos absolutamente a pessoa física  mas tão somente a pessoa mediúnica do sr. Carlos Mirabelli. Não nos empenhamos numa campanha de ódio, como um vespertino referiu; empenhamo-nos em por as coisas às claras, porque pensamos com aquele versículo bíblico que reza que se deve dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Nesta missão de jornalistas, apenas procuramos orientar, pelo acerto, a opinião pública; e, quando lançamos o repto conhecido, com a seriedade peculiar ao velho órgão que é o “Correio Paulistano”, não o fizemos em falso, com alardes e espalhafatos – fizemo-lo calmamente, seriamente, honestamente, dando tempo ao interessado de preparar-se para afrontar a cólera dos que intrujara, quando pudéramos, de ímpeto, apontá-lo como um intrujão, pois que estávamos, como estamos, inteiramente senhores dos seus truques, dos processos com que, tão calculadamente, tem sabido tirar proveito da crendice e das superstições dos ingênuos. 

A nós, como todo o mundo o sabe, tanto nos faz que o sr. Carlos Mirabelli seja médium ou sapateiro [ilegível] ou milionário. Como o homem, em si, nada temos que ver. O que, porém, nos cumpre não permitir que ele ande aí a impingir gato por lebre. Se fosse, de fato, médium extraordinário, aplaudilo-a-mos; já, porém, que não o é, por que se não exibe apenas como prestidigitador? Ainda assim alcançaria “sucesso” e poderia, com as suas mágicas, ganhar honradamente a vida. É tempo, portanto, de deixar essas veleidades de ser profeta e de aplicar-se doravante a outro ofício, mesmo porque, post hanc diem, cremos piamente que ninguém mais rezará pela sua cartilha… 

É possível, todavia, que, ainda depois de publicada toda esta nossa circunstanciada reportagem, um ou outro dos que se familiarizaram com as magias do prestimano, invista contra a nossa atitude, defendendo a exuberante mediunidade do “eleito”. Desde já, porém, repetimos que a questão não comporta discussões nem polêmica, e que se a tratamos com tanta “cerimônia” (modéstia à parte), foi por uma questão de mera gentileza; pois que nos são dignos de toda a consideração os cavalheiros que bafejaram com a sua respeitabilidade o “homem misterioso”, que com tanta fleuma os iludiu até ao último momento.  

Importa acrescentar aqui, com vistas aos que duvidam das nossas afirmações, que o “Correio Paulistano”, sendo, como é, um órgão de responsabilidade, não se teria aventurado numa empresa problemática: quando lançamos o repto, foi com a mais firma convicção de que as maravilhas do sr. Mirabelli estavam… por um fio de cabelo.

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Ainda umas palavras, antes de rematar este intróito. No caso em questão, é já, talvez, supérfluo insistir que não se trata de magnetismo, nem de hipnotismo, nem de espiritismo, nem de força mediúnica de espécie alguma. O sr. Carlos Mirabelli, apesar de tudo isso, com os seus gestos, as suas palavras, o seu ar simbólico, as suas longas barbas [ilegível], aqueles longos cabelos revoltos, não deixa, todavia, de sugestionar algum tanto a assembléia, o que torna mais eficazes os resultados das suas sessões. Quando opera, há nele, com certeza, aquele “magnetismo pessoal” de que fala o sr. Lawrence, “resultante da prática, da tensão da vontade, da confiança em si e da expectativa certa do fenômeno desejado. É isso tão certo, continua o ocultista, que onde falha o homem de ciência, sem exercício ou prática do hipnotismo, obtém êxito maravilhoso o ignorante, o iletrado, que adestrou o seu olhar, a sua palavra, o seu pensamento, e já influenciou indivíduos no estado de vigília.” No caso de que tratamos a “certeza na realização do fenômeno é incontestável” e quanto a “homens de ciência deixarem levar a palma por charlatães”, não discutimos: deixamos isso à discrição dos que têm acompanhado esta hilariante comédia em muitos atos. Referimo-nos aqui à sugestão que o pseudo-médium exerce sobre os assistentes, porque essa é uma das causas porque ainda lhe não deitaram os gadanhos nos truques; ficam todos capacitados de que a sala está cheia de almas do outro mundo e, à espera dos fenômenos enunciados, nem dão pela coisa, que é, em verdade, das mais imponderáveis, das mais invisíveis, das mais importantes em todos os inextricáveis mistérios das prestidigitações…  

A sugestão, no nosso caso, é um fator indispensável, pois que o sr. Carlos Mirabelli dela se utiliza com o deliberado propósito de conseguir maior efeito nas experiências. 

O sr. Carlos Mirabelli é apenas um habilíssimo prestidigitador – de uma agilidade invejável, de uma audácia à prova de fogo. Pode-se dizer mesmo que é um produto do meio, pois que só se podia atrever a exibir-se, como senhor de uma potencialidade transcendente, à nossa sociedade e a tudo o que tem ela de escol, depois de aquilatar do grau de superstição com que contaria no círculo das suas operações como um médium extraordinário. Tanta é a crendice, que ainda hoje, mau grado os nossos quatro séculos de civilização, albergamos no fundo do nosso temperamento, que, de ordinário, o primeiro intrujão que se apresenta, consegue impingir-nos gato por lebre, fazendo a América, como entre nós se diz em gíria popular.

 

Tanto é fundada esta asserção, que os nossos jornais, na parte consagrada aos reclames públicos, andam comumente abarrotados de anúncios, em todos os teores e com todos os solecismos imagináveis, de pessoas entendidas nos mistérios do ocultismo e que “curam mazelas e caiporismos, arranjam a vida, cavam amores e casamentos vantajosos, dizem o futuro, o presente e o passado, dão receitas para todos os males do corpo e da alma.” 

Foi mesmo diante desse dilúvio de milagreiros, que um vespertino carioca, fantasiando de faquires dois dos seus repórteres, abriu um consultório do ocultismo numa das ruas da Capital Federal. O sucesso alcançado pelos pseudo-expatriados de Benares ou de outro centro qualquer lá dessas regiões, dos iogues e dos brâmanes, foi descomunal. Quando a polícia chamou à ordem esses novos taumaturgos, rebentou o escândalo; os nossos colegas puseram os pontos nos ii, meteram em letra redonda toda essa “sensacional reportagem”, terminando por dizer que “altos políticos e pessoas de todas as classes sociais” tinham procurado o consultório. Ouviram tanta coisa, tanta miséria, que não desejam a essas minúcias no seu inquérito, mas que “as pessoas que lá foram curar-se podiam reembolsar as quantias com que pagaram a consulta, pois que elas estavam à disposição dos interessados.” 

Esse fato – podemos citar inúmeros outros, – basta para comprovar o estado atual das nossas crenças. Geralmente arrogamo-nos católicos, protestantes, espíritas, livre-pensadores, ateus, e quejanda, mas, no fundo do nosso eu, quantas vezes pomos de lado todos os mandamentos do nosso culto, confessando-nos ecléticos, deixando-nos arrastar pelas baboseiras da primeira cigana imunda que nos bate à porta, oferecendo-se para, com um baralho, repleto de signos cabalísticos, nos desvendar todos os mistérios que nos rodeiam a vida, desde que abrimos os olhos para a luz até essa hora de indizível comoção em que os cerramos para todo o sempre. 

Ora, num meio assim, um prestimano qualquer, que se apresente com habilidade, e que se inculque portador de força mediúnica, alcançará inquestionável êxito, passando à história com uma soma de atos e atestados valiosos, se, por qualquer circunstância fortuita, não lhe descobrirem a causa material das suas maravilhas. 

Estamos num caso desses. Se se não se descobrisse o truque do pseudo-médium em questão, amanhã, quando menos se esperasse, estariam ao os seus adeptos a escrever obras científicas sobre o prodígio, de modo que, no futuro, talvez fosse o modesto prestimano de hoje citado, por doutos a honestas notabilidades em assuntos de ocultismo, como uma das “mais extraordinárias maravilhas destes últimos séculos…” 

Santa ingenuidade a nossa! A tempo, porém, salvamo-nos desse formidável fiasco. No ridículo apenas caímos, os de hoje, perante o sr. Mirabelli, que a estas horas, na sua consciência, deve rir-se gostosamente das peças que pregou, gozando, se bem que por dias efêmeros, de uma popularidade ruidosa que fez eco até na Capital da República. Mais tarde, quando, como vai sendo moda entre aqueles que se deleitam em narrar coisas íntimas, o arguto pseudo-médium ditar, àquele mesmo irredutível crente que com tanta solicitude lhe escreveu as cartas com que se apresentou à imprensa, a “sensacional história da sua vida”, há de ele, fatalmente, num requinte de [ilegível] de novela, soltar-lhe, na venerável presença, um infinito número de excelentes gargalhadas… 

Os primeiros ecos 

Um dia, vai para dois meses, o secretário de nossa redação, que entrara da rua, tivera uma exclamação desusada: 

– Sabem? Está em S. Paulo, segundo me disseram agora, um homem que dizer ser extraordinário.  

E contou-nos o que por aí, com um exagero de 99 por cento, se dizia do homem que, da altura de um médium notável, de um predestinado, de um quase profeta, caiu, numa queda repentina que lhe desfez como por encanto a fama de Messias, no ridículo de um audacioso charlatão, que, com o seu arrojo e os seus trabalhos mágicos, iludiu a curiosos, a crentes e a cientistas, os quais se deslumbraram diante dos seus gestos teatrais com a mesma ingenuidade com que uma criança queima os dedos na chama de uma vela.  

Depois de contar o caso, tal como lhe transmitiram, voltou-se o nosso redator-secretário para um dos seus auxiliares: 

– Vou convidar o “homem” para fazer uma sessão aqui; você estudará a “coisa”, entrevistando-o, e fazendo uma reportagem interessante.  

Foi só. Nunca mais, nesta casa, se falou da estranha personagem. Em parte alguma ouvíramos mesmo qualquer coisa que denunciasse a existência do prodigioso espírita, que, com um simples olhar, um aceno, um espirro, conseguia transportar cadeiras, mover caveiras, acender lâmpadas, o diabo a quatorze. Uma tarde, porém, á hora do jantar, disseram-nos: 

– Uma novidade!

– Que é?

– Esteve em casa dos drs. Capote Valente e Almeida e Silva um médium que aí anda a que fez prodígios.

– É, talvez, o homem de quem falou o nosso secretário. [Ilegível] de altura, modesto, longas barbas, uma fisionomia macerada?

– Isso mesmo.

– Bem, precisamos descobri-lo, dissemos. 

Com esse intuito, no outro dia, dirigimo-nos à casa do dr. Almeida e Silva. Soubemos, então, na residência do ilustre ministro, que, de fato, o indivíduo em questão lá estivera. Chamava-se Carlos Mirabelli; fizera uma experiência muito interessante, na qual se salientaram os fenômenos de levitação. 

– A coisa é verdadeira, pensamos. Mas onde se encontrava esse médium? Quando nos retiramos, íamos dispostos a perguntar por ele a todo o mundo. Começavam, então, os jornais do Rio, em correspondências daqui, a falar nos fenômenos, o que mais nos aguçara a curiosidade de repórter. Fizemos algumas pesquisas, numa das quais ficamos sabendo que o farmacêutico Assis mantinha relações com o famoso médium. Predispunhamo-nos a procurá-lo, quando nos disse o sr. Honório Ferreira, sogro do nosso companheiro Nuto Sant’Anna, e que por sua vez andava também à procura do sr. Carlos Mirabelli, que o encontrara e mais que, em sua residência, prometera ele realizar uma sessão. Pedimos então ao nosso poeta que, uma vez em relação com o médium, dele conseguisse algumas informações, e que o convidasse a vir à redação do Correio. Em seguida, demos conta disso ao secretário desta folha, o qual, por seu turno, chamando o Nuto Sant’Anna, lhe disse: 

– Agora é a ocasião de noticiarmos o caso; converse bem com o homem e convide-o para que venha até cá. 

Em casa de Nuto Sant’Anna 

No outro dia, aquele nosso companheiro, com tremuras na voz, vibrando como uma pilha elétrica, dizia ao secretário: 

– Assombroso!

– Viste o homem?

– Vi. Apenas não assisti a sua sessão. Quando, o chegar da rua para o jantar, seriam 18 horas e pico, se me deparou a porta de casa um automóvel, tive um pressentimento: “Está aqui o Assis”, pensei comigo, e “trouxe com certeza o espírita”. Uma tremura me subiu pelas pernas acima; meu coração deu pulos furiosos. Entrei. Logo que defrontei o longo corredor que liga a sala de visita à de jantar, ouvi vozes e passos de minha mulher, que me vinha ao encontro. 

“– Está aí o homem, disse-me ela.

“– Que tal?

“– Extraordinário!” 

Cheguei à sala de jantar. O lustre tinha, contra o costume, todas as lâmpadas acesas, a mesa fora arrastada para a frente e, para cá, do lado do armário, estavam sentados em linha, da esquerda para a direita – minha sogra, d. Adelaide Barreto; minha mana Leila, meu sogro Honório Ferreira, o Assis, um afilhado de meu pai, Napoleão, e o sr. Carlos Mirabelli.  

– E você não viu nada?

– Nada. Logo que os divisei, depois dos cumprimentos, disse-me o “médium”:

“– Meu pai saiu daqui neste instante.”  

“Interveio o Assis:

“– Vê se consegue fazer mais alguma coisa.”

“– Não, respondeu-lhe, ele já se despediu e não gosto de desobedecê-lo. Não faltará ocasião para que o sr. assista a estas manifestações.”

– Então, não fez coisa alguma?

– Absolutamente. Mas entabolei conversa com o sr. Mirabelli, que é um homem simpático, inteligente, e que fala muito mal. Tem assim um tipo que lembra o do Nazareno. Disse-lhe eu, então, que era redator cá do jornal; pedi-lhe uma entrevista e convidei-o para vir dar aqui uma das suas sessões.

– E que disse?

– Quanto à entrevista, sim, amanhã, às 14 horas; quanto à sessão, não é possível porque, acrescentou ele, “aqui o ‘Correio Paulistano’ está cheio de maus espíritos, o que pode prejudicar a experiência”.

– Mas que fez ele em sua casa?

– Coisas extraordinárias. A uma caixa de sapatos, vazia, em equilíbrio sobre um copo, impeliu um movimento de redação, que diminuía ou acelerava ao seu mando. Note-se que isso, e o mais, era feito, não por ele, mas pelo “espírito de seu pai” que, como disse, era “adiantadíssimo”. A seguir, fez meu sogro escrever “uma oração” num bocado de papel, que, dobrado em tira, foi introduzido numa garrafa. E enquanto, a uma ponta da mesa, que toma todo o centro da sala, os presentes se justavam numa linha, de mãos dadas, para estabelecer a “corrente”, o médium na outra ponta, depois de concentrar-se, começou a operar. Disse que seu “pai se achava então dentro da garrafa”, e que nela se concentrassem os presentes, para auxiliá-lo. Nisso o papel, com o espanto de todos, começou de levantar-se até sair da garrafa, repetindo-se o fenômeno por três vezes.

– Mas não viram os espíritos?

– Isso não, apesar de haver o médium preparado o terreno.

– Preparado o terreno?

– Positivamente. Explico-me. A sessão era para ser no quarto de minha sogra, que se encontra doente, como sabes; mas como o aposento era acanhado para a experiência, resolveu o médium realizá-la na sala de jantar. Achou esta boa, mas um tanto escura. Acenderam por isto todas as lâmpadas do lustre – umas de 16 e outras de 30 velas. Depois puxou ele a mesa, puxando uma das extremidades desta, em que operou, para mais perto da parede, isto é, um pouco para mais longe dos circunstantes. Em seguida, estabelecida a “corrente” e já à hora “de operar, disse à nossa cozinheira, uma preta gorda e desempenada, que, não acreditando no “mágico”, como dizia ela, por “ter visto coisas melhores, num circo de cavalinhos” ficara de pé, encostada à porta: – “Aí não pode ficar; se quiser, sente-se”.

– Mas que tem isso com a tal “preparação do terreno”?

– Chegarei lá. É que, logo que disse isso à Pulcina (a nossa cozinheira tem esse nome, mais lindo que o de muitas pastoras e princesas de baladas e romances), perguntou ele a todos os circunstantes, um a um, se possuíam boa vista; e todos a tinham estragada – uns míopes e outros de vista cansada – menos a Aurora e a Leila, que a conservam excelente. Disse, então, a estas o sr. Carlos Mirabelli:

“– Vou apagar esta lâmpada (a que estava em frente delas), para que, ficando menos iluminado, a senhora consiga ver o espírito de meu pai.”

– Agora compreendo. E nem assim viram coisa alguma?

– Nada, apesar do médium ter-se exaltado quando o mostrava a minha mulher e a minha irmã, as quais, de olhos arregalados, olhavam inutilmente o espaço.

 

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Clichê estampado duas vezes pela “Gazeta”, a primeira no dia 19 de maio, com os seguintes dizeres:

 

“A NOSSA GRAVURA REPRODUZ UMA DAS CENAS QUE PRECEDEM AS EXPERIÊNCIAS: O “MÉDIUM” DEIXA-SE EXAMINAR PARA VER QUE NÃO TRAZ OBJETOS QUE POSSAM DAR LUGAR A “TRUQUES”. NA FOTOGRAFIA VÊEM-SE OS DRS. CARLOS DE NIEMEYER, MUCIO TEIXEIRA E SYLVIO DE CAMPOS, ALÉM DE OUTRAS PESSOAS”; 

E a segunda, a 31 do mesmo mês, com esta declaração: “Fotografia que nos foi gentilmente cedida pelo dr. Carlos de Niemeyer, cujo retrato se vê na mesma. O ilustrado clínico examina o sr. Mirabelli, tendo verificado que ele não trazia objetos que pudessem dar lugar a “truques”. 

Como seja nosso escopo ir, no correr desses comentários, restabelecendo a verdade dos fatos, cabe aqui uma explicação a propósito da fotografia acima reproduzida. É que não representa ela o momento em que Mirabelli realizasse qualquer de suas sessões. A coisa é bem outra, a coisa se conta por outra forma, segundo narram as próprias pessoas que constituíram esse grupo: no dia seguinte ao em que realizara uma experiência mirabéllica, o fotógrafo, sr. Valério Vieira, convidara várias das pessoas que haviam estado presentes a tal sessão, para, em grupo, as fotografarem em torno do ilusionista, cuja posição teatral foi pensadamente escolhida por aquele conhecido artista. 

E, pois, se a nossa colega vespertina neste caso não foi ludibriada, é bom ver que… deixou de ser perfeitamente exata. 

Para amanhã:

Mirabelli no “Correio Paulistano”

O nosso secretário assiste a uma

experiência do prestimano

Duas sessões em o nosso salão nobre

O “truque” é percebido por dois redatores desta folha

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Começam as pesquisas para o completo desencanto do bruxo

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