AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 25)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.

Correio Paulistano – Segunda-feira, 26 de junho de 1916, páginas 3 e 4 

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério 

O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador 

Os nossos “fenômenos de vidência” 

Mirabelli prestidigitador e palhaço de circo de cavalinhosDe pelotiqueiro a médiumNinguém é profeta em sua terra… 

UMA CARTA APÓCRIFA A UM VESPERTINO 

MIRABELLI ATRAVÉS DA NOSSA MEDIUNIDADE 

Uma das fases extremamente curiosas das proezas da “mediunidade” do sr. Mirabelli, a que ainda não aludimos, mas que constituirá um capítulo especial da nossa vasta e sensacional reportagem, é a que se refere aos “fenômenos subjetivos”, ou melhor, “fenômenos de vidência”. 

Quem quer que seja que tenha presenciado as habilidades do famigerado “médium”, que revolucionou a ciência, escoiceando a física com as suas surpreendentes manifestações, sabe, como nós, que Mirabelli precede os seus trabalhos de uma série de fenômenos de vidência, ora invocando o espírito complacente de “papá”, pronto, na maioria das vezes, a participar das intrujices do filho, ora atraindo de novo às misérias terrenas deste vale de lágrimas as almas fiéis dos antepassados daqueles que se mostram desejosos de conhecer a sua “força mediúnica”. 

As cabalísticas sessões mirabéllicas iniciam-se invariavelmente pela invocação de um espírito: o de “papá”, na falta de informações seguras sobre os antecedentes do consultante, o de um antepassado deste, com melhor proveito para ele, no caso de êxito das suas investigações anteriores, pois o finório “cavador das manifestações espíritas” anda constantemente munido de uma caderneta, em cuja capa, para o lado de dentro, colou irreverentemente a fotografia do seu velho pai. E nesse canhenho são lançados os nomes e as residências dos que o convidam para as suas exibições. 

O resto… o leitor já compreendeu. 

Se quiséssemos intrujar o embusteiro, tal qual como ele fez quando levou a sua audácia ao ponto de vir a esta redação impingir-nos gato por lebre, com grande menosprezo pela argúcia dos que aqui trabalham, nós iríamos agora buscá-lo novamente pelos queixos até ao nosso salão de honra, para reproduzir-lhe, sem a mesma encenação, é verdade, mas com idêntica nitidez, os seus “fenômenos”, quer objetivos, quer subjetivos.  

Iniciaríamos os nossos trabalhos pela invocação do famoso espírito de “papá” e transmitiríamos a Mirabelli, tal qual como ele impinge às suas vítimas, toda a profunda mágoa que reside naquele coração de pai pela ingratidão do filho rebelde que nem sequer o eterno descanso lhe respeita. 

E lhe diríamos mais, a título de “fenômenos de vidência”, tudo quanto sobre a sua vida de expedientes e de cavações nos havia transmitido o espírito alado de seu desditoso “protetor”. 

Diríamos, por exemplo, que Mirabelli, refratário aos salutares ensinamentos dos seus mestres, gozava freqüentemente as aulas de escola em que o matricularam, em Botucatú, para escalar os muros dos quintais e depredar os arvoredos; diríamos que, lançando às ortigas, num gesto de criança mal-criada, o martelo e a sovela, instrumentos do ofício em que o iniciara seu progenitor, abalara para Itatinga, onde exercera sucessivamente as funções de leiteiro e tratador de animais; que, aparecendo naquela cidade o prestidigitador Vicente Pacoé, este o industriara nos primeiros “passos” da arte de iludir os menos espertos. 

Diríamos mais, atribuindo a indiscretas revelações do seu “papá”, que o hoje famoso Mirabelli, objeto da investigação de um grupo de cientistas, partira de Botucatu, entre “araras” e malabaristas, investido das funções cumulativas de palhaço e prestidigitador, exibindo-se, com medíocre sucesso, no picadeiro de uma companhia de cavalinhos. 

Iríamos além, seguindo-lhe os passos na existência acidentada, ora como pastor protestante, arengando às massas e vendendo Bíblias, cujos textos não chegou a assimilar; ora como falso empregado da Companhia de Gás, colocando camisetas e chaminés de vidro, fornecidas por uma casa da rua Quintino Bocayuva, o que lhe valeu a entrada na maioria das residências de S. Paulo; não ocultaríamos a sua qualidade de negociante de artefatos de eletricidade, num modesto estabelecimento ao largo do Arouche; a de “engenheiro eletricista” da Light, segundo a carta do diretor do “Argus”, já publicada, e a de charuteiro, na rua da Boa Vista, fato este de interesse capital, e que, pelo imprevisto dos seus lances, vai merecer as honras de um capítulo. 

Prosseguiríamos, obtendo do complacente espírito de “papá” novas e sensacionais revelações sobre os antecedentes do filho desrespeitoso, quer como “encostado” da Sapataria Villaça, percebendo 80$000 para proclamar às multidões, num carro-reclame que circulou durante o tríduo carnavalesco, a excelência daquele calçado; quer como caixeiro da Drogaria Queiroz, ou como inventor de um filtro específico contra o bacilo de Eberth, quando foi da epidemia da febre tifóide! 

Diríamos, finalmente, que o falido negociante de calçados do Largo do Riachuelo, cujo processo ainda se encontra pendente de solução, escolhera para teatro das primeiras suas experiências os sórdidos conventilhos da Rua do Ypiranga, apavorando o mulherio com as suas habilidades de escamoteador.  

Em seguida a essa série de pasmosas revelações, que constituem a “brilhante fé de ofício” dos mais extraordinário “médium” dos tempos modernos, executaríamos os fenômenos chamados objetivos, extraindo o lápis da garrafa, acendendo lâmpadas, fazendo girar copos e caixas de sapato sobre gargalos de garrafas, tudo isso para convencê-lo que seu “papá” estava presente.  

E o sr. Mirabelli, assombrado ante a “nossa prodigiosa força mediúnica”, reconhecendo no seu íntimo toda a verdade contida nas revelações dos “nossos fenômenos de vidência”, não teria outro remédio senão reconhecer que lhe apreendemos admiravelmente os processos que costuma empregar e que, certo, o levariam à posteridade, se não chegássemos a tempo de opor-lhe embargos à ligeireza.  

MIRABELLI PRESTIDIGITADOR E PALHAÇO DE CIRCO DE CAVALINHOS 

No dia em que apareceu o nosso repto ao ousadíssimo intrujão, recebíamos à tarde a seguinte carta anônima, que deve agora ser publicada, como documento interessante que é. Reza ela, sem emissão de uma vírgula: 

São Paulo, 18, 5, 1916. – Ilmo. sr. redator do “Correio Paulistano”, – Respeitosas saudações, – Não é de minha importância tratar a respeito do sr. Mirabelli, mas como não posso ver um italiano querer iludir-nos, lançando mãos de meios ilícitos com o fim de ganhar suavemente sua vida, venho aqui contar-lhe quem é esse que hoje se intitula um grande “MÉDIUM”.  

Ele não passa de um hábil prestidigitador, pois a sua vida em criança era bater o martelo na sola, ajudando o seu pai, que era sapateiro, e, como tinha queda para trabalhar no circo, entrou numa companhia de cavalinho, onde começou a sua carreira. Tudo isso se passou em Botucatu, para onde ele foi em pequeno. 

Não é de hoje que o sr. Carlos disso trata. Posso assegurar-lhe que tudo o que ele tem feito é por meio de qualquer instrumento ou habilidade. Desde criança que ele isso fazia; sempre procurava enganar-nos, fazendo-nos engolir um tostão e depois o fazia sair por outro lado.  

Quem lhe escreve estas linhas é um leitor do seu “Jornal”, que, não assina para que o sr. C. Mirabelli não se zangue e venha tirar alguma desforra por meio de sua “CHANTAGEM”. – Um que não cai no BLEFE – Botucatuense. “ 

Diante dessa denúncia, escrevemos imediatamente ao nosso dedicado e ativo correspondente em Botucatu, pedindo-lhe que sindicasse a respeito, informando-nos com a maior brevidade sobre tudo o que viesse a saber. Três dias depois recebíamos a seguinte resposta: 

“Botucatu – 20/5/1916 – Ilmo. sr. João Silveira Filho – “Correio Paulistano” – S. Paulo. – Amigo e sr. – Em resposta ao seu pedido de informações sobre o sr. Carlos Mirabelli, cumpre-me dizer-lhe que o mesmo é filho de um sapateiro, Luiz Mirabelli; não teve aqui profissão definida e entrou para a companhia do Circo Clementino, como prestidigitador; entretanto, nunca trabalhou aqui na cidade. Junto uma pequena nota do “Correio de Botucatu” de hoje, que julgo ser do seu interesse.  

Permanecendo ao seu dispor, tenho a honra de me subscrever, de. v. s., amigo admirador, etc.” 

Aliás, o próprio Mirabelli não nega que houvesse sido PALHAÇO E PRESTIDIGITADOR de circo de cavalinhos. Várias pessoas, entre as quais os ilustres drs. Carlos de Niemeyer e René Thiollier, lhe ouviram essa declaração. 

O intrujão trabalhou não em uma só, mas em várias companhias do circo de cavalinhos, como PALHAÇO e PRESTIDIGITADOR, tendo percorrido muitas cidades do interior do nosso Estado, como patentearemos em outro capítulo do nosso inquérito, quando nos ocuparmos do seu primeiro professor na arte de escamoteação – um velho e conceituado prestidigitador italiano. Contaremos, então, por miúdo, a história de uma tremenda pateada com que os espectadores de certa cidade do interior “saudaram” uma sua experiência de… telepatia… 

Como refere o sr. Sammarco, o prestidigitador vulgar a que o “Correio Paulistano”, só por muita gentileza e condescendência, tem dado o qualitativo de HÁBIL, executava, “aliás sem despertar grande interesse da parte dos assistentes, as mesmas sortes com que agora, a profanar a doutrina espírita, logrou impor-se a certos cavalheiros de honrada boa-fé e de “boa-fé” velhacamente aparentada.” 

NINGUÉM É PROFETA EM SUA TERRA 

Com a carta, que inserimos acima, o nosso solícito correspondente nos enviou um recorte do “Correio de Botucatu”, de 20 de maio, e que assim comenta os “milagres” do taumaturgo de fanearia:

“Nós sempre havemos de fazer fiascos. Como um eco respondemos aos louvores que alcançam os gênios, mas se esses gênios surgirem entre nós, iniciando a sua carreira, torcemos o beiço, damos um jeito no ombro e mandamo-los pregar noutra freguesia. Foi o que sucedeu com um nosso conterrâneo, com o sr. Carlos Mirabelli. Os botucaenses estavam acostumados a vê-lo através das suas diabruras, na infância travessa que aqui levou, ora andando às frutas dos quintais, ora largando pelos muros e cercas dos vizinhos farrapos do fundilho, como levado da carepa que ele era. Passam-se os anos, o Carminuccio se fez homem, e arranja, pela Paulicéa, umas barbicas de azeviche, longas, à nazareno: enverga um fraque “dernier-eri”, cava uma gíria de engrolar pascácios e vem rever o ninho amado… Recebemo-lo como uma pilhéria do destino e o barbadíssimo maitaca andou por aí a perder o seu latim. Ninguém o levou a sério, nem acreditou nos seus extraordinários conhecimentos mediúnicos. Ele, todavia, como auto-propagandista, contava mirongas, cousas do arco da velha, que sabia fazer. Cansado da descrença dos seus conterrâneos, sumiu-se daqui. E agora, na capital, é o homem do dia, ele, o piloso, o guedelhudo Mirabelli. Os jornais enchem colunas com as suas diabruras e discutem os dotes sobrenaturais do nosso barbudinho… Acham algumas folhas que ele é um gênio: outras, que é um fino prestidigitador. A verdade é que o Carminuccio, com as suas exibições, está derrotando o velho Brandão, no epíteto de popularíssimo… Como botucatuense, ele deve andar de olho com a nossa gente, que não o recebeu como devia. Profeta ele não o foi na sua terra… Tempos virão, porém, em que as cousas entrem nos seus eixos. E, então, quando o barbicas aqui aportar de novo, em massa, a população de Botucatu recebe-lo-á como a um herói; po-lo-á num carro, vivando-o, faustosa, álacre o irá repetindo o verso de Camões: – “Ditosa terra que tal filho teve!” E quando o Mirabelli morrer, o nosso povo o perpetuará num bronze, que poderá ser colocado junto ao “artístico” obelisco que existe nesta à memória de Anita Garibaldi, a heroína dos pampas. No pedestal de bronze poderão inscrever, como indelével preito, o final do soneto que o descarado B. Lopes dedicou ao mais burro dos mortais: – “Bonito herói, cheirosa criatura!” 

MIRABELLI NÃO É TOMADO AO SÉRIO – UMA CARTA APÓCRIFA 

Sob o título “UMA EXPRESSIVA CARTA DE SOLIDARIEDADE DO PRESIDENTE DE UMA SOCIEDADE ITALIANA”, publicou há dias um vespertino a seguinte notícia: 

“Signor direttore della… – Col cuore proso dalla plu viva commozione, mi rivolgo Allá s. v. illma, perehé voglia renderei interprete dei miei sentimenti di solidarietá col suo giornale e l’ammirazionne pel signor. C. Mirabelli. 

M’é caro manifestara questi miei sentimenti, specialmenti in um momento in cui dus giornall, il “Correio Paulistano” o il “Fanfulia”, muovegno uma campagna denigratrice contro um uomo che iddio velle dotare di spirit sublimi.  

Io, da incompetente e modesto como sono, mi sento forte inquesto momento di portare la mia sincera testimonianza nella dibattuta questiono. Ecco di che si tratta: Um mio figliuolo, a nome Corlolano, parti il 27 maggio 1915 per l’Italia, a compieri il servizio militare, como risulta al consolato italiano e da lettere publicate dai giornali cittadini. Mio figlio preso parti a vari combattimenti e fu due volte citato all’ordine del giorno del colonnello del suo reggimento, cav. Francesco Filleci, il 18 ottobre 1915 fu premosas caporale. Il mio caro Coriolano mi scriveva spesso; ma, adesso, da circa i mest no avevo su notizie. Si figura la mia ansia e quelia della mia famiglia! Avendo letto cio che con santa veritá e glustizia pubblicava la …… mi [ilegível] dal professor Mirabelli, [ilegível] egli, done avermi guardato a lungo, com voce comossa mi disse: “Mio caro amico, vostro figlio é morto! S’é immolato por la patria”! 

Mi allontanai turbato, ma un pó incrédulo. Ieri, con sommo dolore ho ricevuto uma lettera di mio nipote. Pasceri Antonio, spedita da Mileto, in provincia di Cantazaro, com cui mi ai communica che mi il amato figlio á morte il 12 febrato acorso in un combattimento sul monte S. Michele! 

Io, benché addoloratissimo, ringrazio il professor Mirabelli, che m’aveva preparato l’anima alla triste notizia.  

Puó pubblicare questa lettera, ch’é tutta veritá. 

Con ossequi – Suo devmo. Antonio Sammarco, presidente della Cooperativa Italiana, Societá di Lavoro”.  

Essa carta é apócrifa, não foi escrita por aquele cavalheiro, como ele próprio o afirma, na missiva que a seguir estampamos, traduzida: 

“Ilmo. sr. redator do “Correio Paulistano” – Capital – Ao chegar de Santos, onde estive em uso de banhos de mar, mostraram-me um número da …… vespertino que se publica nessa capital, número datado de 20 deste mês, onde vi estampada uma carta dirigida à mencionada folha, e que traz como assinatura o meu nome. Essa carta, sr. redator, é apócrifa. Abusaram de meu nome e mistificaram o jornal que com tanta facilidade a publicou.  

Não tenho nenhum filho no teatro de guerra européia, pela razão muito simples de que ainda são todos menores. Além disso, devo aproveitar o ensejo para dizer-lhe que jamais tomei ao sério a pessoa de Mirabelli, a quem conheço de longa data, ou seja desde o tempo em que esse indivíduo trabalhava no “Circo Teatral”, como palhaço e prestidigitador, executando, aliás sem despertar grande interesse da parte dos assistentes, as mesmas sortes com que agora, a profanar a doutrina espírita, logrou impor-se a certos cavalheiros de honrada boa fé e de boa fé velhacamente aparentada.  

Se eu tivesse sido, de fato, consultado a respeito do indivíduo em questão, teria dito, pois, o que acima expressei, e mais ainda que, não muito remotamente, o vi ocupando-se de colocar “camisetas” de gás e de fazer outros pequenos serviços que com caso mister se relacionam em casos particulares, nesta cidade. Nunca, porém, como afirmou a carta que não assinei e que a …… publicou, nunca, porém, afirmaria à minha solidariedade a reprovável atitude daquele jornal, nem muito menos ligaria meu nome a esse caso, senão para atestar com o que sei a mistificação de que estava sendo vítima a população de S. Paulo.  

Certo de que v. s. publicará esta no seu conceituado jornal, cuja nobre campanha calorosamente aplaudo, antecipo agradecimento e assino-me, – Atto. abg.

(a) Antonio Sammarco, presidente da “Societá di Lavoro” Cooperativa Italiana.  

E ASSIM SE ESCREVE A HISTÓRIA. 

* *

MIRABELLICO 

Colendos mestres do ocultismo: sinto

Que em vós – da ciência esplêndidos modelos –

Jaz, afinal, como um vulcão extinto,

O misterioso mundo dos cabelos…

Hoje conhecem todos (eu não minto),

A mãe das sombras e dos pesadelos;

Eram de um fio só, porém, retinto,

Novelos e novelos e novelos!…

Posto que esta fraqueza não agrade,

Eu sem reservas vitorioso afronte

De certos parvos a credulidade.

E nas rimas satíricas debuxo

Todo o incomensurável desaponte

Dos que acreditam no papá do bruxo.

João das REGRAS. 

Para amanhã: 

MIRABELLI PERVERSO

Intrigas e perfídias do pseudo-médium

Casa Branca vai presenciar as proezas mirabéllicas

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