As Fraudes do Médium Mirabelli (Parte 18)
Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.
Correio Paulistano – Segunda-feira, 19 de junho de 1916, página 3
No mundo das maravilhas
Fez-se luz em a noite do mistério
O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador
O “Jornal do Commercio” comenta as experiências provocadas pelo “Correio Paulistano”, com a afirmativa de que, ainda desta vez, a imprensa realizou o lema de Guttemberg: “Fiat lux”.
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O prestimano na redação desta folha • O nosso secretário assiste a uma sessão do pseudo-médium
Antes de prosseguirmos da publicação da nossa interessante reportagem sobre o caso Mirabelli, vamos oferecer aos leitores os judiciosos conceitos emitidos pelo velho e respeitabilíssimo órgão, que é o “Jornal do Commercio”, a propósito das experiências a que o “Correio Paulistano” obrigou o audacioso prestimano de Botucatu, mediante a rigorosa fiscalização que se fazia mister para evitar o embuste:
“Esclareceu-se o caso Mirabelli – ‘entidade à parte’, como lhe chamou um jornal de S. Paulo, personalidade extraordinária que não passa, afinal, de um hábil prestidigitador.
Ainda desta vez a imprensa realizou o lema de Gutemberg – ‘Fiat lux’. A luz se faz, graças ao jornalista do ‘Correio Paulistano’, que reptou Mirabelli a repetir as suas experiências diante de um júri, reunido na redação do tradicional órgão republicano.
O mago aceitou o desafio, certamente por honra da firma. A primeira sessão foi nula, porque Mirabelli, apesar de duas horas de concentração, não logrou atingir o estado de êxtase, mediunidade ou coisa que o valha, que dizia necessário para reaparecerem os mirabolantes fenômenos com que vinha espantando o público e dando matéria para se encherem colunas e colunas de jornais, ilustradas pelo indispensável retrato, já se vê, a mais as fotografias dos espíritos invocados e que, por sinal, compareciam aos grupos…
Na segunda sessão, ontem efetuada, a concentração de Mirabelli nada produziu tampouco. Veio, porém, em seu auxílio, o jornalista que o desafiara, reproduzindo-os e fazendo uma demonstração prática dos truques empregados pelo destríssimo prestimano que embasbacara tanta gente.
E foi uma vez a tal ‘entidade à parte’.
O caso Mirabelli poderia servir de lição às inúmeras pessoas que emprestam qualidades maravilhosas nos finórios que periodicamente nos visitam, repetindo milagres, numa proporção de fazer inveja ao mais milagroso dos santos…
O caso serviria de lição, se não fosse uma fatalidade inata, dominadora, desses espíritos serem empolgados por tudo quanto sai da realidade objetiva, ou das possibilidades científicas – numa incorrigível ânsia de mistério e de sobrenatural, que os condena a ser eternos ‘paios’ dos Mirabelli e ‘tutti quanti’…”
Mirabelli no “Correio Paulistano”
Chegamos à redação às 15 horas, eu fosse uma hora depois da aprazada para a entrevista prometida pelo pseudo-médium. Assim que nos viu, o dr. Mario Henriques, que engraxava os sapatos a porta da administração, conversando com o Ariosto de Azevedo, nosso colega do “Estado de S. Paulo”, disse-nos:
– Procurou-te aqui, há pouco, um espírita, que por aí anda. Já esteve lá cima; falou que viu espíritos por toda a parte. Esse homem dizem que faz coisas do arco da velha, e até que acende lâmpadas. Eu, para acreditar, só vendo: há uma certa substância com que se acendem lâmpadas, e eu cá não vou nisso…
Subimos, em seguida, para a redação. Estávamos escrevendo (nesta mesma mesa em que narramos esta longa história verídica), quando, descerrando-se a porta, surgiu o sr. Carlos Mirabelli. Levantamo-nos, cumprimentamo-lo, convidando-o a entrar para o
Nosso salão nobre,
Que é amplo e confortável. Para ele dão acesso (aqui fica esta descrição, para que o leitor aprecie depois as nossas pesquisas), duas portas – uma logo em frente à escada de entrada, e outra em sentido lateral a essa, abrindo para o corredor interno. Por elas divisa-se perfeitamente tudo o que se passa no seu interior. Dentro, em frente, há uma longa mesa, cujas pontas ficam exatamente em frente às duas portas. A um dos seus cantos, um sofá e cadeiras de couro da Rússia. Para o outro lado, a secretária do diretor do jornal. Vasos de flores, estatuetas, quadros de políticos, cortinas e tapetes completam a ornamentação da sala.
Entramos. Tomamos assento à ponta direita da mesa. Ficamos ao lado direito da mesa; o médium, no lugar de honra. Estendendo as laudas de papel, interrogamo-lo e compusemos com as suas próprias palavras,
Uma longa entrevista,
da qual, por curiosidade, destacamos os seguintes tópicos:
“Em princípio, tratando exclusivamente do homem, podemos dizer que se chama ele Carlos Mirabelli. Nasceu em Botucatu, neste Estado, no ano de 1883, sendo filho do sr. Luiz Mirabelli e d. Christina Scacciota Mirabelli, ambos de nacionalidade italiana. Conta, pois, 33 anos de idade. É um tipo insinuante, de altura mediana, magro, cabeleira e barbas negras, fisionomia. Os seus olhos grandes, de um azul claro e brilhante, são vivos e penetrantes.
Carlos Mirabelli estudou até a idade de 15 anos no grupo escolar da cidade natal. Mais tarde, freqüentou, durante cerca de seis meses, o Colégio Cristóvão Colombo, desta capital. Uma forte saudade de seus pais, que jamais pôde olvidar um único instante, levou-o a abandonar os estudos naquele estabelecimento. Regressou, por isso, ao seio da família, onde reentrou a fruir o amor e o carinho dos seus pais. Teria então 20 anos. Era preciso fazer pela subsistência. Assim refletindo, pensou em colocar-se, pensou em adquirir meios com que pudesse manter-se, auxiliando também aos seus progenitores.
Animado por esses ideais, fez-se viajante, tratando de negócios seus e de outros, como representante de algumas casas comerciais pelo interior de S. Paulo e outros Estados vizinhos. Neste mister, empregou-se ativamente até aos 23 anos, idade em que se transportou para esta capital, onde fixou residência. Isto foi lá por 1904-1905, em cuja data se colocou na Companhia de Gás, onde se demorou por espaço de um ano, mais ou menos.
Algum tempo depois, com as economias que logrou acumular, mercê dos seus esforços e da vida regrada que levava conseguiu estabelecer-se à rua Abranenes, nº 33 com uma pequena casa de artigos elétricos, lâmpadas, fios e outros petrechos filiados a este ramo.
Residia nesse tempo numa vila que há naquele ponto, na casa nº 4. Foi por essa ocasião que contraiu núpcias.
Mal sucedido nos negócios, veio a perder, alguns anos depois, tudo o que possuía. Empregou-se então na Companhia de Calçados Clark, em 1913, colocação essa que abandonou para estabelecer-se novamente, mas já agora com uma charutaria, à rua da Boa Vista, nº 11. Os fados não lhe foram menos adversos. Mau grado todos os seus esforços e empreendimentos, os prejuízos financeiros foram fatais. Foram tantos e tais, que em pouco tempo se via completamente arruinado.
Esses últimos insucessos comerciais datam de 1914. Nesse ano, sentiu que se passava alguma coisa de anormal no seu organismo. Eram os prenúncios dos
FENÔMENOS
que mais tarde se deveriam manifestar, como em mais tarde se manifestaram, e ainda se manifestam, com uma precisão assombrosa. Carlos Mirabelli, que havia pouco se vira arruinado na rua da Boa Vista, passara a residir no largo do Arouche, nº 50, onde, como acima dissemos, começava a sentir-se doente. Dores de cabeça, tontura, excitação nervosa, toda uma série de sintomas mórbidos. Concomitantemente, tinha insônias, via vultos estranhos, sentia repelões, puxavam-no a todo instante pela roupa. Andava aterrorizado. A sua família perdera a tranqüilidade. Vieram dias de sofrimento morais; no seu lar já não havia a paz e o encanto de outrora. Pouco a pouco, porém, fora se dominando. Muito não tardou e, já mais senhor de si, Carlos Mirabelli, que não era um demente, nem apresentava, em verdade, sintomas de males patológicos, analisou-se com firmeza e entrou a suspeitar que, sem saber como, nem porquê, se transformara em médium espírita.
Isto ouvimos dos seus próprios lábios. Nessa altura, atalhamos:
– V. era espírita?
– Não.
– Conhecia algumas obras nesse gênero?
– Muito poucas.
– Freqüentava sessões, cuidava dessa doutrina?
– Nada, absolutamente.
– Mas como suspeitou que o seu caso tinha relações com os espíritos?
– Porque já então eu os distinguia.
– E reconhecia-os?
– Perfeitamente. Eram os de meu pai, minha mãe, uma filhinha minha, minha sogra e um tio.
Mas, era preciso trabalhar. Carlos Mirabelli voltou a procurar serviços. Isso foi agora, no ano findo. Depois de alguns empenhos e pedidos, entrou para a Companhia de Calçados Villaça, à rua Direita, 6-A. Era a primeira casa em que trabalhava, depois de se lhe manifestar a mediunidade. Nesse estabelecimento não pôde demorar-se, pois as
MANIFESTAÇÕES ESPÍRITAS
continuaram. As caixas de sapatos, as cadeiras, vários objetos começaram, com grande alarme da freguesia, a ter movimentos próprios e inteligentes. Foi então que o sr. Martins Pontes, gerente daquele conceituado estabelecimento, em palestra, referiu esse caso ao farmacêutico sr. Assis Ribeiro. Então, convidando algumas pessoas para assistirem aos fenômenos, convocaram uma sessão, que se realizou naquela loja e que foi a primeira realizada por Carlos Mirabelli.
– Demorou-se muito na Casa Villaça? inquirimos.
– Não. A falta de serviço, como também as manifestações, que assustavam os que a estas assistiam, levaram-me a deixar a colocação.
Nesta altura da palestra, notamos que o sr. Carlos Mirabelli, muito pálido, tinha uma expressão contrafeita. Apertava com as mãos um dos lados, na altura dos rins.
– Estás incomodado? perguntamos-lhe.
– Não, não é nada. É um espírito.
Um calor nos subiu ao rosto, sentimo-nos arrepiados.
– Isso não é nada; vai-se já.
– E depois daquela casa entrou para alguma outra?
– Sim.
– Há tempos?
– Não. Há algumas semanas.
– Em que casa esteve?
– Na Farmácia Queiroz, à rua Líbero Badaró. Lá se reproduziram os mesmos fenômenos. Houve os mesmos sustos. Deixei esse lugar há quinze dias.
– De modo que só dificilmente se poderá colocar?
– Talvez. O que preciso é de colocação em que esteja em constante atividade, pois que, concentrando-me, reproduzem-se os fenômenos.
– Mas, desculpe-nos a curiosidade, e em sua casa?
– Voltamos à antiga paz. Os meus já se habituaram às manifestações. Às vezes, dão-se fatos até interessantes. Quando minha senhora porventura se acha adoentada, e falta quem a sirva, os espíritos servem-na. Oferecem-lhe até chá no leito. Para ela tudo anda por si, como por encanto, pois que nada vê; eu, porém, reconheço perfeitamente os espíritos, e vejo-os a transportar os objetos.Vivemos agora muito bem, graças a Deus.
– E os espíritos aparecem sempre?
– Sim. Já agora não me fatigam. A princípio, sofri muito. Dei inúmeras quedas, passei privações, traguei até às fezes a taça do Infortúnio.
– De modo que a sua primeira sessão foi na Casa Villaça…
– Sim. Mas antes disso,
NOS CAFÉS E NAS RUAS,
outras manifestações se davam comigo. Num desses cafés, logo que me sento, um espírito costuma trazer-me a xícara e o açucareiro.
– Com grande espanto dos presentes?
– Sim.”
Como os leitores vêem, era a melhor possível a nossa intenção. A entrevista, a que nos referimos, seria publicada se um dos nossos companheiros não tivesse desconfiado de truques. Mas, a jornalistas e repórteres, é muito difícil impingirem-se nabos em saco.
Reatando o fio da narrativa acrescentaremos que, quando terminávamos a palestra, de que destacamos os períodos acima, o sr. Carlos Mirabelli, aquiescendo a um nosso pedido, ofereceu-nos a sua fotografia, da qual, em miniatura, um clichê ilustrou ontem a nossa reportagem. Foi nessa ocasião que chegou o secretário desta folha, o qual, entrando no salão, foi por nós apresentado ao médium que tanto desejava conhecer.
Entabolou-se palestra. Chegaram depois outras pessoas, como os srs. drs. Cyro Costa Martinho Botelho e Arthur Mendes. Cada um emitiu a sua opinião, querendo que o médium desse explicações sobre os fenômenos. O dr. Martinho Botelho, muito incrédulo, pedia ao sr. Carlos Mirabelli que produzisse no momento uma manifestação qualquer da sua força, ao que o ilusionista não aquiesceu, exclamando:
– Pensa o sr. que isto é “batata assada ao forno?!”
De duas para três horas demorou-se o médium em palestra conosco, e retirou-se com a promessa de que no sábado, que era daí a dois dias, faria uma sessão para o nosso secretário, a qual podia ser assistida por Joaquim Morse, Nuto Sant’Anna e Cyro Costa, apesar deste último “ser de um péssimo fluido.”
Mirabelli produz fenômenos diante do nosso secretário
No outro dia, o sr. Carlos Mirabelli visitou-nos, desejando saber o motivo porque não tínhamos inserido a entrevista. Dissemos-lhe que o secretário da folha só a publicaria depois de assistir a uma das suas sessões e depois, ainda, dela ser lida pelo diretor da folha. Contente com essa resposta, o médium, no sábado, às 18 horas, como ficou assentado, chegou a esta redação, de onde, em companhia do sr. Antônio Carlos da Fonseca, se dirigiu para casa do sr. Moritz, à rua Victoria, visto como esse cavalheiro lhe manifestara desejos de conhecer o falado médium.
Saímos em direção ao largo de S. Bento e aí tomamos um bonde. O “médium” trajava todo de preto e levava na destra um livro de rezas. Assim vestido, o paletó abotoado, golas levantadas, um negro chapéu duro na cabeça, a basta barba a contrastar com a palidez marmórea do rosto, tinha um aspecto fúnebre. Dava a impressão de um pastor protestante, na missão piedosa de assistir a um moribundo.
A meio do caminho, em dado momento, arregalando desmesuradamente os olhos e indicando com a mão um ponto qualquer da rua, exclamou:
– Olhe ali ele! Não viu?
Olhamos com interesse para o local indicado, esperando divisar o dr. Cyro Costa ou o sr. Joaquim Morse, que, tendo prometido assistir à sessão do médium, não haviam comparecido à hora aprazada.
Olhamos e não vimos ninguém. Mirabelli, porém, insistia; desta vez em altas vozes:
– Não está vendo?! Papá! É papá!
E, num sorriso inexpressivo de insano, explicou:
– Espírito adiantado, meu protetor…
O bonde estava cheio. Todos os passageiros se voltaram para nós, mirando-nos com espanto e curiosidade.
Sentimo-nos em situação bastante incômoda, mesmo muito desagradável. Disfarçamos:
– Que pena o sr. Morse e o Cyro não terem aparecido, não, sr. Mirabelli?
O médium não nos respondeu. Estava absorto, fingia-se absorto. Começava a operar, procurando impressionar o nosso espírito aos poucos, lentamente.
Respiramos quando o bonde parou na esquina da rua Victoria. Descemos e caminhos em demanda da casa do sr. Moritz.
A certa altura, disse-nos o “homem misterioso”:
– Tenho a certeza de que amanhã o amigo dará no “Correio” não só a entrevista que lhes concedi, como ainda as suas próprias impressões sobre o que vai ver.
– É possível – respondemos.
Na casa do sr. Moritz aguardavam-nos com ansiedade. Um pequeno, assim que nos viu, deitou a correr para dentro, radiante:
– Mamãe, está aí o mágico!
– As crianças não podem assistir a estas coisas – segredou-nos o médium.
Fizemos uma observação ao sr. Moritz, que, dando uma moeda de graça à criança, disse:
– Meu filho, vai ao cinema.
O petiz desapareceu pelo corredor da rua.
* *
Era na sala de jantar que se ia realizar a experiência. O “médium” achou-a pequena e com pouca luz. Note-se que a sala mede nove metros de comprimento por cinco de largura. Quanto à iluminação, feita por duas lâmpadas elétricas, o operador tinha razão.
Para experiências da natureza das do prestimano em foco quanto mais luz houver menos possível se torna a descoberta do truque. Isso tivemos ensejo de verificar mais tarde, como os leitores verão oportunamente, no decorrer deste nosso inquérito.
Mirabelli afastou um pouco para o fundo da sala a mesa em que ia operar, a qual mede três metros de comprimento. Sentou-se à cabeceira da mesa e colocou os assistentes do lado oposto, isto é a cinco ou seis metros distante do lugar em que ele se achava. Estes pormenores são de real importância para a prática dos trabalhos deste gênero, e dele trataremos quando tivermos de explicar o truque, que habilitará o leitor a produzir todos os “fenômenos” “mirabéllicos”…
Essas precauções nos causaram certa impressão, pois pensávamos: se os fenômenos eram reais, por que a assistência não podia ficar à volta da mesa para apreciá-los mais de perto?
Sentados todos os presentes, ordenou o “médium” que se estabelecesse a “corrente”, a que já nos referimos em a narrativa da sessão realizada na casa de Nuto Sant’Anna. É uma outra precaução da máxima importância e dela nos ocuparemos no capítulo intitulado “A RAZÃO DE SER DA ‘CORRENTE FLUÍDICA’”.
Perguntamos então qual o fim de tal corrente, e o médium explicou:
– É para evitar que o espírito se encarne num dos senhores. É muito perigoso. Sou ainda novato nessas coisas e, se tal fato suceder, eu não saberia como me haver!
– E se isso acontecesse? – perguntou, visivelmente impressionado, o sr. Moritz.
– O sr. ficaria louco – respondeu o “médium”; e Deus nos livre disso – acrescentou, compondo uma fisionomia de terror; – seria uma desgraça. Imagine-se o amigo a dar saltos mortais pela casa, a bater com a cabeça pelas paredes… Que horror!
– Quem sabe se seria mais conveniente deixar estas experiências para outra ocasião – ponderou amedrontado o sr. Moritz.
– Estabelecendo-se a corrente, não haverá perigo algum. As forças fluídicas transmitir-se-ão de uns para os outros, repartindo-se igualmente, de forma que cada qual ficará habilitado a repelir o espírito.
– Garante-nos?
– Sem dúvida – afirmou, com convicção, o “homem misterioso”.
Mirabelli declarou então que precisava de uma garrafa, de uma caixa de papelão e de alguns copos. (Sempre a mesma coisa: garrafas, caixas, copos!)
Atendido prontamente pela dona da casa, colocou ele, ao seu lado, na extremidade da mesa, a garrafa; nesta, em equilíbrio, no gargalo, a caixa, sobre a qual pousou dois copos, um de cada lado, à guisa de balança.
Levantou-se em seguida, e abriu o livro preto. Começou a orar:
– Padre Nosso que estás no céu…
– O espírito de meu pai já está presente – observou ao concluir a oração – Cá está ele! Olhem! Foi ali para o canto – e indicava com a mão. – Voltou para cá. Passou. Foi-se.
Depois de algum tempo o “médium”, impressionado com o olhar insistente e investigador das senhoras, declarou ser necessário que elas se retirassem. Estas protestaram; queriam ver os “fenômenos”.
– Não é possível. As senhoras não têm o espírito preparado para estas experiências. É muito perigoso. Por estes dias eu voltarei cá. Farei então alguns passes, dar-lhes-ei então um pouco de fluido e as senhoras ficarão aptas para assistir aos fenômenos.
Não havia remédio: as senhoras se retiraram pesarosas da sala de jantar.
Logo que elas saíram, o médium fechou a porta, resmungando:
– Podem querer voltar…
Retornando o seu lugar, a cabeceira de mesa, o médium fez nova invocação.
– Meu pai já se acha presente. Dirige-se para o seu lado. Os srs. não vêem? Está aí junto do senhor. – Papá! Papá! – gritava alucinadamente – non toccare!! Non toccare!! Questo siguore é vostro amigo!! É amigo di tuo figlio!! Non toccario!!
O senhor Moritz, que então tremia como varas verdes, balbuciou, súplice:
– É melhor chamar para lá o seu papai!
Mirabelli triunfava. A assistência sentia-se já assombrada e… não tinha visto ainda coisa alguma. A sugestão tinha feito a sua obra. E isso muito bem o compreendeu o farsante, que julgou azado o momento para a realização dos fenômenos.
– Papá, de una manifestazione della tua presenza a questi amici – porque Mirabelli, quando em palestra com o espírito de [ilegível] sapateiro de Botucatu, só se expressa em italiano.
– Os srs. não estão vendo? Não vêem nada?! Está perto da garrafa! Tocá-la! Tocá-la! Fa girare la scatola! Isso! Assim! Isso!
E a caixa girou, efetivamente.
Nós, os assistentes, tivemos todos uma impressão violenta.
– Agora, o espírito vai fazer cair a caixa e quebrarem-se os dois copos. Atenção! – “Papá, che la scatola cada e che i bicchieri si spezzino! Su, andiamo, papá! Olhem a mãozinha dele aqui!” E tocava na caixa, indicando o lugar em que pousava a mãozinha do papá.
– Ubbidiscimi, papá. Fa cadere la scatola! Fallo súbito! Cosi! Cosi!
E a caixa caiu do gargalo da garrafa, com um grande fragor de vidros, que se partiam. Mas, só se havia quebrado um copo.
–Agora, papá vai tirar um lápis de dentro da garrafa.
E, dirigindo-se a nós:
– O sr. tem um lápis?
Respondemos afirmativamente; e, tirando um lápis do bolso, fomos colocá-lo, nós mesmos, na garrafa.
O médium fitou-nos demoradamente, como a pesquisar se havíamos desconfiado de “qualquer coisa”. Depois, disse:
– Não há outra garrafa?
Trouxeram-lhe outra.
– Esta é melhor – exclamou.
E retirou o lápis do recipiente em que nós o colocáramos. Conseguira o médium sair lindamente da entalação; pois, passando o lápis de uma para outra garrafa, tocava-o com suas mãos e… o truque estava feito. A garrafa primitiva continha no fundo um resto de água de Colônia, que umedecera a extremidade do lápis.
Pedindo o nosso lenço, o homenzinho enxugou-o, explicando:
– Molhado não serve.
Mais tarde, quando o truque foi descoberto por um nosso colega, compreendemos a razão porque o teria molhado não se prestava para a experiência…
Colocado o lápis na garrafa pelas mãos do próprio operador, começou ele a ver de novo o seu papá:
– Aqui está ele. Aproxima-se da garrafa. Os srs. não estão vendo? Não vêem nada? Olhem! Está ficando pequenininho. Entrou na garrafa…
– Então é um espírito engarrafado – segredou-nos ao ouvido o companheiro da direita.
Mirabelli continuava a gritar, de olhos esbugalhados:
–Papá, tira o lápis! Tiralo! Tiralo! Questo! Cosi!
E o lápis, com grande espanto de todos nós, começava a subir, em pé, como se fosse empurrado por uma força estranha, de baixo para cima, até sair inteiramente da garrafa, para bater na mesa e saltar no chão.
Depois, o “médium” fez a sorte do livro, sorte a que se referiu com tanto alarde o dr. João Silveira, na entrevista publicada pela Gazeta. Colocou aberto sobre a mesa o seu livro de rezas e mandou que o seu “papá” virasse as páginas, as quais começaram de fato a virar como se mão invisível estivesse a folheá-la.
Fez ainda cair um chapéu da mão do sr. Moritz, tirou um papel de dentro da garrafa, quebrou ainda diversos copos e outras coisas mais, sem importância, como aquela a que a Gazeta se referiu há dias.
Declarando “encerrados os trabalhos”, porque o seu “papá” estava muito cansado, perguntou ao dono da casa onde era o W.C.
– Estava com uma ligeira cólica – explicou, apertando o ventre com ambas as mãos. Logo que ele de lá regressara, após curta demora, a criada da casa, uma portuguesinha muito esperta, dirigiu-se para aquela dependência, e, por circunstâncias que não vêm ao caso, pôde verificar que o homem apenas… lavara a mão na torneira do banheiro. Foi daí que partiram as nossas primeiras suspeitas, como verão mais adiante os leitores.
Ao retirar-se, Mirabelli pediu a cada um dos assistentes que rezasse todos os dias quatro Padres-nossos por alma do velho Mirabelli, em sinal de gratidão, de certo, por haver ele quebrado quase todos os copos da casa e… tirado o lápis da garrafa.
O sr. Moritz, muito convencido da “força fluídica” do homem que, na opinião da Gazeta, é “realmente misterioso”, perguntou-lhe se, com os seus passes, poderia cur´-lo de um velho e renitente reumatismo na perna direita.
– Isso só em sessões particulares – respondeu o mágico.
* *
E assim decorreu a segunda experiência a que assistimos e a qual, seja dito de passagem, nos causou funda impressão, sugerindo-nos ponderadas cogitações. Desde logo, pusemos de parte a idéia de espiritismo, não porque não sejamos espíritas, mas tão somente por julgarmos que manifestações dessa natureza teriam outro caráter, seriam demonstrações sérias, criteriosas, positivas e convincentes. As que presenciamos poderiam ser, quando muito, produzidas pelo espírito de algum pelotiqueiro, que, mesmo no outro mundo, continuava no exercício da sua missão profissional.
Não admitimos também o magnetismo como agente dos fenômenos porque – conjecturávamos – as forças magnéticas só podem ser exercidas sobre sistemas nervosos – sobre indivíduos ou sobre animais. Restavam ainda duas hipóteses, sobre as quais resolvêramos permanecer até ulterior investigação: ou os assistentes eram hipnotizados pelo operador, e, assim, observavam fenômenos que, na realidade, não se davam, ou se tratava de habilíssimo truque.
Poucas horas depois, nessa mesma noite memorável, a primeiras dessas hipóteses se desfazia totalmente, pelas razões que vamos enumerar. Mirabelli efetuava experiências no salão nobre desta folha, em presença de colegas nossos. Do lado de fora e pelo orifício da fechadura, nós também assistíamos aos fenômenos. É evidente que estes, no caso em que aventamos, de hipnotismo, só seriam verificados pelas pessoas que se encontravam na sala, não podendo ser VISTOS pelas que se achavam do lado de fora.
Ficava de pé, portanto, uma única hipótese: – a do TRUQUE.
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Para amanhã:
Duas sessões de Mirabelli no “Correio Paulistano”
COMEÇAM AS SUSPEITAS
Uma rigorosa busca em o nosso salão nobre, após os trabalhos do escamoteador
É encontrado, afinal, o “espírito protetor” do sr. Mirabelli