As Fraudes do Médium Mirabelli (Parte 21)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.

 

Correio Paulistano – Quinta-feira, 22 de junho de 1916, página 3 e 4 

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério 

O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador 

As provas demonstrativas do “Correio Paulistano” vão causando verdadeiro sucesso 

Os nossos colegas do “Estado de S. Paulo” assistem a uma demonstração e julgam-na a mais perfeita possível • Como o sr. dr. Carlos de Niemeyer teve a prova cabal dos embustes do pseudo-médium 

Antes de reencetarmos hoje a publicação da nossa reportagem, cumpre-nos agradecer, como de fato agradecemos, a inúmeras felicitações que, desta capital e de fora, nos têm chegado em cartas, cartões e telegramas, pela atitude leal e proveitosa que este jornal tem assumido nesta questão, que, mercê do “Correio Paulistano”, não teve conseqüências mais sérias no seio de nossa sociedade. Efetivamente não se pode prever até onde iria a credulidade pública, máxime amparada em alguns nomes de responsabilidade, se a imprensa sensata desta capital não houvesse, no devido tempo e com a energia que se fazia mister, profligado convenientemente a audácia do prestimano com um cauteloso e oportuno memento às pessoas bem intencionadas, mas cuja boa fé não lhes permitia reconhecer para logo a petulância do intrujão. 

A inserção do nosso inquérito continuará a ser feita metodicamente, de forma que os fatos se vão apresentando ao espírito dos leitores na mesma ordem por que se deram. Não aproveita precipitarmos a narrativa. O que convém é que, ao fim de tudo isto, fique absolutamente provada, como de fato ficará, a existência de “truques” em todos os fenômenos produzidos por Mirabelli. E a nossa demonstração será CABAL, COMPLETA, IRREFUTÁVEL.  

*                      * 

Prossigamos na tarefa que nos impusemos de relatar minuciosamente a movimentada peça cômico-burlesca, que um emulo falsificador daquela Sibila fantástica, que, em épocas remotas, fazia coisas das Arábias, engendrou para gente limpa e civilizada, intelectual e sábia, conseguindo lograr frenéticos sucessos jamais previstos pelos que são do seu valor e da sua linhagem. Se se exibisse a matutos e botocudos, nos esconsos cafundórios dos “românticos sertões do Alencar e Taunay, não seria talvez tão sublimemente sucedido, embora lá, como cá, sejam insofismáveis as tendências supersticiosas dos nossos patrícios. Prosseguindo, pois, nos lances por vezes arrebatadores da odisséia épica dos fios mirabellicos, relataremos agora os pormenores da  

EXPERIÊNCIA QUE O SECRETÁRIO DESTA FOLHA REALIZOU NA SALA DA NOSSA REDAÇÃO, 

momentos antes da que ontem descrevemos. Foi ela assistida pelas pessoas que abaixo mencionaremos, entre as quais o nosso companheiro Nuto Sant’Anna, que a descreveu com os seus coloridos de poeta, procurando dar vida a mais essa interessante cena dessa grande comédia: 

“Nessa noite memorável, o nosso colega, que por muitos amigos já era tido como um divino-mortal, super-homem vastamente bafejado pelas complacências celestes, que caracterizam e imortalizam a abnegada existência dos grandes enviados, revelou aos presentes, com o intuito de serenar o sistema nervoso dos que se sentiam abalados com os prodígios do homem-profeta, em que realmente consistia a força dos… “fluidos capilares” daquele “famoso médium”. 

Estávamos todos nas nossas bancas de trabalho, arrancando do cérebro, sem nem pensar no celebrado expoente dos habitantes do Espaço, esses milhares de pensamentos que, depois de passarem pelo bico da pena e atravessarem inúmeras complicações de ordem puramente mecânicas, vão, ao outro dia, numa relação imensa, complexa e tumultuada, dar às gentes a nova sensacional de tudo o que ainda na véspera transcorreu de notável dos países civilizados de todo o mundo. Eis se não quando, deixando a sua secretária, o nosso chefe, que entre nós se destaca, sobretudo, por uma “grande alegria psíquica, que reflete a posse psíquica e o gozo racional de uma saúde sempre vitoriosa”, com a sua eterna bonhomia de homem ponderado, sorrindo o seu sorriso sóbrio, passando a sua pessoa saudável e calma, disse, metendo um cigarro na antiga piteira de âmbar [ilegível]: 

– Já realizei algumas “sessões” lá no salão: hoje quero ver se consigo os “fenômenos” aqui mesmo… 

Afora o pessoal da casa, Edgar Nobre de Campos, Gomes dos Santos, Alfredo Martins, Wolgrand Nogueira, Plínio Reys, Mucio Passos, João Silveira Junior e o chefe da revisão Raymundo Reis, estavam presentes ainda os srs. drs. Alarico Silveira e Cyro de Freitas Valle. 

À vez do nosso secretário, o dr. Alarico, que até aquele momento era um admirador sincero do sr. Carlos Mirabelli, acudiu: 

– Pois vamos ver, Fonseca… 

O jovem “operador”, franzindo misteriosamente a testa, fez por modificar as suas feições. Depois, arregalou os olhos, gesticulou, disse estar sendo percorrido por correntes fluídicas… de alta tensão. Palpava os pulsos lá e vinha. E enquanto se ria intimamente, ia fingindo sempre estar sob a pressão de uma potência transcendente, tal como o fazia, numa encenação industriosa, aquele que já hoje já não mais vive decerto na ilusão da sua glória de homem-santo! 

– Tragam-me uma garrafa! 

Àquele brado incisivo, com uns longes da dramatização épica e das frases parabólicas do professor a que procurava imitar, o pequeno contínuo da redação, num salto fantástico de veado acossado por cem cães de raça, surgiu, como que por encanto, empunhando triunfalmente uma garrafa vazia, como se empunhasse, nas cruzadas da idade média, o lábaro fatídico das hostes mais aguerridas… 

– Coloque-a ali! 

E foi ela cerimoniosamente, e com todas as formalidades do estilo, posta na mesa de Gomes dos Santos, à qual se achava sentado o dr. Cyro de Freitas Valle. A esse tempo, já todos os presentes se encontravam em torno do nosso secretário, que, como se disse, era ainda julgado aquela hora como verdadeiro médium, tão verdadeiro como o que foi, talvez graças à antecipada visão de algum gênio anônimo, consagrado como o maior prodígio destes últimos séculos… 

O momento era solene… como que havia no ambiente uma invisível palpitação macabra de asas de corujas.  Qualquer coisa de simbólico, mistérios impenetráveis como os hieróglifos das primeiras idades, relampejavam, em rebrilhamentos trágicos, nas pupilas azuladas do moço jornalista. 

– Dêem-me um lápis; disse, brusco, vibrando como as cordas de um violino… 

Deram-lhe. 

– Agora – continuou, colocando-o na garrafa, que estava quatro dedos distantes dos olhos do simpático dr. Cyro – agora, ajudem-me! Concentrem-se! Tentemos retirá-lo! 

O silêncio era absoluto. Quebrava-o apenas a voz farsista dos jornaleiros, lá fora, gritando na praça deserta, ao céu estrelado: 

– “Correio”! “Estado”! “Gazeta”! O homem misterioso! A mulher que matou o marido!” 

O nosso secretário, concentrado, de mãos atadas, gozava o espanto, afastando-se lentamente, lentamente… De súbito estacou, a dois metros de distância: 

– Ajudem-me! Silêncio! Sinto que o lápis vai subir! Ei-lo! Ei-lo! 

O lápis subira, de fato, suavemente, perpendicularmente, até cair fora da garrafa. Em seguida o nosso secretário pegou-o, entregando-o a seu dono. Estava trêmulo, visivelmente abatido. Dera mesmo a “munheca” para ser auscultada. Deveria contar ela, de fato, mais de cem pulsações por minuto… 

O dr. Cyro erguera-se num salto: – Como é isso, Fonseca! 

O dr. Alarido, abatido, caíra numa cadeira, murmurando: 

– Realmente! É extraordinário! 

Todos os que não sabiam da coisa exclamaram, unânimes: 

– Estupendo! 

O nosso secretário, mais calmo, acendia outro cigarro, satisfeito do sucesso. Conversou com todos, disse que aquilo “não era de certo espiritismo”, pelo menos nada via; talvez fosse “alguma força oculta ainda por classificar”. Algum tempo depois, porém, a fim de esclarecer especialmente o dr. Alarico Silveira, que é seu velho e íntimo amigo desde os saudosos tempos de infância, e que fora um dos que acreditaram na mediunidade do sr. Mirabelli, o nosso companheiro, numa excelente gargalhada, bateu com a mão aberta no ombro daquele distinto advogado e nosso colega de jornalismo: 

– Alarico, tudo isto é truque!

– Truque! Você está brincando! Como!

– Dou-te a minha palavra! Toda esta força que você me atribui é obra de um aparelho invisível… como o é também a grande mediunidade do “homem extraordinário”. Tudo uma farsa! 

O dr. Alarico Silveira sentiu-se numa confusão imensa; dir-se-ia que o imergiram na lava de chãos primitivo. Não entendia nada. Assombrado, assim “não sei como”, estava verdadeiramente aturdido ante o que tão inesperadamente ouvira. 

– Truque, uma ova! disse uma voz à direita. O Fonseca é médium e muito bom médium… 

O Cyro dera um aparte: 

– Mas como eu não vi nada! EU ESTAVA QUASE ENCOSTADO À GARRAFA! Como é isso então? 

– Esperem aí, vou fazer as coisas às claras. Toma este lápis, mete-o com as tuas mãos na garrafa; e reparem bem.  

Todos aguardaram a manifestação da força. Daí a instantes, com efeito, o lápis executara os mesmos movimentos anteriormente descritos. 

– Mas que diabo é isso! não vimos nada… 

– Gentes[1]! resmungou o Raymundo Reia, batendo os queixos… 

Então o Fonseca, agarrando o “espírito” pela cabeça (que esse “espírito” anatomicamente se compõe só de cabeça e umbigo), mostrou-a ao dr. Alarico e a todos. Foi um assombro. Em seguida repetiu a “experiência” mais umas vezes, aproveitando a oportunidade para TAMBÉM REALIZAR AS OUTRAS MARAVILHAS DO REPERTÓRIO MIRABÉLLICO, como as sistemáticas experiências das caixas, dos copos, dos papéis que saem de recipientes e outras sortes com que costumava arremedar, a título de diversão, o relapso invocador das almas, tão dignas de usufruírem em sossego as delícias da bem-aventurança. 

Daí a instantes, o nosso secretário, a pedido de respeitáveis cavalheiros, realizava, para uma grande assembléia, no salão nobre da nossa folha, a “experiência” ontem descrita com todos os detalhes, e que logrou alcançar um êxito completo. 

FENÔMENOS MIRABÉLLICOS 

A quinta experiência realizada pelo “Correio Paulistano” foi efetuada a pedido do nosso distinto amigo sr. dr. Freitas Valle, ilustre deputado estadual. S. exc., ao terminar o concerto que, em honra do novo governo, se realizou no Conservatório, em dias do mês passado, lembrou-se de convidar vários amigos para apreciarem alguns dos “fenômenos” que provocávamos. 

O nosso operador acedeu ao seu pedido. Estiveram presentes os srs. drs. Freitas Valle, dr. Anthero Bloem, dr. Cyro de Freitas Valle, o digno sr. juiz de direito de S. João da Boa Vista, os maestros de A. Cantu, João e José de Souza Lima, os filhos do maestro Felix de Otero, o tenor Santino Gianatazie e os srs. drs. Martinho Botelho e João Pires Germano. 

Perante essa assistência foram reproduzidos pelo redator desta folha todos os maravilhosos “fenômenos” que o sr. Mirabelli anda por aí a provocar, com os auxílios de quantos espíritos vagam[2] a cata de aventuras… Não é necessário dizer que ninguém percebeu o truque. Um dos assistentes, o exímio maestro Cantu, há pouco é que soube que o nosso companheiro não possuía nenhuma “força magnética”… 

OS NOSSOS COLEGAS DO “ESTADO DE S. PAULO” ASSISTEM A UMA EXPERIÊNCIA 

O sr. Nestor Rangel Pestana, nosso distinto colega, redator-secretário do “Estado de S. Paulo”, tinha assistido a uma experiência do famoso escamoteador do Circo Teatral. 

Sabendo que havíamos descoberto os truques do “homenzinho”, o sr. Nestor teve desejos de presenciar os fenômenos que um dos nossos redatores reproduzia. 

– Que fenômenos viu? Perguntou o nosso operador ao sr. Nestor. 

O nosso prezado colega enumerou todos os casos “maravilhosos” que havia visto. E à medida que o nosso operador ia reproduzindo os “fenômenos” o Nestor dizia: 

– É assim mesmo; há somente uma circunstância: é aqui serem feitos os “fenômenos” com mais rapidez e perfeição… 

Depois de realizadas várias experiências, o nosso distinto colega observou: 

– Agora só falta uma coisa.

– Qual? perguntaram-lhe.

– Dar um estalido na lâmpada elétrica, como o fizera Mirabelli. 

E, coisa admirável, no mesmo momento o estalido se reproduzia no nosso salão, de um modo claro e perfeito. O nosso brilhante confrade exclamou então: 

– Foi exatamente isso. 

A essa experiência estiveram presentes, além do sr. Nestor Pestana, os srs. dr. Mello Nogueira, dr. Martinho Botelho; dr. Vicente Ancona, Ariosto de Azevedo, Antonio Figueiredo, Otávio de Lima e Castro, dr. Amador Sampaio, Pedro Cunha redatores do “Estado”;  e dr. João Pires Germano. 

Excusado dizer que todos saíram convencidos das mistificações do sr. Mirabelli… 

É SOLICITADA UMA SESSÃO DEMONSTRATIVA POR UMA DAS VÍTIMAS DE MIRABELLI 

Por uma tarde do mês passado, quando se ultimavam os preparativos para a edição da noite, prestes a sair, eis que nos aparecem na redação, enchendo-nos de agradável surpresa, os simpáticos drs. Arthur Mendes e René Thiellier. Vinham cheios de dúvida e de curiosidade. 

O dr. Thiellier, que é um fino espírito de elite, fora, como o primeiro, intrujado pelo prestimano das “manifestações espíritas”. Vira as coisas, triviais que toda a gente presenciara, o lápis arrastando-se “misteriosamente” pelas paredes de uma garrafa cristalina, do gargalo liso: o clássico papelão, em equilíbrio, girando na extremidade de uma garrafa, os corpos que, impelidos por uma “força estranha”, se precipitavam do alto de uma caixa de sapatos e se iam quebrar de encontro ao solo. Isso tudo, porém, ou antes, apenas isso, não fora suficiente para o convencer de que o ex-caixeiro da sapataria Villaça, que, como macaco em loja de louças, se comprazia em espatifar jarras, lâmpadas e copos, com grande desamor pelo dinheiro alheio, fosse realmente o “médium” excepcional, de que fala alguns adeptos extremados da doutrina de Allan Kardec. 

O espiritismo não podia resumir-se nessa futilidade, que o sr. Mirabelli impingia irreverentemente aos homens de boa fé, com uma grande dose de audácia e de caradurismo. 

Demais, a sua gesticulação uniforme para a produção de todos os fenômenos, os seus “passes” clássicos de prestidigitador, induziam à suspeita de um “truque”, que só não era percebido graças à destreza que presidia a sua execução. 

Foi, portanto, quase convencido de que os tais fenômenos de levitação não passavam de um hábil estratagema do manhoso pelotiqueiro de Botucatu, que os simpáticos drs. Arthur Mendes e René Thioller nos procuraram na redação desta folha.  

Chegara-lhes a notícia de que os “truques” tinham sido desvendados pelo “Correio Paulistano” e de que dois dos seus redatores estavam habilitados a executá-los, é verdade que sem o mesmo tumultuoso aparato, mas com tanta proficiência como o sr. Mirabelli. Daí a curiosidade em assistirem à reprodução dessas experiências. 

A impropriedade da hora, porque tais fenômenos não se reproduzem à clara luz meridiana – como bem pode atestar o próprio sr. Mirabelli, que só os tem exibido á noite – levou-nos a designar a solicitada sessão para as 20[3] horas e meia.  

O sr. Thiollier, com aquela requintada delicadeza que o torna estimado de quantos o conhecem, perguntou-nos então se não levaríamos a mal que a cada sessão comparecesse o distinto clínico sr. dr. Carlos Niemeyer, que tendo sido a princípio um dos maiores propagandistas de Mirabelli, ao ponto de queimar pestanas em estudos especiais sobre ciências ocultas e de conceder uma longa entrevista à redação da “Gazeta”, estava, entretanto, com a sua convicção abalada diante de um gesto infeliz e comprometedor do extraordinário “médium”, numa das suas últimas experiências. 

Ao “Correio Paulistano”, que não visou e não visa uma EXPLORAÇÃO JORNALÍSTICA nesse caso Mirabelli, porque isso não está no seu feitio, como toda a gente faz a justiça de reconhecer, e cujo escopo é única e simplesmente desmascarar um embusteiro, que veio ousadamente à sua redação com a idéia de ludibriá-la, muito grato seria que as suas sessões demonstrativas tivessem a mais ampla divulgação. 

Que viesse, pois, o dr. Carlos Niemeyer, que seria recebido com agrado e geral contentamento. 

O SR. DR. CARLOS NIEMEYER ASSISTE, NO “CORREIO PAULISTANO”, À REPRODUÇÃO DOS FENÔMENOS DO PSEUDO-MÉDIUM 

À hora aprazada, o salão de honra do “Correio” regurgitava de gente. Os drs. Arthur Mendes e René Thiollier chegaram acompanhados do sr. dr. Carlos Niemeyer. 

Nem que um aviso sequer tivesse partido desta folha, o salão nobre encheu-se de pessoas amigas, atraídas por um intenso movimento de curiosidade. E convém dizer que a maioria era constituída exatamente pelos que aceitavam como indiscutíveis os fenômenos de mediunidade do sr. Mirabelli. 

Dentre os presentes, lembramo-nos de ter visto os poetas Aristéo Seixas, Julio César e Simões Pinto, este redator da “Vida Moderna”; o deputado dr. Julio Prestes, o dr. Gastão Jordão, Gelásio Pimenta, diretor da “Cigarra”: Salles Guerra, Armando Mondego, proprietário da “Vida Moderna”; Francisco Sucupira, o engenheiro dr. João Rodrigues da Costa, Horácio Rodrigues da Costa e o industrial Evelino Pocal. 

Os colegas dos jornais ilustrados, na perspectiva de uma sensacional reportagem, fizeram-se acompanhar dos seus fotógrafos e estes das suas máquinas e dos seus tripés. 

Momentos depois iniciavam-se as experiências. 

Um dos nossos companheiros, fazendo colocar sobre a mesa, tal qual como o sr. Mirabelli, os objetos preferidos pelo “espírita”, para as suas façanhas de além-túmulo, cientificou o auditório, sem charlatanismo e sem “pose”[4], de que ia executar com rigorosa exatidão os fenômenos produzidos pelo sr. Mirabelli em sucessivas sessões naquela mesma sala, tudo isso com a vantagem de não fatigar a assistência e sem a necessidade de invocações mais ou menos pitorescas, mais ou menos ridículas, do “espírito de papá”, que devia ter sido um grande pandego na passada existência.  

Houve um momento de religioso silêncio. 

O lápis do dr. Niemeyer, depois de ter passado rapidamente pelas mãos no nosso companheiro, foi colocado, por aquele próprio facultativo, dentro da garrafa, e, como é de estilo, com a ponta para cima: 

– Saia! Saia! Saia! – exclamou pausadamente, com toda a força dos pulmões, o nosso companheiro, de braços abertos e visivelmente emocionado, ante a ansiosa expectativa da audiência. 

E o lápis, com toda a sem-cerimônia, tremeu com um tilintar do vidro, oscilou e subiu lentamente pelas paredes da garrafa, movido pela “força estranha” do sr. Mirabelli e, como nas experiências deste, sem que os circunstantes com os seus olhares investigadores pudessem desvendar o complicado x daquele problema. 

– Mas é isto mesmo o que faz o Mirabelli! – exclamou alguém, quebrando o silêncio que imperava na sala. 

Era o dr. Niemeyer que assim falava. 

Seguiram-se os comentários, e todos os que anteriormente haviam presenciado o surpreendente fenômeno do lápis, produzido pelo ex-redator do “Argus”, e ex-colocador de camisetas da Companhia de Gás, foram unânimes em declarar que a demonstração era perfeita, de modo a não deixar dúvidas no espírito de quem quer que fosse, a menos que se tratasse de alguém que sentisse prazer em continuar a ser iludido. 

A essa, sucederam-se outras experiências, como, por exemplo, a da caixa de sapatos girando sobre o gargalo da garrafa, tendo um copo em cada uma das extremidades. 

O efeito foi o mesmo da demonstração anterior. 

Vieram depois: a lâmpada elétrica girando nas bordas de um copo e produzindo uma chispa avermelhada; o cigarro que, espontaneamente, se destaca dentro de companheiros de maço para ir ter na mão do operador, movido naturalmente pelo trêfego espírito de algum fumante inveterado; a flor, desprendendo-se do ramalhete colocado num vaso, a pesada bengala oscilando no ângulo da mesa, e, finalmente, a experiência da vela, que acende ao simples contato de um lápis. 

Uma salva de palmas reboou no salão e o magnésio explodiu com uma onda do fumo, que se elevou ao teto, cobrindo-o de nuvens. 

Estava terminada a experiência. 

Os “fluidos” que, como agentes invisíveis, operaram para a produção desses fenômenos, foram então exibidos aos circunstantes, espicaçados de natural curiosidade: um longo e tênue fio de cabelo de uma dama complacente, uma insignificância de cera virgem e algumas gramas de potássio metálico, que se inflama ao contato da umidade. 

O SR. DR. NIEMEYER, CONVENCIDO DA EXISTÊNCIA DE “TRUQUES”, ABANDONA MIRABELLI 

A demonstração tinha sido a mais cabal, coroada de êxito completo. 

No espírito dos presentes já nenhuma dúvida restava sobre os processos empregados pelo sr. Mirabelli para embair a credulidade pública. Eram exatamente aqueles.  

Persistir no erro, sobre o fraco sofisma de que o “Correio” teria reproduzido, servindo-se de “truques”, o que o desempenado calzolaio[5] de Botucatu vinha conseguindo por meios de fenômenos de mediunidade, só poderia ser levado à conta de uma teimosia injustificável, ou então de uma incompreensível boa vontade para com aquele que, sem nenhum respeito pelos vivos e grande menosprezo pela sagrada memória dos que se foram, lançava à rua, num gesto decisivo, o martelo e a sovela, para insinuar-se irreverentemente num meio de cientistas, e, o que é mais, no doce aconchego da família, revolvendo túmulos e quebrando jarras com a mesma cerimônia, na deplorável certeza de que seria por todos tolerado. 

Se os “fenômenos” foram os MESMOS, os objetos os MESMOS, a gesticulação a MESMA, e também a MESMA a impressão causada no espírito daqueles que presenciaram as “ligeirezas” do sr. Mirabelli e as demonstrações do Correio Paulistano, porque aceitar estas como uma vulgaríssima prestidigitação e aquelas como o resultado de uma força oculta independendo da vontade do agente? Só pelo fato de ter o “Correio”, com a lealdade que o caracteriza, declarado de antemão que era um “truque” o que ia realizar, e de não haver o sr. Mirabelli usado dessa mesma sinceridade, inculcando-se o homem misterioso, digno das homenagens da ciência e da investigação dos cientistas? 

Tudo isso é lamentável! 

Felizmente não pensaram desse modo os que acabavam de assistir a demonstração categórica do “Correio” e a melhor prova disso, deu-nos o sr. dr. Carlos Niemeyer, retificando, com um desassombro digno de registro, tudo quanto a respeito de inculto prestidigitador expendera na tarde desse mesmo dia em extensa carta à redação da “Gazeta”. 

E o sr. dr. Carlos Niemeyer é incontestavelmente um homem de valor e um caráter acima de qualquer suspeita. 

Iludira-se com as artimanhas do pseudo-médium, como se iludiram outros homens da mesma envergadura moral, mas não teve um momento de hesitação em confessar o seu erro, diante da positiva demonstração que lhe fizemos. 

Ao findar-se a memorável sessão do “Correio Paulistano”, combinou-se ali mesmo que o sr. dr. Niemeyer, prevalecendo-se da sua ascendência moral sobre o manhoso prestimano, seu comensal obrigatório, nada revelaria sobre o resultado de tais experiências, de modo a surpreendê-lo em flagrante de velhacaria. 

A impressão causada ao espírito daquele distinto facultativo foi, entretanto, demasiado forte, para que ele pudesse manter o prometido silêncio. 

Recolhendo à residência, rememorou os fatos em seus mínimos detalhes, e, sem ser de modo algum o que se chama “um médium vidente”, viu, entretanto, a figurinha acanhada do sr. Mirabelli com a cabeleira revolta e a barba nazarena, o olhar de águia, penetrando pela primeira vez os umbrais da sua vivenda e caindo de joelhos, com uma teatralidade, levada à conta de monomania, diante de um retábulo de Cristo, a quem ele chamava, cheio de dissimulada unção, “o grande mestre, seu protetor”. Viu-o, sentado à sua mesa, ao lado das pessoas que lhe são caras, devorando-lhe as iguarias e espatifando-lhes as jarras; ouviu-os nas perversas insinuações à conduta, até então julgada irrepreensível, da sua criadinha em quem surpreendera a “aura vermelha” das pessoas infames; ouviu-o, finalmente, nas clássicas sandices, em que é fértil, confundindo, lamentavelmente, Jesus com Allan Kardec e fenômenos de espiritismo com forças magnéticas. 

Mais tarde, não pôde conciliar o sono, dominado por um desejo intenso de sair à procura do mistificador e dizer-lhe pessoalmente tudo quanto pensava a seu respeito. 

E as horas escoavam… 

Subitamente, como nas fitas de cinema, um fio de cabelo começou a desenrolar-se, longo, tênue, interminável, e Mirabelli surgiu em pleno espaço, de avental e sovela, achatado e barbudo como um gnomo, tendo a cabeça circundada pela “aura amarela” dos homens bons, e porque estivesse sob o domínio de espíritos benignos, teimava em fazer passar um camelo pelo fundo de uma agulha. 

Nesse momento soaram as 6 horas e o dr. Niemeyer, sobressaltado, saltou do leito. 

Uma hora depois chegava à rua do Ipiranga e batia à porta de residência de Mirabelli, indo surpreendê-lo acomodado e entregue ao sono bom das CONSCIÊNCIAS TRANQÜILAS. 

– Então, seu patife, os seus fenômenos de mediunidade são produzidos por meio de um fio de cabelo…– !…

– É inútil qualquer explicação. Acabo de ter a prova irrefutável dos seus estratagemas. Aconselho-o a que saia de S. Paulo, antes que a polícia seja obrigada a intervir. 

E Mirabelli, estremunhado, como se acordasse de um longo pesadelo, apenas exclamava: 

– Mas, dr., então foi para isso que veio despertar-me… 

E, dizendo isso, mergulhou a cabeça na maciez dos fofos travesseiros, ao lado da esposa, que ocultava o rosto, possuída de vergonha. 

Nesse mesmo dia, no consultório do dr. Niemeyer, Mirabelli procurou dar as explicações que aquele distinto facultativo recusara aceitar pela manhã. E, com idêntica teatralidade com que muitas vezes se lançara diante do retábulo de Cristo, rojou-se-lhe aos pés, chato como um selo, chamando-lhe igualmente, entre lágrimas de crocodilo, o “seu mestre protetor”. 

– Era tudo uma infâmia do “Correio”! Que não o comprometesse, pois a sua desgraça seria irremediável. Tinha mulher e filho! 

E o emérito mistificador com uma admirável lábia convincente desenhou o quadro negro da sua miséria, tal qual como fizera tantas vezes ao nosso prezado amigo dr. Alarico Silveira, para lhe obter as generosas dádivas do seu bondoso coração. 

Três dias se passaram sobre essa emocionante cena de… pouca-vergonha; e o dr. Niemeyer, munido dos “fluidos” que lhe oferecemos, seguia para o Rio, em visita ao seu velho pai, que completava mais um ano de existência. 

Citado nominalmente pela “Noite”, que iniciara uma reportagem sobre o “caso mirabéllico”, o conceituado clínico dirigiu-se à redação daquele nosso distinto colega e ali, dentro de um limitado número de pessoas cultas, reproduziu, com surpreendente êxito, os “fenômenos de mediunidade” do sr. Carlos Mirabelli.  

Para amanhã: 

Ainda as demonstrações práticas do “Correio Paulistano” – Os nossos colegas do “Commercio de S. Paulo e do “Fanfulla” manifestam desejos de conhecer os “fenômenos mirabellicos” – As impressões dos distintos jornalistas.



[1] No original está – aparentemente – escrito “Chentes!”. Penso que seja como era escrito “Gentes” no passado, mas não tenho a mínima certeza disso… talvez seja “Oxentes. (Nota do autor do blog)”

[2] Não consegui ler direito a palavra, parece ser “vatrum”. (Nota do autor do blog).

[3] Pode ser 22, o número está muito borrado, mas penso que a sessão não seria realizada tão tarde, daí penso o correto ser 20 horas e meia, e não 22 horas e meia. (Nota do autor do blog)

[4] Não estou certo se esta é a palavra, está borrada. (Nota do autor do blog)

[5] Sapateiro em italiano (Nota do autor do blog).

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