AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 24)
Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.
Correio Paulistano – Domingo, 25 de junho de 1916, páginas 3 e 4
No mundo das maravilhas
Fez-se luz em a noite do mistério
O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador
AS NOSSAS PESQUISAS
Mais depressa se apanha um mentiroso…
Desfazendo lendas – A CAVEIRA DA “CASA FRETIN”
Curiosa verificação na “Casa Villaça”
Uma saída honesta para o sr. Mirabelli
I
AS NOSSAS PESQUISAS
Esclarecidos vários interessantes pontos desta sensacional reportagem, continuemos a azarar outras curiosidades das nossas pesquisas, as quais completam, num magnífico alto relevo de franqueza e verdade, o vasto inquérito jornalístico sugerido pelas trampolinagens do desalmado adivinho que, a prosseguir como vai, é impossível que não arruma ainda aos crendeiros alguma peça que, num desenlace fatal e violenta, o [ilegível] nos formidáveis tentáculos da polícia.
Essas indagações, como todo e largo o meticuloso trabalho de esquadrinhar aqui e além tudo o que dissesse respeito ao nosso caso, – lucubrações silenciosas, observações detidas, pesquisas delicadas, um mundo de pequeninos nadas que se foram agregando, em justaposições inabaláveis, até a formação completa de todas as passagens da picaresca ilíada mirabéllica, releva dizer, ainda como uma afirmativa ao interesse com que nos empenhamos nesta empresa, que foram aventadas e dirigidas pessoalmente pelo redator-secretário desta folha.
Assim também, para que adeptos e sequazes inclassificáveis do barbaçudo fetiche, cuja fisionomia amorfa, de saltimbanco, ora com a ignescência dos tomates maduros, ora com a macilência ictericiada das velas… de cera, não levantem, embora inócuos, malévolos boatos, ignaramente forjados em bastidores equívocos, contra a indiscutível seriedade dos nossos conceitos e os calorosos anhelos que nutrimos de acautelar os simples e os irrefletidos, permita-se nos ainda repisar que os intuitos, que os motivos que nos abalançaram a cometer esta iniciativa, que tudo o que temos feito e faremos, colima, única e exclusivamente, restabelecer a Verdade.
Nem temos em absoluto necessidade do contrário.
II
DESFAZENDO LENDAS – O TAL MOVIMENTO ATRAVÉS DE PORTAS
O “homem misterioso” é um rival tremendo dos fiéis da famosa seita grega dos Antisthenes, que lá floresceu em Cynosargo, sítio da gloriosa Helíade. Em cinismo ninguém há que o suplante: o seu temperamento, de uma gracialidade esquimal, revolta. Deu disso exuberantes provas quando foi das cinco sessões, coroadas do mais retumbante fracasso: bradou aos céus, por vezes, a sua ignara indelicadeza para com o júri que lhe assistiu com uma evangélica tolerância de apóstolos.
Outro fato que demonstra categoricamente o sangue frio do arrolado espertalhão. Com o só fim de o desmascarar, reproduzimos os seus fenômenos. Às vezes, porém, como um chistoso complemento à série de sortes que já iam adquirindo foras de lugares comuns, e a fim de quebrar a monotonia desse naturalmente gasto repertório mirabéllico, criou vários números novos o nosso colega. Entre esses figura um dos mais triviais, qual seja, o de mover objetos a distância, podendo o operador catar deles separado por uma porta fechada e até por uma parede de pedra e cal, resistente como a do nosso edifício, que conta perto de meia dúzia de andares.
Foi essa mágica que abalou profundamente o sr. dr. Everardo de Souza. Este distinto cavalheiro, com mostras de alta admiração pelos fenômenos devidos aos “espíritos materiais” que solicitamente acudiram aos brados evocatórios do refinado biltre, referiu a um vespertino, entre outras cousas que lhe pareceram assombrosas, o movimento que o solerte pandego imprimiu, de grande distância, através de uma porta envidraçada, a um sarrafo que, equilibrando-se sobre o gargalo de uma garrafa, sustinha um copo em cada extremidade.
Completemos agora, com toda a exação, a idéia esboçada num dos períodos transactos. Essa manobra do sr. Mirabelli demonstra mais uma das suas espertezas. Vendo que ia sendo derrotado por alguns concorrentes, que jamais abusaram do respeito que devemos aos mortos, nem levam nada pelos seus servicinhos elucidativos, deu-se pressa em aproveitar o novo número ideado pelo nosso companheiro, número este que não acudira ao bestunto do assunto ex-eletricista, e que era realmente de grande efeito, podendo mesmo figurar nas experiências solenes.
Foi o que fez.
Muito antes do audacioso polichinelo deslumbrar o diretor do Instituto Disciplinar, com aquelas simplíssimas reviravoltas de um sarrafo em equilíbrio, lá o mesmo “fenômeno” por várias vezes se constatara, graças aos excelentes fluidos dos nossos colegas, no salão nobre desta folha, em pleno coração da [dou(tora?)] Paulicéa. Uma das primeiras dessas experiências foi assistida, entre outras pessoas, por um distinto escultor, muito conhecido entre nós, o qual, tendo uma fotografia nas mãos, pediu ao nosso, secretário que, saindo do salão, a fizesse mover. Este, então, se retirara para o corredor, sendo a porta trancada pelo próprio artista, que se capacitava daí a momentos, ante a fotografia que fazia evoluções na palma da sua destra, que a força mediúnica, ou o que quer que fosse, do jornalista, era tudo o que havia de mais extraordinário no gênero!
O dr. Alcyr Porchal foi testemunha de uma experiência como acima descrita, tendo ele ficado, como o artista, separado de nosso operador pela espessura de uma porta fechada. Não obstante isso, um papel lhe foi retirado das mãos, sem invocações espalhafatosas, nem mesmo o complemente fantástico de barbas e cabelos desproporcionais…
A experiências dessa mesma natureza assistiram ainda, muito antes da realização na chácara do coronel Goulart, pelo pseudo-médium, os srs. dr. Cyro de Freitas Valle, oficial de gabinete do sr. presidente do Estado; Américo Alves, de Batataes; Alfredo Arantes, funcionário do Tesouro do Estado e irmão do sr. presidente de S. Paulo; dr. Joaquim Ferreira da Rosa, Aristéo Seixas, [Gelaslo?] Pimenta, dr. Alarico Silveira, Joaquim Morse e outros cavalheiros, cujos nomes nos escapam neste momento. Todos esses senhores tiveram ensejo, como dissemos, de contemplar “fenômenos”, MESMO AO PÉ DOS LUGARES
Logo… o fatídico charlatão de Botucatu, com habilidade e hipóteses sugestionantes, procurou agora imitar-nos, merecendo os títulos e comendas que levianamente lhe outorgam, graças exclusivamente ao apresentar-se com o nome de espiritista, sem o menor escrúpulo, de fingir invocar almas dos que o Mestres já gulou para as bem-aventuranças do seu Reino.
Essa é a verdade.
III
MAIS DEPRESSA SE APANHA UM MENTIROSO…
À toa não é, positivamente, que dizem estar hermeticamente encerrado nos provérbios toda a filosofia humana. Pelo menos agora, para o nosso caso, é de uma sabedoria à prova de fogo o enunciado da popularíssima sentença moral que aproveitamos para epigrafar as ligeiras linhas deste capítulo.
Atentem.
De cada vez que, engrossadas, deformadas, multiplicadas pela vozeria daquela parte do público, que crê em alusões a lendas absurdas, nos chegavam aos ouvidos as maravilhas do sr. Carlos Mirabelli, refletíamos, ponderávamos, meditávamos com toda a isenção de ânimo, como compete aos que visam, acima de tudo, os indestrutíveis princípios básicos da Verdade.
Analisávamos então, como soem fazer os experimentadores que desfibram os tecidos para as delicadíssimas preparações microscópicas, tudo o que a crendice transformava mais do que em milagres, em prodigiosas concepções de eriçar… os cabelos.
QUANDO, NO ENTANTO, O NOSSO SECRETÁRIO SE ENCONTRAVA DIANTE DE UM CASO VERDADEIRAMENTE MISTERIOSO, QUE NÃO PODIA SER SOLUCIONADO PELOS “TRUQUES” QUE DESCOBRÍAMOS, TINHA-O LOGO COMO INVENCIONICE. APESAR DISSO, PORÉM, COM O INTUITO DE ENUCLEAR A VERDADE, DIRIGIA-SE ELE, IMEDIATAMENTE,
Foi assim que verificamos a audácia do petulante bruxo, que é, além do mais, um refinadíssimo mentiroso. A seguir referiremos o resultado de algumas dessas pesquisas, com as quais tudo o que se dizia de macabramente estupendo se reduz a órbita das coisas possíveis e realmente realizáveis por qualquer mortal, logo que, dentro de mais alguns dias, desvendemos com todos os pormenores as tricas necessárias aos quais desejarem iniciar-se na vulgaríssima cabala mirabéllica.
Entre as muitas sandices impingidas pelo excepcional manobrista, conta-se aquela de andou de boca em boca, chegando mesmo, segundo nos parece, a ser noticiada por um vespertino – que o pseudo-médium, nu e de mãos atadas, havia, num gabinete da casa do dr. Alberto Seabra, ante algumas sumidades científicas, realizando os fenômenos que por aí correm mundo. É uma mentira. No entanto, o cínico charlatão, na última assembléia que se estabeleceu graças ao nosso repto – na qual o mago foi de um despudor sem nome, que motivou a audiência um movimento de incontida revolta e nojo – ao despir-se teve uma frase chula, com que procurara confirmar, hipocritamente, um dos seus falsos “milagres”:
– Em casa do dr. Seabra trabalhei nu e amarrado de pés e mãos.
Não era verdade. Disse-nos, em sua residência, o dr. Alberto Seabra, que o sr. Mirabelli lá estivera de fato três ou quatro vezes; que nas duas primeiras executara as “maravilhas” que costuma praticar; entre essas contou-nos que retirara ele também um dedal de um vaso fusiforme; e outras cousas, as quais, a seguir, um dos nossos companheiros executou também, para que o ilustre homem de ciência se certificasse das intrigas de escamoteador. Não reproduzimos tudo o que conversamos com o distinto clínico porque não o visitamos propriamente com o fim de entrevistá-lo, mas apenas com o intuito de pedir-lhe que nos narrasse aquilo que ouvíramos com o mais escandaloso dos exageros. Foi, pois, perfeitamente enfronhado no que se passara no lindo palacete do brilhante intelectual, que o nosso secretário presente, como nas demais, também a essa memorável quinta experiência, respondeu ao mentiroso adivinho, escachativamente:
– Não é verdade. O sr. esteve de fato em trajes de Adão; vestiram-no depois com uma capa de borracha; em seguida mudaram-lhe meias e pentearam-lhe as barbas e os cabelos; por fim ataram-no de pés e mãos – tudo isso é verdade.
– Então?
– Nesse dia o sr. nada fez!
– O dr. Seabra nada viu; viram os fenômenos outras pessoas…
Evadia-se vergonhosamente, querendo inculcar a mentira com uma fleugma que repugna. De resto, quando comparecera ao desafio, fora com a íntima convicção de nada fazer – porque nada fará diante de rigorosa fiscalização. O dr. Ulysses Paranhos, que estava presente à prova em casa do dr. Seabra, declarou-nos também ser absolutamente falso que o pseudo-médium tivesse realizado qualquer fenômeno; afirmou, categoricamente, o que antes nos dissera o dr. Alberto Seabra.
Assim Mirabelli é o mais audaz dos espertalhões conhecidos…
[FOTO]
O “Homem Misterioso” – Discípulos de Mirabelli – (D’“A Cigarra”, de 18 do corrente)
IV
A CAVEIRA DA CASA FRETIN
Dizia-se – e um diário chegou mesmo a noticiar o estupendo caso – que o sr. Mirabelli, na ocasião de comprar uma caveira na casa Frentin, à rua de S. Bento, praticara curiosíssimas proezas com o referido objeto, ainda quando ele se encontrava dentro da vitrina.
Mas para que diabo queria o médium uma caveira? Isso não cheira a exploração? Têm a palavra os adeptos do homem-prodígio, que naturalmente acharão razoável que o seu “profeta” ande a carregar, por onde vá, uma caveira, a fim de com ela demonstrar para quanto servem as “almas” que ele traz… nos bolsos e nos botões.
Mas, ao caso. Para esclarecer o fato, resolvemos procurar o sr. Alfredo de Castro, digno e operoso gerente daquele importante estabelecimento. Indagamos então do que havia de verdadeiro. O moço sorriu-se. Instamos:
– Mas então, como se diz, o crânio, remexendo as mandíbulas, não rilhava os dentes? Pois isso corre por aí…
Riu-se de novo:
– Qual! Tudo mentira, pura invencionice…
– Mas os srs. venderam-lhe, de fato, uma caveira?
– Isso é verdade. Mas nem ela se achava na vitrina, nem franziu a testa óssea: muito menos rilhou os dentes ou saiu aos pulos por aqui fora…
– Ah!
– A cousa foi a mais simples do mundo. Aquele moço que aí está o sr. vendo, foi quem a vendeu. Embrulhou-a calmamente, entregou-a depois ao freguês.
– Veja o senhor!
– Devo acrescentar-lhe que todos aqui assistimos àquela venda comercial.
– Pois olhe! Diz-se ainda que todos os empregados da casa, espavoridos, puseram-se a fugir…
– É boa! Todos os da casa podem lhe atestar o que lhe referi. É a pura verdade. Aqui não houve correrias: daqui a caveira saiu tão muda e fria como quando para cá chegou. Ninguém fugiu. Teria isso muita graça…
Por aí vão vendo os leitores como as coisas se modificam na voz do povo. Imaginem que até o dr. Anthero Biosm, nosso ilustre amigo, distinto taquígrafo da Câmara dos Deputados, foi dos que nos relataram, ouvido a pessoas de máximo conceito, o caso da caveira que mastigava… no mostruário da Casa Fretin.
V
VERIFICAÇÃO NA CASA VILLAÇA
Depois de nosso repto, enquanto não era este respondido, tratamos de colher mais dados, a fim de completar a nossa reportagem sobre o caso. Assim foi que, sabendo do próprio sr. Mirabelli, que fora ele empregado da Casa Villaça, nos dirigimos àquele importante estabelecimento, ansiosos de ouvir, “das pessoas da casa”, as maravilhas que o intrujão nos contara. Dessas, apenas confirmara uma parte mínima o amável gerente daquela importante casa de calçados.
Ora, como dissemos, na entrevista que nos concedera, e que os leitores já conhecem, o sr. Mirabelli declarou que, quando empregado no conceituado estabelecimento de calçados denominado “Casa Villaça” e situado à Rua Direita, realizara ali cousas assombrosas. “Para servir um freguês, bastava o ‘médium’ fixar uma caixa de sapatos para que ela, saindo do alto da prateleira, viesse pousar mansamente sobre o balcão. Isso ainda não era nada: a uma ordem sua, as cadeiras davam de andar pela loja, caminhando com as quatro pernas, como qualquer cão caseiro”.
Tais maravilhas, mais tardes confirmadas por um vespertino, deixaram-nos intrigados, porquanto com o truque que descobrimos no tapete do nosso salão nobre, não era possível realizá-las. Dar-se-ia que o “médium” usasse de outro truque, além daquele por nós descoberto?
Resolvêramos tirar o caso a limpo, tanto mais quanto desejávamos que o nosso inquérito fosse o mais completo possível, como os leitores estão vendo que efetivamente é.
Dirigimo-nos, pois, à “Casa Villaça”. Lá chegamos pelas 18 horas. Não estava o sr. Villaça, nem o gerente da casa, sr. Pontes.
Começamos a palestrar com os empregados.
– O sr. Pontes foi jantar, mas não demora. – disse-nos um deles. Dentro de poucos minutos estará por aqui.
Efetivamente, poucos minutos depois chegava o simpático gerente.
– Somos do “Correio Paulistano” – dissemos – e desejávamos algumas informações sobre o “homem misterioso”…
– O Mirabelli? – perguntou, amável e sorridente, o sr. Pontes.
– Exatamente. Corre por aí, e um jornal chegou mesmo a noticiar hoje, que o homem, quando aqui empregado, fez cousas do arco da velha… As caixas saíam das prateleiras, as cadeiras caminhavam pela casa…
– Não é verdade – respondeu-nos o sr. Pontes. E continuou: Antes de mais nada devo declarar-lhes que ele não foi propriamente nosso empregado; esteve aqui como um “encostado”. Condoído da sua situação, que era, com efeito, precária, o sr. Villaça admitiu-o aqui em caráter provisório.
– E ele foi dispensado – acrescentamos nós – porque a freguesia, assombrada com os seus fenômenos, não queria mais entrar aqui?
– Também não é verdade. Ele, como lhe dissemos, não era propriamente empregado da casa. Auxiliávamos apenas em alguns serviços; já no balcão, já fazendo cobranças.
– Mas que fez aqui o “homem”?
– Cousas espantosas. Movia as botinas sobre o balcão; tirava cartas de baralhos (o que foi por sinal que achei mais extraordinário). Uma vez fez caminhar mesmo a bengala do sr. Villaça.
– Só isso? Não vimos nada de importante. Então as caixas não saíam por aí sós lá do alto, nem as cadeiras corriam, a fim de que nelas se assentasse a freguesia?
– Isso não.
– Era só o que desejávamos saber. Muito obrigado.
– Mas os senhores “vão perder”, porque o Mirabelli tem força…
– Sabemos disso; nós também a temos. Tudo isso que o senhor nos contou, fazemos com a maior facilidade.
– Não é possível! Mas com truques?
– Qual truques, com “força mediúnica”, a de lei, tão de lei que ela foi cedida pelo próprio “homem-prodígio”…
– Mas será possível!
– Positivamente! Mas que mais fez o homem?
– Ali fora (apontou-nos uma área ao fundo) fazia cousas verdadeiramente espantosas, mas iguais as que lhe citei…
Um moço que ouvia a nossa conversa, e que era empregado da casa, atalhou, com certa malícia:
– Ali fora, no escuro, as cousas eram feitas mesmo com mais perfeição – viravam, pulavam com uma intensidade muito maior da que notamos aqui dentro…
Retirávamos já, quando o sr. Pontes aludiu a uma experiência do sr. Mirabelli pelo dr. Luiz Pereira Barreto.
– É verdade, indagamos, o prestímano fez subir o chapéu do sábio até ao teto da casa? Como foi isso?
– Subir, não: pedindo-o ao dr. Barreto, colocou-o sobre o balcão e fê-lo mover-se.
– Ah! Muito bem. Isso é sem importância…também nós fazemos.
E agradecendo a atenção com que nos recebera o sr. Pontes, retiramo-nos satisfeitos com esses nossos passos, que esclareceram umas tantas das lendas que por aí correm deformadas pelo exagero das massas.
Antes dessa visita à Casa Villaça e antes mesmo do nosso repto, mais ou menos na ocasião em que uma folha noticiava o aparecimento do “homem dos milagres”, o sr. Mirabelli visitou-nos pela última vez. Por essa ocasião, o nosso secretário, sem querer ser a palmatória do mundo, mas unicamente levado por um sentimento de humanidade, pois que “já havia descoberto a cousa”, deu-lhe uns
CONSELHOS QUE LHE PODIAM SER MUITO ÚTEIS
caso Mirabelli deles não abrisse mão num largo gesto de “predestinado”.
Disse-lhe o nosso companheiro, mal ocultando, num sorriso malicioso, toda a grande pena que lhe enchia a alma:
– Olhe! Você por que não arranja um emprego? Vamos tratar disso! A sua “profissão atual” é cansativa e trabalhosa…
– Mas qual – respondeu – volvendo os olhos para o teto. Isso já não é possível. Eu agora penso que a vida toda serei assim…
E tinha, ao falar, uma expressão enigmática, misto de melancolia e renúncia, de quem se procurava inculcar como um “enviado”, que, no desempenho de alguma “missão divina”, devesse palmilhar, como o discípulo de Buda, resignadamente, as urzes deste mundo ingrato e mau.
O Fonseca, porém, querendo “sondá-lo”, insistiu:
– Qual! Deixe-se disso! A sua “força mediúnica” não pode ser incompatível com uma profissão honesta, que lhe garanta a subsistência. Você, para viver, naturalmente precisa trabalhar. Tendo garantido o seu “pão de cada dia”, então sim, deverá “exercitar-se nas experiências” até adquirir o “supremo grau da força”, que com certeza lhe está reservada.
– Qual! Agora, só tenho a pensar na morte. O nosso fim está próximo… é preciso muita paciência… não há mais fé… há uma falta absoluta de caridade…
– Compreendo tudo isso, mas volta cá “para conversarmos”….
– Pois si, virei. Mas agora só espero a recompensa de Deus…
Diante das palavras do médium, cuja força foi garantida até “sob palavra de Honra”, o nosso secretário deixou-o em paz, no corredor da redação desta folha, e passou para a sua secretária, a despachar o expediente.
Essa foi, apesar da promessa de outra visita, a última do sr. Mirabelli a este jornal. Desde esse dia, entrou em declínio, nos nossos círculos, a fama do “célebre professor”, que, logo depois do repto, num desespero de causa, “se agarrou furiosamente a algumas respeitáveis personalidades do nosso meio social jornalístico e científico”, a fim de que não se afundasse repentinamente, para todo o sempre, no abismo do ridículo. Distintos cavalheiros, que o bafejavam e quiçá ainda o bafejam com a sua reputação,deram-lhe a mão, amparando-o piedosamente na queda, a qual, apesar de toda a solicitude dos seus padrinhos, lhe será fatal, pois que nunca mais o ousado prestímano passará mel no beiço de ninguém…
Terminando, diremos que, ao convidar o sr. Carlos Mirabelli, em nosso intuito, logo que nos procurasse ao outro dia, revelar-lhe que estávamos senhores dos seus “truques” e que deixasse de mistificar os ingênuos. Mas nunca mais nos apareceu, por seu mal. Tivesse-nos aparecido e veria que não somos de tão maus bofes como nos parecemos aos seus êmulos, pois era mesmo muito possível que, com a nossa pouca influência, o auxiliássemos na procura de um emprego, com que pudesse viver honestamente a sua vida…
Era esse o nosso intuito.
* *
FLUIDOS MIRABÉLLICOS
Minha menina de cabelo loiro:
Tu que os meus dias tristes amenizas
E as feridas de amor me cicatrizas
És o meu bem, o meu maior tesouro.
Com os teus altos encantos me escravizas
Vive a teus pés como um cativo moiro
E para ti, com a fantasia, doiro,
Um reino sem fronteiras e balizas…
Com efeito, és rainha entre as rainhas…
Guardas comigo a força misteriosa
Com que eu levanto lápis e caixinhas.
Prezei-te sempre os dotes arcangélicos
Mas hoje te amo mais, porque, formosa,
Tu me forneces fluidos mirabéllicos!
Beato da SILVA.
Para amanhã:
Mirabelli prestidigitador e palhaço de circo de cavalinhos
DE PELOTIQUEIRO A MÉDIUM
Ninguém é profeta em sua terra…
Uma carta apócrifa a um vespertino
FAZ-SE A LUZ…
Os nossos “fenômenos de vidência”