AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 27)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.

Correio Paulistano – Quarta-feira, 28 de junho de 1916, página 2  

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério 

O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador 

Os famosos casos de vidência 

Como foi que Mirabelli alcançou as prerrogativas de um vidente extraordinário 

O falso médium tem um sócio 

Constou-nos ontem que o sr. Carlos Mirabelli, num inclassificável excesso de audácia, tenciona realizar uma das suas sessões perante alguns distintos médicos paulistas. Não acreditamos absolutamente que o intrujão [ilegível] o seu cinismo a esse ponto, pretendendo, num desespero de causa perdida, prolongar indefinidamente a irrisória farsa de que tão mal se saiu.  

Caso, porém, seja fundado o boato que aqui ecoou, apressamo-nos a convidar todos os facultativos de que se deve compor a aludida reunião, a comparecer nesta redação, antes de assistir à experiência mirabéllica, a fim de apreciar uma das nossas demonstrações práticas dos processos de que se serve aquele prestímano para intrujar os crédulos e os incautos. 

Assim, os cavalheiros que posteriormente assistirem às mágicas do ilusionista estarão plenamente enfronhados em todos os seus “mistérios” de modo que, mesmo sem o revistarem previamente, poderão desmascará-lo lavrando um auto de flagrante delito, para honra da nossa perspicácia e glória da cultura paulista.  

I 

Entre as circunstâncias que levavam muita gente a crer no sr. Carlos Mirabelli, e até mesmo a jurar serem as suas mirabolantes escamoteações obra indiscutível dos espíritos, contam-se  

OS FENÔMENOS DE VIDÊNCIA, POR MUITOS ATESTADOS COMO REAIS, E QUE, NO VER DOS CRÉDULOS E DOS INGÊNUOS, 

representavam, nestes esclarecidos dias do modernismo, em que a prosaica parelha da eletricidade e do rádio transforma as mais belas tendências do nosso espírito eminentemente lírico, como os rouxinóis da Europa, em ambições [mazorras?] de utilitaristas impenitentes. Hoje triunfa em toda a parte o ouro sonante das libras; prefere-se um grande lance na bolsa, a conquista de sólidos capitais, salames e legumes, a tudo o que diga as belezas espirituais da vida. O pessimismo intransigente do século não suporta mais que duas linhas de leitura nas folhas diárias: lê os suicídios, os telegramas da guerra, dramas escandalosos. As obras de arte têm ainda os seus austeros adeptos, dedicações de escol, gênios que se consomem a remexer a poeira pérfida das bibliotecas; prosa e verso, se bem que num estilo novo, em que a harmonia atingiu as formas supremas através do gênio dos grandes estetas das escolas modernas, arrastam ainda, com os seus ritmos serenos, as suas idéias, a sua estrutura uma e perfeita, a imaginação de alguns letrados, inconfundíveis paladinos das novas gerações. Mas a ciência? A ciência, a nobre educadora dos povos, resumo de sabedoria, conjunto de luzes e dos supremos conhecimentos dos homens, essa só os integérrimos defensores do “excelso enviado” ainda a cultuara com devotamento de filósofos e sábios – clamam por aí, vociferantes, alguns defensores das patifarias do hábil charlatão.  

Tudo porque a ciência foi chamada para explicar magias de pelotiqueiro. Do cenáculo em que fascina, entornando luzes; dos laboratórios complicados, em que passeia triunfal entre os microscópios, as últimas descobertas de Metchnikof, a vacina antitífica, o [914?] e outras profundas elaborações do cérebro humano; dos [massudos?] in-folios em que vive, transformada em fórmulas e símbolos; das faculdades, dos ginásios, dos ateneus, de toda parte onde ela é adorada como uma deusa pouco acessível às cintilações do vil metal, o que apenas se dá de braços abertos, no pleno esplendor das suas maravilhas, aos grandes de talento, desceu ela a estudar, mas sem proveito, as imperceptíveis manobras de um prestidigitador. Para os que aceitam servilmente como de fonte transcendental as palhaçadas mirabéllicas, somos daqueles que, pondo de parte versículos bíblicos, obras famosas de sábios, todo um mundo maciço de ciências positivas e ocultas, se entregam de olhos vendados aos preceitos da filosofia materialista, quando se não saturam de pirronismo, acabando por descrer de céu, de inferno, e de almas do outro mundo, para viverem apenas reconciliados com instintos animais, fruindo as fartas e convidativas doçuras de uma vida eminentemente burguesa. 

Não fosse assim, – dizem – e creríamos nós nas pantomimas piegas do ex-comparsa de circo. O motivo, porém, que nos levou a desvendar tal mistério, pondo as coisas em pratos limpos, é sabido do público. A parte material das magias, já foi mais ou menos explicada, no transcurso de alguns dos capítulos [transactos?], sendo que ficará PERFEITAMENTE ESCLARECIDA antes de pingarmos o derradeiro desta reportagem, que a pena adestrada de um romancista de 1830 teria transformado numa brochura de gelar sangue nas veias e arrepiar… cabelos. Quanto à parte psíquica, aquela força sobrenatural de vidência por muitos atribuída ao charuteiro da rua da Boa Vista, vamos agora esclarecê-la, na certeza de que ficará definitivamente modificada a opinião que dele fazem os homens de boa fé, os quais devem reabilitar-se a tempo de escarmentarem, com todo o ímpeto de uma bondade atraiçoada, aquele que, com tão indesculpável propósito, abusou dos nobres favores da sua simpatia.  

II 

DOIS TRAÇOS DA PSICOLOGIA DO CHARLATÃO 

Carlos Mirabelli, aqui e ali, nos lugares em que se apresentava, desde os lares mais distintos e mais honestos de impolutas famílias de nossa mais fina e fidalga sociedade, até ao alcouce vil de tristes cortesãs, que vivem a curtir as suas misérias, desamparadas nos braços da sorte madrasta, foi sempre o mesmo homem, senhor da mesma fleuma e da mesma audácia. Às vezes calmo, entremostrando os dentes brancos num sorriso; às vezes frenético, correndo os dedos em crispações alucinadas pelas barbas e pela vasta cabeleira de poeta nefelibata; às vezes informando-se jeitosamente do nome de pessoas falecidas; às vezes inculcando-se um grande sofredor, do que absolutamente não duvidamos, ia captando, aqui e ali, um grande círculo de admiradores. 

Fez adeptos. 

Um dia, porém, turvaram-se os horizontes. A nossa descoberta desnorteou-o; ficou por longo tempo como que num letargo; tal um marlola que, numa luta de murros, levasse com o peso de uma vasta manopla no nariz, rolando, numa queda surda, para a poeira da rua. Almas crédulas, porém, salvaram-no; auxiliaram-no mesmo, a fim de que se reabilitasse. Foi só então, talvez, que Carlos Mirabelli se certificara de vez da vastidão de seu prodígio. Como o espanto de um cego que recupera a vista ou de uma criança que pela primeira vez abre os olhos para a luz, devera ter sido o magno espanto que o entrara, sacudindo-o pelas entranhas nas vibrações de júbilo mais intenso. Alcançara a sanção do povo; aqueles cordeiros que lhe acudiram à voz, salvaram-no; protegia-o a estóica credulidade da nossa raça, cuja etnografia [recuma?] as singularidades do negro na África melancólica e a idolatria pagã do índio que adora a pedra e o fogo; aquele gesto inesperado era para ele o que a palavra divina fora para as tristes irmãs Marta e Maria, da aldeia da Betânia, quando lhes ressuscitara o irmão amado que há quatro dias apodrecia no seu túmulo… 

Era a salvação e a glória. Com a mesma larga e sacudida alegria com que Ulisses deixou o soberbo presídio de Ogigya, escapava-se ao dedo que o apontava como um impostor vulgar. Foi então que aceitou o nosso repto para moer, numa última cartada de revoltante cinismo, a paciência e a tolerância de distintíssimos cavalheiros, dignos pelo seu saber, pelas suas qualidades de caráter e de alma, de todas as considerações. A esse tempo já o sr. Carlos Mirabelli, antes tão dócil e prazenteiro, começava de apresentar-se com rompâncias quixotescas, amplos gestos de mágico antigo, numa atitude cômica de farsista. O seu vocabulário, até então social, descera a apresentar-se recamado dos palavrões da gíria mais baixa e suja. Tornara-se, até certo ponto, inconveniente, pois quando se exaltava, ante qualquer insinuação, descia a essas dissonâncias dos léxicos capadoçais, pouco se lhe dando, ainda em atenção a senhoras, prezar o respeito e a moral, que são, da sociedade, como que as salvaguardas de bronze, ante a qual se reverenciam todos os cidadãos honrados.  

III 

Relevem-se-nos tais contradições que, pela sua indispensável prolixidade, retardam, por momentos, a exposição dos fatos. Esses, porém, são traços psicológicos interessantes, que não podemos obscurecer, com pena de sermos infiéis ao nosso programa. Por susceptibilidades casuísticas, jamais inventaríamos; portanto, é justo que surja a verdade em todo o esplendor da sua nudez. Ademais, como hoje trataremos de questões psicológicas, ou seja da força anímica do pseudo-médium, são indispensáveis esses preliminares, de que todos se certificarão, acompanhando-nos nesta sucinta  

DESCRIÇÃO DE ALGUNS FENÔMENOS DE VIDÊNCIA 

graças aos quais o solerte botucatuense tem embasbacado mil e uma pessoas de todas as cores sociais. Saiba-se, antes de mais nada, que o sr. Carlos Mirabelli, faça-se-lhe justiça, É POSSESSOR DE UMA EXCELENTE MEMÓRIA; em segundo lugar, não é demais saber-se também que, COMO ARTISTA DE UM CIRCO, VIAJOU DURANTE ALGUNS ANOS CONHECENDO QUASE TODO O INTERIOR PAULISTA E MESMO PARTE DE OUTROS ESTADOS, como nos disse quando o entrevistamos; em terceiro lugar, como hão de ver de documentos a publicar-se a seu tempo, O HOMEM MISTERIOSO É VERSADO NUMA BROCHURA INTITULADA “MAGIA MODERNA”, e que ensina coisas do arco-da-velha; em quarto lugar, foi ele NEGOCIANTE, ESTABELECIDO COM CHARUTARIA, MANTENDO DESS’ARTE RELAÇÃO COM AVULTADO NÚMERO DE PESSOAS; em quinto lugar, o sr. Carlos Mirabelli FOI COBRADOR DA CASA VILLAÇA; em sexto, TEVE CASA DE ARTIGOS ELÉTRICOS DURANTE ALGUNS ANOS, A QUAL FAZIA INSTALAÇÕES E OUTROS SERVIÇOS DAQUELE RAMO DE NEGÓCIOS; em sétimo, FOI EMPREGADO DA COMPANHIA DE GÁS, SEGUNDO NOS DISSE, PELO QUE, POR DOIS ANOS, ANDOU DE PORTA EM PORTA POR TODO ESTE S. PAULO, no mister de reformar instalações, colocando camisetas nos bicos da iluminação a gás; em oitavo, foi empregado em gabinete dentário, e, em nono, trabalhos em fotografia. 

Isso é alguma coisa da muita que sabemos. Estamos pois perfeitamente aparelhados com documentos irrefutáveis para afirmar que, graças às suas ocupações, o sr. Carlos Mirabelli pode ufanar-se de conhecer a nossa capital interna a externamente; isto é, tal qual como nós hoje o conhecemos, com todos os seus defeitos e maldades, muitos dos quais, no entanto, ocultaremos, por um sentimento íntimo de pena e comiseração. 

Ora, é bem de ver que quem, como um médico, uma parteira, um padre, penetra uma casa, no exercício da sua profissão, FICARÁ, AINDA QUE NÃO O QUEIRA, COM A IMPRESSÃO LOCAL GRAVADA NA MEMÓRIA.  

Ainda mais: um clínico ou uma parteira, que tiveram a sua atenção fixa numa pessoa doente, gravarão mais o que diz respeito ao enfermo; o padre, por exemplo, ao retirar-se de um lar em que confessara um moribundo, levará na idéia, fatalmente, as feições deste – o aspecto macilente, o olhar encovado, a respiração vasquejante. Muito bem. Se assim é, que MAIS SUGESTIONARÁ UM ELETRICISTA AO FAZER UMA INSTALAÇÃO NUM PRÉDIO? Com certeza, em primeiro lugar, A FACHADA EXTERNA, ONDE COLOCA OS FIOS, a que devem ser ligados os transmissores da corrente; em segundo lugar O INTERIOR, PRINCIPALMENTE OS CÔMODOS EM QUE TRABALHE, OU SEJAM TODOS OS APOSENTOS DE UMA CASA,  pois rara é aquela, que tenha iluminação elétrica ou a gás, que não possua no mínimo um bico ou lâmpada em cada aposento. Assim, portanto, pode-se resumir: fora – portão, jardim, alpendre, a cor, arquitetura, o botão da campainha, a garagem, os andares, a cor das telhas, a escadaria de mármore et reliqua; dentro – sala de visitas: ao pendurar o lustre, viu o oficial, que era ela empalada de azul, que tinha um belo espelho de cristal, um retrato a óleo ou crayon, aparadores, plano, tapeçarias; nos quartos: cortinados, guarda-roupas, toda a bagagem própria; na sala de jantar, idem; na cozinha, idem. Quando a eletricidade sai, TANTO OU MAIS DO QUE A FEIÇÃO DOS DONOS DA CASA, QUE O PAGARAM, O ASPECTO DAS PAREDES E DOS OBJETOS LHE VAI INDELEVELMENTE ESCULPIDO NO FUNDO DA CACHOLA, através daquelas indescritíveis circunvoluções que, no coração humano, se destinam, como as suas bocas misteriosas, a encerrar todas as torturas do Pensamento.  

Foi assim que o homem se tornou vidente… 

IV 

Foi assim, vamos provar. Com esse intuito, descreveremos fatos curiosos, amálgamas de lances de audácia e de esgares grotescos, que nos foram narrados por pessoas de toda a imputabilidade. Alguns desses aparecerão, mais bem explanados, em INTERESSANTES DOCUMENTOS que dentro de breves dias ofereceremos à curiosidade pública. Antes de relatarmos agora a série de fenômenos de vidência, que vai assombrar os crentes do sr. Mirabelli, mercê das revelações fantásticas desse pálido fariseu me má hora arvorado em Messias, permita-se-nos dar algumas instruções com as quais 

QUALQUER MORTAL SE PODE TRANSFORMAR EM MÉDIUM VIDENTE DE PRIMEIRA ORDEM, CAPAZ DE EMBAIR SÁBIOS E PROFANOS 

uma vez que tenha arte; que desempenhe o seu papel com aquela convicção inabalável pregada pelos mestres do magnetismo e quejandas ciências; que só não perturbe jamais com os naturais fracassos da empresa, avançando sempre avante. Além disso, se se desejar uma fama rápida, semelhante à do sr. Carlos Mirabelli, mais não é preciso do que tratar com os escritores crédulos, que inflamam a opinião, com os supersticiosos, com os sensíveis. Para melhor efeito, é inculcar-se enviado do Senhor, dizer-se médium, dizer ter relações pessoais muito íntimas com os habitantes do Espaço, os quais, num concílio mais célebre que o de Trento, o nomearam seu embaixador plenipotenciário entre as negras misérias deste mundo efêmero e “sem fé”, como lamentava o arrojado “homem que devera ter vivido em priscas eras”… 

Munido dessas precauções, o sucesso será infalível. Outras poderão, no entanto, a essas ser aduzidas. Por exemplo, fazer o que indubitavelmente fez o sr. Carlos Mirabelli, antes de sair e tentar fortuna através dos azares da sorte – isto é, estudar convenientemente o meio; coisas e homens; ter daquelas uma visão nítida e destes, sobretudo das figuras entre as quais terá possivelmente que exibir-se um histórico, que se pode sintetizar no conhecimento de alguns negócios íntimos, bem como o de parentes próximos. O pseudo-médium em questão está perfeitamente enfronhado nestas sutilezas, sobretudo no que diz respeito à reprodução das pessoas mortas, dados e traços que cava de uns e de outros, quando não seja nos jornais, nas revistas e nos almanaques. 

Assim, de posse de tais conhecimentos, nada mais fácil do que dar ao tipo uma aparência típica de “homem superior”, saindo em seguida pelo mundo a invocar almas e a reproduzir casebres e palacetes. Convém notar aqui que o sr. Carlos Mirabelli DESCREVE DE PREFERÊNCIA AS HABITAÇÕES, pelo fato que atrás relatamos de ter sido ele eletricista e de, por esse motivo, poder apreender mais o que diga respeito aos objetos em que tocou. Aduza-se a isto que, em descrevendo uma casa ou um cômodo desta, nunca desce a minúcias; diz as coisas por alto, o que é natural, porque, com o tempo, muita coisa se nos esvai da memória. 

Por sua vez também, a pessoa que o ouve, mais ou menos impressionada com as suas palavras, dispensa os detalhes de boa mente. A crença supre as lacunas da previsão. Este é um caso que se parece com os viciados, que fazem dos sonhos uma eterna fonte de palpites. Depois que jogam e perdem, põem-se a reconstruir os episódios dos sonhos, chegando sempre a encontrar a solução a que antes não chegavam. Isso, porém, só depois que a roda da fortuna lhes surripiou os ricos cobrinhos. O caso se dá, porém, na ordem inversa – o Mirabelli exagera ou diminui o que há de fato na habitação, mas, sugestionado, o seu cliente interpreta as coisas com otimismo, realizando, muitas vezes, com a sua imaginação, aquilo que o bruxo não pudera lobrigar.  

Há ainda a notar que, diante da iminência de um fracasso, nada é mais fácil para o hábil prestidigitador do que dizer – que o espírito não apareceu! Ora, assim qualquer mortal pode transformar-se, do dia para a noite, em médium vidente… 

V 

Mas,  

HÁ AINDA UM MEIO PARA QUE SEJAM INFALÍVEIS OS RESULTADOS DA VIDÊNCIA, 

temos disso certeza, porque dele usa o solerte ex-sapateiro de Botucatu. Saibam, pois, ainda, os que crêem nas suas irrefletidas peças… de extorsões, que o SR. CARLOS MIRABELLI NÃO OPERA SOZINHO: TEM UM SÓCIO. A esse comparsa deve ele, por vezes, os resultados obtidos com as descrições de algumas casas. Sabem como? Vão sabê-lo, que a coisa é, de fato, engenhosa. Uma pessoa, por exemplo, pede ao mágico que vá à sua casa fazer uma experiência. Ele aquiesce. Pede o nome, rua, número da casa. Deles toma nota na sua caderneta, que deve conter coisas preciosas. Toma nota, o que seria desnecessário se, de fato, contasse com o poder de que se diz senhor… 

No outro dia, então, é que entra em cena o tal indivíduo, de que andamos na pista, muito embora tal pesquisa esteja na alçada da polícia. Ela, porém, a seu tempo agirá, com certeza, esclarecendo definitivamente as coisas. Esse sujeito, dizendo-se empregado da Light ou da Companhia do Gás, conforme as conveniências, dirige-se à casa do cliente a ser visitada pelo sr. Carlos Mirabelli. Lá, conforme a iluminação do prédio, o que é fácil verificar, à porta, diz-se então desta ou daquela companhia e pede licença para examinar o relógio da instalação. Dentro, compreende-se facilmente, num relancear de olhos apanha um conjunto do que vê: narra-o ao seu chefe e ele aí a espantar os ingênuos. À toa não é que os empregados daquelas companhias são obrigados a trazer uma placa… o que não impede, aliás, que o sócio do “homem-prodígio” seja, de fato, um funcionário delas… 

VI 

De tudo, porém, que o “maior médium destes últimos tempos” tem realizado, e que reputamos de menor importância são justamente os seus casos de vidência. Como, no entanto, são inúmeros os que mais se impressionam com essa feição do poder do genial homem dos sete instrumentos, resolvemos esclarecer-lhes tais episódios. Relatados os meios de que ele dispõe, passemos agora a referir  

OS DESASTRES DA VIDÊNCIA MIRABÉLLICA 

entre os quais se contam coisas muito interessantes, como vão ver. Comecemos, pois, por pessoa absolutamente insuspeita, como seja o nosso prezadíssimo amigo Alarico Silveira. 

O nosso ilustre colega, conhecedor que é das ciências ocultas, pelo sr. Carlos Mirabelli desde o momento que o soube possessor da preciosa mediunidade que veio a dar em água de barrela. 

Pois bem. Esse interesse tomará imenso incremento quando, numa memorável sessão, o sr. Mirabelli invocara o espírito do saudoso Brenno Silveira, aquele belo e talentoso rapaz, tão precocemente levado pela morte. A certa altura da experiência, o dr. João Silveira, vendo um violão e lembrando-se de que o Brenno também arranhara o sonoro instrumento, pediu ao falso médium que se comunicasse com o seu filho e que este fizesse vibrar o instrumento. 

Um instante depois, as cordas gemeram em duas notas – don, din, e no outro dia todo o mundo dizia, boquiaberto, que o dr. João Silveira chorara de comoção, ouvindo ao violão, sem que ninguém o tangesse, a valsa predileta de Brenno! 

Continuemos. Então o dr. Silveira pedira os traços do filho querido. O pseudo-médium descreveu, não o inolvidável Brenno, mas um SEU RETRATO A CRAYON, dando até detalhes da respectiva moldura.  

Tal qual. O sr. Mirabelli descrevera também a sala da casa do dr. Alarico Silveira, referindo-se ao retrato, que é, evidentemente, o do pranteado jornalista Brenno Silveira. A prova era, pois, irrefutável. Estava ali um excepcional caso de vidência. E nisso se falou por largo tempo, com assombro. 

Passaram-se dias. A sua fama ia num crescendo fantástico, mau grado já soubéssemos quem era o impostor. Foi então que, acendendo a um convite para realizar uma sessão, procurou o “notável médium” o dr. Alarico, em sua casa. Aí recebido, com as honras de que são dignos os eleitos, realizou ele uma experiência que deu ótimos resultados.  

À sua saída – contou-nos aquele nosso querido amigo – a sua veneranda progenitora, esposa do dr. João Silveira, dissera consigo: 

– Eu já vi este senhor. 

Durante toda a experiência, a virtuosa senhora levou a conjecturar e fazer por lembrar-se de quando e onde já havia visto o “enviado”. Mais tarde, lembrara-se ela e, chamando o sr. dr. Alarico, disse-lhe: 

– Olha, foi esse senhor, que então não tinha barbas, que fez a instalação elétrica em nossa casa. Lembro-me perfeitamente disso. Pagamos-lhe até por esse serviço a importância de noventa mil réis… 

Por aí vêem os leitores que não era difícil adivinhar tudo o que havia na casa, inclusive o retrato do saudoso confrade, cuja memória, que merece o nosso devotamento, deveria ser prezada por esse charlatão sem escrúpulos. 

Para amanhã: 

Ainda os famosos casos de vidência

Narrativa de algumas das aventuras mal-logradas, nesse gênero de mediunidade

Revelações que assombrarão o crente do ex-maior médium destes últimos séculos…

3 respostas a “AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 27)”

  1. Codename V. Diz:

    E mais uma lenda que cai. É. Eu não nego a existência do fenômeno mediúnico, tampouco dos poderes psíquicos. Mas acredito que a ocorrência deles, hoje em dia, são tão pequenas e mínimas que muito do que se vê aí são auto-sugestões ou fraudes premeditadas (o que realmente acontece, já que o homem é um ser que faz qualquer porcaria por um pouco de atenção). Bom, continue atualizando o blogue. Até.

  2. Brenno Silveira Filho Diz:

    Caro senhor,

    Estupefato pela novidade. Meu pai, Brenno Silveira, morreu jovem? (1911-1982) Tocava violão?
    Saldações, Brenno

  3. Vitor Diz:

    Certamente é outro Brenno Silveira.

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