AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 30)
Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.
Correio Paulistano – Domingo, 2 de julho de 1916, página 3
No mundo das maravilhas
Fez-se luz em a noite do mistério
O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador
O ilustre cientista dr. Eduardo Guimarães fala ao “Correio Paulistano” sobre os “fenômenos” mirabéllicos • Porque os “fenômenos” não se produzem à luz do dia? •“Mirabelli não passa de um prestidigitador habilidoso” • As impressões do distinto advogado e fino cavalheiro dr. René Thiollier • AS PROEZAS DE MIRABELLI
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DR. EDUARDO GUIMARÃES
O eminente clínico sr. dr. Eduardo Guimarães, que é dos mais belos ornamentos do meio científico paulista, foi dos que assistiram, na residência do sr. dr. Alberto Seabra, a uma das experiências do audacioso prestímano, cujas leviandades vimos profligando com a consciência tranqüila, de quem cumpre um dever. Porque era urgente e indispensável que a nossa sociedade se acautelasse contra as sagazes intrujices do escamoteador, porque, como um dos representantes da Opinião, não nos podíamos eximir da tarefa de restabelecer a verdade, reduzindo às suas devidas proporções as lendas que dia a dia tomavam vulto, bem como indicando ao público inteligente o lugar que de fato compete ao charlatão que com tanto atrevimento se exibe, como “médium”, a tudo o que há de mais fino numa das muitas capitais do Brasil.
O ilustre clínico, que é um operoso e infatigável paladino da ciência, tendo observado de perto o celebrado adivinho, poderia dar-nos a sua valiosa opinião, com respeito ao prodígio, o qual com certeza estudara convenientemente. Além disso, disseram-nos haver s. exc. recusado a assinar uma ata a propósito dos fenômenos mirabéllicos, a que fora levado naturalmente por não lhe haver sabido a transcendência as materialíssimas levitações de lápis e sarrafos. Era-nos, pois, por essas razões, indispensável que procurássemos o ilustre Reitor da Universidade de S. Paulo, a fim de que, com o seu valioso testemunho, – testemunho por todos os motivos notável e insuspeito – documentássemos a nossa reportagem inteiramente fundada nos insofismáveis princípios da Verdade.
Falamos ao sr. dr. Eduardo Guimarães. Excusamo-nos de comentar agora esse claríssimo depoimento; a opinião do cavalheiroso facultativo, refletida pelos nossos períodos incolores, bem demonstra que o sr. dr. Eduardo Guimarães foi daqueles que bem avisadamente andaram inclinando-se a ver nas manobras e na mise-en-scéne do sr. Carlos Mirabelli são a revelação de uma maravilha, mas apenas as magias de um habilíssimo prestidigitador.
Em seu escritório, depois que lhe contamos os motivos da nossa visita, disse-nos o distinto cientista:
– Convidado por um amigo, assisti a uma experiência do sr. Carlos Mirabelli, mas os fenômenos que vi não me convenceram de que estava diante de um homem extraordinário. É verdade que aquele senhor conseguiu tirar um lápis de uma garrafa e fez mover uma caveira. Vi-o também fazer girar uma caixa de papelão. Entretanto, tudo isto pode ser feito por meio de truques. De maneira que, saindo da reunião, tão incrédulo me achava, que disse aos presentes que, se esses fatos fossem feitos sem mistificação, seriam interessantes; mas eles seriam feitos mesmo sem truques? Como homem de ciência, porém, sou obrigado a dizer que todos esses FENÔMENOS, ADMITIDOS SEM TRUQUES, SÃO IMPOSSÍVEIS. A ciência não admite que ESPÍRITOS ANDEM DIVAGANDO, à espera de que sejam CHAMADOS PARA FAZEREM MOVIMENTAR OBJETOS. Isto tudo é MUITO PUERIL. Entretanto, neste caso Mirabelli, conforme tenho dito aos meus colegas e amigos, acho que se devem estudar bem os fenômenos, e isto por duas razões: a primeira, para bem da sociedade, que não pode estar à mercê [desses prestidigitadores?], [ilegível] um prestidigitador [ilegível] Mirabelli e, em segundo lugar, em benefício deste mesmo, porque se, realmente, ele pensa que é o espírito do pai que vem movimentar os objetos, é preciso fazer-se tudo para lhe tirar isso da cabeça. Há “fenômenos” que, para nós outros, a eles não habituados, parecem admiráveis, quando em verdade o não são. Todo o mundo, vendo um hábil prestímano trabalhar, um prestidigitador, por exemplo, que soca um relógio numa espingarda, dá o tiro, e o cronômetro, em perfeito estado, aparece no bolso de um dos presentes; ou um ilusionista, que faz de um pombo saírem dois; toda a gente, dizia, não acredita que o prestidigitador faça tudo aquilo, apesar de nada ver que lhe leve a pensar assim. Desse modo, também o sr. Mirabelli pode fazer todas as COISAS COM MISTIFICAÇÃO, e quem quer que as APRENDA, fa-las-á da MESMA FORMA.
– Assim é…
– Mas, como disse, desejava estudar bem os “fenômenos”. Para isso, convidei o sr. Mirabelli, de acordo com vários professores da Universidade, para fazer uma sessão no salão daquele estabelecimento, num domingo, às 3 horas da tarde. O sr. Mirabelli recusou-se, dizendo que já tinha aquela hora tomada, mas que iria ÀS 6 HORAS. Respondemos-lhe que não; 6 horas é NOITE, e, à NOITE, os TRUQUES SÃO MAIS FÁCEIS DE PRATICAR…
Depois, desde o primeiro momento que vi o sr. Mirabelli trabalhar, nõ gostei do seu modo; ele faz aquilo com uma certa TEATRALIDADE; arruma os objetos, prepara-se. Tudo isso me deu que pensar.
– Mas o dr. em casa do dr. Seabra…
– Infelizmente, em casa do meu amigo não pude examinar bem os fatos; esperava fazê-lo mais tarde. Enfim, sem que o sr. Mirabelli se submeta a uma rigorosa fiscalização científica, não se pode dizer a última palavra sobre essa questão. É preciso que isso aconteça.
– Então, na opinião do dr., o sr. Mirabelli…
– … NÃO PASSA DE UM PRESTIDIGITADOR HABILIDOSO, PODE DIZER, – concluiu o ilustre homem de ciência.
IMPRESSÕES DO PROVECTO ADVOGADO DR. RENÉ THIOLLIER
[FIGURA]
DR. RENÉ THIOLLIER
Damos a seguir as excelentes impressões do distinto cavalheiro e não menos distinto advogado, sr. dr. René Thiollier, a propósito dos fenômenos subjetivos de Carlos Mirabelli. Reputamo-las da mais alta importância; e, por isso mesmo, para elas pedimos a atenção dos leitores. O dr. Thiollier relata com fidelidade tudo quanto com ele se passou, e patenteia desse modo o caradurismo com que Mirabelli procurava mistificar pessoas da mais alta distinção e de inteira respeitabilidade. Ouçamos o talentoso advogado:
“Não podendo deixar de aceder ao pedido que me fizeram alguns amigos da redação do “Correio Paulistano”, venho também manifestar-me sobre as experiências que tem realizado, nesta capital, o “médium” Mirabelli.
É preciso que saibam os leitores que eu absolutamente não me dedico ao estudo das ciências ocultas, não sendo, todavia, um materialista. Acredito piamente na imortalidade da alma, – e foi com grande entusiasmo que, na minha mocidade, li o “Fédon” e a “Apologia de Sócrates” por Platão.
Nunca, porém, tratei de cogitar se os espíritos poderiam, ou não, entrar em comunicação com nós outros, e assim é que, se mostrei desejo de assistir as experiências do sr. Mirabelli, foi unicamente a título de curiosidade. E havia motivo para tal, – hão de todos concordar; há mais de um mês que esse homem, com as suas façanhas, faz badalar a nossa imprensa a seu respeito, e que o seu nome, de boca em boca, corre febrilmente nas ruas da nossa capital.
Sobre a sua força “mediúnica”, – se assim me posso exprimir, – forjaram-se as histórias as mais extravagantes: creio não houve uma só pessoa que nelas não colaborasse. Contavam-se coisas verdadeiramente fantásticas; que ele, com um simples olhar, fazia mexer os quadros nas paredes; deitava abaixo objetos que se encontravam dentro de armários; acendia lâmpadas elétricas, e abria gavetas.
Infelizmente, semelhantes fenômenos, ninguém os vira conseguir o sr. Mirabelli; o que o “médium” fazia, e repetia, com toda a perícia, era precisamente o que, tempos depois, tinha eu ocasião de ver, em companhia de muitas pessoas, um dos redatores desta folha fazer e repetir igualmente com a mesma perícia.
Consistiam quase sempre as suas experiências no seguinte:
1) – em fazer girar e tombar, a distância, um livro colocado sobre o gargalo de uma garrafa;
2) – tirar de dentro de um vaso um lápis, uma pulseira, ou um pedaço de papel;
3) – puxar um cartão de cima da palma da mão de uma pessoa;
4) – derrubar, de sobre uma mesa, um copo, sem o partir; e derrubá-lo novamente, quebrando-o dessa vez;
5) – produzir estalidos numa lâmpada elétrica colocada dentro de um prato – e, assim por diante, outras tantas pequeninas coisas, que me não darei ao trabalho de enumerar, e que facilmente lhe permitiam executar o “truque” de que usava.
Tive a impressão de que estava em presença de um intrujão, logo ao dia seguinte à experiência que presenciara, à noite, no escritório do coronel Bento Pires de Campo, à rua de S. Bento.
Mirabelli, ainda assim, é preciso confessar-se, fora admirável, principalmente na parte teatral. Esgaçara os olhos, e passando desesperadamente as mãos pelos cabelos, pelas barbas, assumira na postura de alucinado; pusera-se a pronunciar palavras desordenadas, apontando, ora para o teto, ora para cima dos móveis:
– Papai!… Papai!… Passou!… Olhe!… Olhe!… Ali!… Ali!… Oh! Desapareceu!… Não! Não!… Não! Não!… Está ali!… O senhor não está vendo?! Derrube! Derrube! Dê uma prova! Derrube!…
E o livro, posto em equilíbrio, sobre o gargalo da garrafa, movia-se, caindo logo em seguida.
Um dos assistentes se mostrara por tal forma impressionado, que houve um momento em que começara a perceber os fantasmas que via o sr. Mirabelli. O médium, então, não pôde conter-se: riu-se!
E, assim, quantas outras boas risadas não terá ele dado, a sós, no seu quarto, pensando em todas as pessoas que se tem deixado embair pelas suas farsas!…
Era tarde, – e como já estivéssemos fatigados de assistir sempre às mesmas coisas, – resolvemos por um ponto final ao espetáculo.
– É pena! – lastimou Mirabelli. – Se eu ficasse aqui até de madrugada, faria dançar todos esses móveis!… derrubaria todos esses quadros!… Na casa do conselheiro Antônio Prado consegui fenômenos extraordinários!
– É verdade! Tenho ouvido falar aí, na cidade, que o sr. fez lá coisas do arco da velha; quebrou-se muitas jarras! – disse-lhe.
– Oh! Foi uma coisa por demais! – confirmou ele.
No dia imediato, encontrando-me por acaso com meu amigo Antônio Prado Junior, pedi-lhe que me narrasse o que havia se passado na “Chácara do Carvalho”, quando lá estivera Mirabelli, e ele respondeu-me:
– Não é você a primeira pessoa que me faz hoje essa pergunta.
A sua narrativa, porém, de modo algum concordara com os exageros do “médium”. Em presença do conselheiro Antônio Prado e da sua família, fizera ele apenas tombar de cima de uma mesa uma caixa de papelão vazia, e tirara de um copo um pedaço de papel. Repetira, enfim, as cortes de sempre.
Mais tarde, no meu escritório, tratava eu dos meus negócios, quando, de repente, tocaram a campainha com uma insistência que lembrava desastre. Corro a abrir a porta; aparece-me, esbofado, o meu amigo dr. Luis da Câmara Lopes dos Anjos, avisando-me a mim e ao meu mano:
– Escondam-se! Depressa! Você e o Marcelo! Está lá abaixo um sujeito esquisito, misterioso, a indagar do seu criado quem vocês são; se esta casa lhes pertence; se vocês têm dinheiro; se de fato seu pai morreu na Europa; se é verdade que um de vocês perdeu um filho… Escondam-se, que deve ser um “facadista”!
A campainha, porém, tocara de novo, e eu lhe não pude seguir o conselho! Fui obrigado a abrir a porta.
Ora, quem havia de ser?! – Era o senhor Mirabelli apresentá-lo ao dr. Câmara Lopes, que ficou, como é natural, admirado.
– Você não o conhece? Pois é o célebre “médium” que tanto tem comovido os nossos homens de ciência!
E Mirabelli, satisfeito com a reclame, declarou que o motivo da sua visita era uma revelação importante que me queria fazer.
No escritório, ainda diante do dr. Câmara Lopes, viu ele surgir-lhe pela frente o meu pai e postar-se ao pé de mim; depois o meu filhinho; mas, como fosse importantíssima a revelação, indagou aí se não havia um outro aposento onde pudéssemos ficar a sós.
Levei-o para o salão. Sentou-se ele no sofá, e, após um momento, aparecendo-lhe, de novo, meu pai, exclamou:
– Paris! Estou em Paris! Vejo a cidade de Paris! Se não me engano é a praça da Ópera! – levantou-se: esbugalhou os olhos: – Lá vai o seu pai, coitado! Vai morrer…
E deu um grito:
– Morreu!
Virando-se para mim, interrogou-me:
– Não foi em Paris que morreu seu pai?
– Foi!
– O sr. viu? – respondeu-me com agradável sombra: – Eu não sabia de nada!
E, entre outros disparates mais, não tendo consultado suficientemente os apontamentos que lhe fornecera um dos meus cunhados (mais tarde é que soube que fora um dos meus cunhados que lhos havia fornecido!), começou a confundir nomes de pessoas da minha família, inteirando-me de vez sobre a sua impostura.
O seu caso,
René THIOLLIER.
(Villa Fortunata).
CASA BRANCA APRECIA OS “FENÔMENOS MIRABÉLLICOS”.
Como prevíramos, realizou-se com grande sucesso, no domingo último,
Eis como a nossa colega noticia esse fato:
“Como tínhamos anunciado, realizou-se, na noite de domingo, na sala da redação desta folha, e com grande concorrência, a exibição de alguns “mistérios” mirabéllicos.
Os espíritos, como sempre, se portaram com muita galhardia, facilitando o trabalho do nosso diretor que, com as golas do casaco levantadas, fez subir, “misteriosamente”, um lápis do fundo de uma garrafa, depois de terem sido cuidadosamente examinados os objetos e ter sido o lápis colocado por um dos cavalheiros que assistiam à sessão. Como esse, outros “mistérios” realizaram-se com sucesso, como fossem o da caixa virar, à vontade do assistente, no gargalo da garrafa, acender-se e apagar-se uma lâmpada e até uma “inocente mesa de três pés” conversar com o público por meio de pancadas, depois de muito bem examinada por um dos assistentes, estando o operador a distância, sem tocá-la, apenas “passando os fluidos”.
Coisas verdadeiramente assombrosas nas mãos de um Mirabelli, mas simples nas mãos de uma pessoa um pouco hábil e audaciosa.
O nosso intuito não foi, como explicamos, o da exibição, mas sim o de proporcionar, aos inteligentes leitores d’A Tribuna, a facilidade de conhecerem uma nova série de prestidigitações e das quais se tem servido um “intrujão” para se dizer “enviado divino” ou “protegido dos espíritas”.
CONFERÊNCIA DO MÉDIUM TRINDADE
Conforme estava anunciada, realizou-se ontem, às 16 horas, no teatro S. José, a conferência do conhecido médium Antônio José Trindade, acerca dos “fenômenos de mediunidade” produzidos pelo prestímano Mirabelli.
O conferencista discorreu sobre o assunto por espaço de mais de uma hora, tendo chegado á conclusão de que Mirabelli é médium [obcecado?], mas que os fenômenos que produz são efetivamente passíveis de truque.
Citou, a propósito, o caso de uma garrafa, cuja água se dizia haver congelado por efeito do seu poder mediúnico, e sobre o que, aliás, com muita mágoa sua, quiseram os presentes, inclusive homens de valor científico, lavrar para logo uma ata em que ficasse mencionado o império das forças misteriosas do escamoteador. E, todavia, a coisa não passava de uma simples mágica: a água de tal garrafa jamais saíra de seu estado líquido. Conseqüentemente, declarou o conferencista, o “Correio Paulistano” tem toda a razão em trabalhar no sentido de estabelecer-se a verdade dos fatos.
O sr. Trindade terminou a sua palestra, prometendo para amanhã uma nova conferência, em que outros casos interessantes serão por ele tratados.
Para amanhã
Ligeira palestra com o ilustre cientista e homem de letras dr. Ulysses Paranhos
O que nos disse o distinto advogado do nosso foro dr. Camargo Aranha – insucessos do prestímano