AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 31)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano.

Correio Paulistano – Segunda-feira, 3 de julho de 1916, página 2 

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério 

O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador 

Ligeira palestra com o ilustre cientista e homem de letras dr. Ulysses Paranhos 

O que nos disse o distinto advogado do nosso foro dr. Camargo Aranha 

INSUCESSOS DO PRESTÍMANO 

Tal como tem visto o leitor, através deste desapaixonado inquérito se refletem, particularmente, todos os episódios que, oriundos do sangue frio de um ousado prestímano, se desencadearam aos quatro ventos da Paulicéa, com uma barafunda pitoresca de cenas melodramáticas. Desde os primeiros sucessos do “homem-prodígio” às suas atribuladas evasivas de charlatão; desde a grita dos crentes ao comentário exagerado das massas – tudo isso tem merecido as investigações analíticas da nossa reportagem. Assim, o público, a estas horas, está já ao par da ex-problemática individualidade daquele que se apresentava, a embair a opinião, com o caráter misterioso de um predestinado. 

Quisemos, porém, com a exposição concludente de testemunhos dignos e insuspeitos, documentar as nossas asserções, absolutamente fundadas em princípios insofismáveis. Daí, como oportunamente expuséramos, o solicitarmos o juízo de vários dos nossos homens de letras e de ciência sobre a falada mediunidade do ex-charuteiro da Rua da Boa Vista. Algumas opiniões, de personalidades em evidente destaque nas mais finas rodas da nossa cultura, foram já, como valiosíssimo complemento a este inquérito jornalístico, reproduzidas nestas colunas para que vimos transportando, há duas semanas, o claro, o surpreendente, o lógico resultado de todas as nossas minuciosas pesquisas.  

                                                               [FIGURA] 

DR. ULYSSES PARANHOS                                                          

Agora tem a palavra o dr. Ulysses Paranhos. O distinto facultativo e homem de letras, um dos ornamentos da Academia Paulista, assistiu também a uma das sessões do sr. Carlos Mirabelli, Nessas condições, o seu parecer, para nós e para todos os que se interessam por esta questão, é precioso. Vão dele ter conhecimento em breves palavras, os nossos leitores. Infelizmente, não pôde ser completa, como desejamos que fosse, por motivos que exporemos, a exposição que rapidamente nos fez o brilhante facultativo. 

Mais uma vez foi posto em dúvida o prestígio do sr. Mirabelli, a “glória dos sapateiros”, como lhe chamou um periódico do interior. Parodiando-se Eça de Queiroz, num dos trechos das suas Cartas da Inglaterra, pode-se mesmo dizer, diante de todos os irremediáveis desastres que tem sofrido, que não é o falso médium nenhum grande profeta de Botucatú, mas o ídolo particular dos mirabellistas; deixou ele de ser um espírito falando a êmulos e prosélitos reverentes – para ser apenas um manipanço terrorizando os supersticiosos… 

Tal qual. No entanto, o próprio “homem misterioso” referira a várias pessoas, que o acreditaram, comentando o caso com exageros excepcionais, haver realizado os seus célebres fenômenos completamente despido e de mãos e pés atados. Ora, isso é uma inverdade, uma invencionice, que, aliás, tivemos oportunidade de rebater na boca do próprio sr. Mirabelli, quando ele, com o mais [ilegível] cinismo, tal pretendera inculcar aos presentes na última prova a que se sujeitara, quando do nosso repto. 

O dr. Ulysses Paranhos, diretor do Instituto Biológico e lente da Universidade de S. Paulo, fora um dos que assistiram a tal experiência do histrião – em [enjes?] paradisíacos – dissera haver realizado os seus prodígios – sortes com papel cartomado em recantos de cenários [ilegível], verdadeiras [ilegível] e [trunafas?] de peça mágica, como diria [Gabião?].

O distinto cientista, que [3 palavras ilegíveis], pronto para sair e tomar o [2 palavras ilegíveis], pois que seguia para Buenos Aires, em viagem de estudos, acolhera-nos com um sorriso. Por que não o procuramos antes? Não podia perder um momento, naquela ocasião. De resto, não pudera estudar suficientemente os fenômenos do “homem prodigioso”.

– Mas, duas palavras, dr… Uma síntese…

– Ora, ouça-me. Uma noite, em casa do dr. sr. Alberto Seabra, eu e vários colegas propusemo-nos a estudar, de perto e com toda a meticulosidade, as experiências do sr. Mirabelli, as quais, segundo me constava, eram interessantíssimas e dignas de observação. O nosso intuito era exercer sobre o “médium” e os “fenômenos” a mais escrupulosa vigilância. De fato, assim foi. Fizemos o homem trocar de roupa, ou antes, depois de estar nu demos-lhe a vestir uma capa do sr. dr. Seabra e umas chinelas daquele mesmo facultativo. Além disso, procedemos a detidas investigações, examinando todos os objetos destinados a servirem na experiência. Isto feito, aguardamos.

– Com toda a paciência…

– Pacientemente. Horas e horas olhamo-nos uns para os outros…

– Divertido…

– Muito. Mas dos fenômenos…

– Nem sombra?

– Nada! Tanto que resolvemos dissolver a reunião, dando por concluídos… os trabalhos.

– O sr., que naturalmente tem tido notícias de tais maravilhas, que nos dirá sobre elas? Desculpe-nos a insistência, agora que vai viajar…

– Penso que o sr. Mirabelli NÃO PASSA DE UM PRESTIDIGITADOR. Demais não seria o primeiro a ludibriar os incautos. Outros, nas mesmas condições, tem sido descobertos. Assim, nada há que admirar. Sinto não poder ser mais extenso sobre esta questão. De volta, porém, do Rio da Plata, poderei dizer-lhe mais alguma coisa sobre o caso. 

Aí terminou a nossa breve conversa. Fica assim mais uma vez provado que não passa de pura lenda o que se diz a respeito da sessão que, sob a vigilância de cientistas e em trajes de Pai Adão, tentou platonicamente realizar, em casa do distinto clínico dr. Alberto Seabra, o audacioso espertalhão que a tantos tem iludido.

O que nos diz o dr. Camargo Aranha 

[FIGURA]

DR. CAMARGO ARANHA

 O sr. dr. Camargo Aranha, distinto advogado nesta capital, com escritório à rua Direita, nº [3A?], foi uma das vítimas das constantes visitas do “homem misterioso”. Com efeito, o sr. Mirabelli procurava sempre aquele advogado, pedindo-lhe que assistisse às suas sessões, em que, afinal, nada fez, como quando se houve sempre que tinha por espectadores pessoas precavidas, certas de que tal homem não passava de um mistificador. 

O dr. Camargo Aranha não se negou a dar-nos a sua impressão sobre o caso.

– Fui apresentado ao sr. Mirabelli, na farmácia Assis, pelo sr. Brasiliano Gonçalves, o mesmo cavalheiro que o tem apresentado a meio mundo, em S. Paulo.

O sr. Mirabelli instou para que eu assistisse a uma das suas sessões. Acedi ao seu pedido.

Três dias depois do meu conhecimento com o sr. Mirabelli, este compareceu ao escritório do dr. Jorge [Flaquer?], com mais oito pessoas gradas. Fui chamado para presenciar os fenômenos.

O sr. Mirabelli fez que as pessoas formassem uma roda, ficando sentado eu numa poltrona, no centro. Por espaço de uma hora, o sr. Mirabelli disse que se ia concentrar, fez enfim esforços sobre-humanos. Mas, nada conseguiu. Depois, mexeu o chapéu, que estava em cima de uma mesa, junto com outros objetos; e tocou também numa lâmpada.

Então exclamou:

– Olhem, o fenômeno vai realizar-se.

Vimos de fato que o chapéu e a lâmpada se moviam.

Protestei contra o fato de só serem movidos os objetos com que o sr. Mirabelli tinha tido contato. Pedi também que ele fizesse movimentar os outros objetos que, apesar de tudo, os seus fluidos deixavam inertes. FOI TUDO EM VÃO: ELES CONTINUARAM COMO ESTAVAM.

– O dr. viu o sr. Mirabelli trabalhar outra vez?

– Sim. O sr. Mirabelli, que da primeira sessão saíra um pouco aborrecido comigo, voltou ao meu escritório, uns dias depois, e pediu para fazer os seus fenômenos.

Apesar de não acreditar em nada do que ele me dizia, pela segunda vez acedi ao seu desejo. Queria ver até onde ele levava a sua farsa. E foi assim que, com uma paciência que nunca tive em minha vida, aturei o sr. Mirabelli durante uma longa hora.

– “Falta-me ar” – disse ele num momento.

Levantei-me para abrir a janela.

– “Não, o ar que vem daí não serve. Preciso de mais.”

E Mirabelli SAIU, DIRIGINDO-SE À PRIVADA. Passados uns dez minutos, estava de volta. Eu já me achava impaciente; contudo resolvi ver até onde o homem queria chegar. E esperei.

– “Bem, vou concentrar-me outra vez”, disse-me ele.

E entregou-se ao que ele chama a sua “concentração”. Depois, num certo momento, disse:

– “Olhe, dr. O vaso vai mover-se.”

Olhei. Efetivamente, um pequeno vaso, que se achava em cima de minha mesa, caiu. Protestei! Também desta vez o sr. Mirabelli havia tido contato com o objeto antes do “fenômeno”.

– “Você não fez nada”, disse-lhe.

Mirabelli saiu contrafeito. Entretanto, não desanimou de me convencer. Alguns dias depois da segunda experiência, assomou ele à porta do meu escritório:

– “Tenho uma comunicação importante a fazer-lhe. É de sua mãe.”

– “Não me incomode, é melhor” respondi-lhe.

Mas Mirabelli chegou-se e com bons modos conseguiu que eu o ouvisse. E contou-me então a grande comunicação: minha mãe pedia-me que eu me tornasse espírita. Até parecia brincadeira.

– “Então, já que você se comunicou com ela, faça-me uma descrição de seu tipo.”

– “Pois não. A senhora sua mãe era uma SENHORA ALTA, CORPULENTA, FORTE…”

– “Oh! Mentiroso, disse-lhe, interrompendo-o. Minha mãe era, AO CONTRÁRIO, BAIXA, DELGADA, FRANZINA…”

O sr. Mirabelli não esperou mais nada; desapareceu da minha vista.

Mais uma circunstância: TODAS AS VEZES EM QUE ASSISTI ÀS EXPERIÊNCIAS, O SR. MIRABELLI EXIGIU QUE EU TIRASSE OS ÓCULOS. POR QUÊ? Certamente porque temia que, com óculos, eu o visse ou antes DESCOBRISSE SEUS TRUQUES.

– Depois disso, o dr. nunca mais teve notícia do sr. Mirabelli?

– Tive, sim. MANDOU-ME PEDIR QUE A NINGUÉM DISSESSE NADA SOBRE OS SEUS FIASCOS perto de mim. Mas, no interesse da verdade, resolvi fazer-lhe a declaração que faço, pois penso que assim procedendo prestarei um SERVIÇO À SOCIEDADE, AJUDANDO A DESMASCARAR UM INDIVÍDUO QUE A TENTA GENTE TEM ENGANADO.

– De forma que o dr. está firmemente convicto de que o sr. Mirabelli não passa de um prestidigitador?

– ISSO NEM SE DISCUTE: UM PRESTIDIGITADOR AUDAZ, E QUE SE PROPÔS EMBASBACAR MEIO MUNDO, MAS QUE NÃO VIU OS SEUS PLANOS COROADOS DE ÊXITO.

O ilustre advogado ainda continuou em várias considerações.

Contou-nos, por exemplo, que, certa vez, casualmente, surpreendera um conversa do sr. Mirabelli com um indivíduo que sempre o acompanha.

Os dois discutiam questões de dinheiro: 

– “Oh! Dizia o companheiro de Mirabelli, você RECEBEU MAIS QUE ISSO! Está-me enganando.

– “Nada, foi só isso”, dizia o “homem misterioso”.

Dessa conversa há uma única conclusão patente e que confirma o que o “Correio Paulistano” há dias referiu: o tal “homem misterioso” TEM UM SÓCIO, um indivíduo que aparece em toda a parte onde o sr. Mirabelli tem de trabalhar e prepara as coisas, quando pode. 

OS FALSOS PROFETAS

Realiza-se hoje, às 20 horas, no Teatro S. José, a segunda conferência do médium Antônio José Trindade, que veio estudar o caso Mirabelli.  

O conferencista falará sobre o tema: “Os falsos profetas”. 

Para amanhã: 

Fala-nos o brilhante jornalista Joaquim Morse

O que pensa o ilustrado médico

== dr. Deodato Wertheimer ==

Os fenômenos fisiológicos que, segundo disse alguém, o intrujão apresenta após as suas experiências, não têm a mínima importância e são cabalmente explicados por aquele cientista

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