AS FRAUDES DO MÉDIUM MIRABELLI (PARTE 38)

Dando prosseguimento à série de reportagens do Correio Paulistano

Correio Paulistano – Segunda-feira, 10 de julho de 1916, página 2 

No mundo das maravilhas

Fez-se luz em a noite do mistério

O sr. Carlos Mirabelli é realmente um hábil prestidigitador

Uma prova irretorquível das intrujices do “homem misterioso”

O falso médium cai numa hábil cilada que o “Correio” lhe preparou, não hesitando em mentir ao seu próprio bemfeitor

Mirabelli põe-se em contato com o espírito de uma pessoa que nunca existiu 

[FIGURA]

O “Correio Paulistano”, quando lançou o seu repto a Carlos Mirabelli e, em seguida às cinco sessões infrutiferamente realizadas, vergastou de rijo a audácia do prestímano, pondo em relevo, aliás com muita mágoa, a excessiva boa fé de alguns dos mais distintos cavalheiros da nossa sociedade, não se esquecera jamais de que a sua velha tradição de jornal honesto e ponderado lhe não permitia um rebate falso na campanha a que se abalançara contra a intrujice do indivíduo de mais assombro caradurismo que nestes últimos tempos palmilhou S. Paulo. Ao iniciar a sua ação para castigar, como castigou, a petulância de um saltimbanco e para salvar do desaponto, como salvou, uma boa dúzia de homens de ciência, o “Correio Paulistano” assegurou-se primeiro, assegurou-se muito bem, assegurou-se absolutamente da verdade dos fatos. Reunidas todas as provas irrefragáveis do charlatanismo com que Mirabelli ameaçava a sociedade paulista, este jornal lançou aos quatro ventos o seu protesto contra o embuste, contra a maroteira, contra a especulação. E fê-lo suportando, é certo, uma saraivada de futilidades, aturando uma chusma de perguntas impertinentemente pueris, a propósito de uma prova dos truques, de um sinal veemente da mistificação de Mirabelli, que fosse ainda mais veemente do que todas as que temos nestas mesmas colunas, há 16 dias consecutivos, lealmente exibidos, inexoravelmente arrolado.  

Sem demandarmos um só dia neste debatido assunto, bem que a paciência do jornalista também se esgote, mas, ao contrário, conservando sempre a mais absoluta serenidade no julgamento das coisas, na apreciação dos acontecimentos, reservamos para hoje, para esta segunda-feira de céu escampo, quase ao fim da batalha que travamos em prol da cultura e da moral, a

REVELAÇÃO DE UMA SENSACIONAL PASSAGEM,

que vem agora, à luz meridiana, para [ilegível] o sempre testificar que Carlos Mirabelli não é simplesmente o mais arrojado dos burladores que entre nós vicejam como erva daninha, porque é acima de tudo o burlador mais ingrato dos que, fugindo ao picadeiro dos circos ou despindo a veste de palhaço de feira, invadem perniciosamente o seio honesto das famílias paulistas. É o mais ingrato e o mais perigoso.

* *

Entre as pessoas distintas que acreditavam nas pantomimas de Mirabelli, uma havia que, por títulos diversos, sobremaneira se destacava como crente das forças misteriosas do truão. Era o sr. coronel Fortunato Goulart, a quem tanto a generosidade distingue, quanto o cavalheirismo assinala. Espírito franco, alma sem malícia, coração aberto a todas as contingências alheias, o honrado chefe político de Belemzinho para logo se compadecera da situação de Mirabelli, num gesto de nobreza sem par, com uma abundância de sentimentos que o eleva e dignifica. Mirabelli tem esposa, Mirabelli tem filhos, e Mirabelli não tinha emprego. E o excelente coronel Goulart, mergulhado na sua proverbial bondade, precisava estender sem preâmbulos sobre a cabeça do farsante o manto de veludo da sua proteção bemfazeja. E estendeu-o. 

Sem que se fizessem esperar, as portas do palacete da rua Clementino abriram-se ao fazedor de sortes; à mesa da distinta família mais três ou quatro pessoas se assentaram; uma dependência contígua à casa principal do prestante cidadão era assim ocupada exclusivamente pelos novos hóspedes, novos e importunos, cujo chefe, sortílego inveterado, representou sem tardança, dentro do lar doméstico de seu protetor, à guisa de um energúmeno, o papel de macaco em casa de louças: partiu vasos de porcelana, estourou lâmpadas elétricas, danificou candelabros, prejudicou a corrente transmissora de luz, quebrou copos e taças de cristal, inutilizou pantalhas, estragou globos de vidro, deu cabo de pequenos objetos de arte, pintou o sete, pintou o diabo, pintou o espírito irrequieto e traquinas do irreverenciado papá, tal como este se apresenta no fundo da retina do filho desrespeitoso e ingrato!

Tudo isto para explorar a crença daquele mesmo que lhe estendia a mão caridosa.

Como quer que fosse, danificando embora perversamente a tudo quanto pôde atingir o seu falso poder cabalístico, o pseudo adivinho estava finalmente acocorado com todos os seus sob as asas protetoras do bondoso coronel Goulart.

* * 

Como fosse, portanto, o coronel Goulart o verdadeiro e reconhecido protetor do MÉDIUM, nós o escolhemos, unicamente por esse motivo, para colaborar conosco na empresa de apanhar Mirabelli em flagrante

ABUSO DA CREDULIDADE DO SEU PRÓPRIO AMIGO

Queríamos, pois, para inteira elucidação do caso, uma prova a mais que militasse em abono de quanto temos já documentadamente afirmado a propósito deste ousadíssimo impostor. Era preciso, porém, que, desta vez, o indício fosse completo e esmagador, e o foi com o mais brilhante êxito para nós, quer quanto ao abominável vício da mentira, quer quanto ao feio sentimento de ingratidão. 

[FIGURA]

Res non verba: 

Mirabelli propala-se médium, e, possuidor dessa qualidade, corresponde-se, diz ele, com os espíritos que invoca, sendo-lhe vítima constante e obrigatória a alma de seu papá. O “Correio”, por sua vez, afirmou que Mirabelli engana maldosamente, não só quanto aos fenômenos que proclama como resultantes do seu poder misterioso, senão também quanto ao pôr-se em comunicação com os que se foram deste mundo para a eternidade.

No que respeita às traquinices do lápis, que emerge do fundo de uma garrafa, da gaveta que gira sobre o gargalo desta, da lâmpada que se acende e apaga, da caixa de gargalo que roda, e quejandas baboseiras, provamos já que tudo repousa num fio de cabelo e num pedacinho de cera. E no que concerne às suas palestras com os habitantes do Além, a coisa é ainda muito menos complicada, pois que lhe custa apenas dois minutos de desfaçatez. A prova tem-na aqui os leitores: 

O “Correio Paulistano”, em dias do mês de junho último, fantasiou uma carta com a assinatura de JOAQUIM GOMES PEREIRA, que não existe, que nunca jamais existiu, datada de Santos, avenida Conselheiro Nebias, nº. 734, residência do poeta Delfino Stockler de Lima, e endereçada ao distinto e generoso coronel Fortunato Goulart. Nessa carta, por nós escrita com caracteres disfarçados e estilo propositadamente descuidado, o hipotético JOAQUIM GOMES PEREIRA solicitava os bons ofícios do coronel Goulart junto a Mirabelli, para que este lhe dissipasse certa dúvida que alimentava acerca de uma promessa feita por sua esposa, falecida havia nove meses, de nome LEOPOLDINA, que, à semelhança de seu suposto marido, é um nome forjado nesta redação com o deliberado propósito de apanhar o patife em manifesto delito de mistificação. Com a carta se encontrava a quantia de 5$000, para ser pelo chocarreiro distribuída aos pedintes. A missiva em questão, que deve achar-se ainda em poder do seu honrado destinatário, reza assim:

“Ilmo. sr. coronel Goulart,

Apresentando-lhe as minhas saudações, venho pedir-lhe um grande favor, pelo qual ficarei eternamente agradecido. Trata-se de um fato que há 9 meses me vem pesando enormemente na consciência e que muito me tem incomodado. Minha saudosa esposa, falecida em setembro do ano passado, falou-me, momentos antes da morte, que tinha uma promessa a cumprir na Aparecida e pediu-me que não a deixasse sem cumprimento. Entretanto, naquele momento de desespero, eu, que estava fora de mim, com a imensa dor, não prestei bastante atenção em que consistia a promessa e permaneço até hoje na mais dolorosa dúvida, sem poder cumprir a última vontade de minha idolatrada mulher. O senhor, cujo magnânimo coração conheço e aprecio, poderia tirar-me desta aflição. Basta, para isso, que o sr. peça ao grande médium sr. Mirabelli que invoque o espírito de minha mulher – chamava-se Leopoldina – e pergunte-lhe o seguinte: se a sua promessa era de dar 30$000 ou 50$000 para Nossa Senhora da Aparecida; se é necessário que eu vá pessoalmente levar essa esmola à Aparecida e, finalmente, se a missa é para as almas ou para Nossa Senhora.

O sr. não calcula que enorme favor me prestará se conseguir esta caridade do sr. Mirabelli, tirando-me este peso da consciência. Não escrevo diretamente ao distinto médium, porque não o conheço e também porque não sei o seu endereço. Junto a modesta quantia de cinco mil reais para o sr. Mirabelli acender algumas velas pelas almas penadas.

Sem mais, oferecendo-lhe os meus fracos préstimos, em tudo o que eu puder ser-lhe útil, sou

Admirador dedicado e eternamente grato – Joaquim Gomes Pereira.”

O laço estava, pois, armado, a espada fatal permanecia suspensa para o golpe que seria em breve desferido. 

Mas, era preciso que o arlequim, ao receber a solicitação transmitida pelo seu bemfeitor, falasse efetivamente com o espírito de LEOPOLDINA, a desditosa e pranteada esposa de GOMES PEREIRA, intrujando dess’arte, à luz do dia, como de fato intrujou, por intermédio daquele mesmo que lhe punha o pão à boca, e lhe agasalhava o corpo contra as intempéries da natureza, e lhe reconforta o coração contra as inclemências do fado. Era preciso que o escamoteador audaz respondesse à pergunta que os solertes redatores do “Correio” puseram nos lábios de um JOAQUIM PEREIRA, que a fantasia criou, pergunta formulada com respeito a uma promessa que nunca foi feita, a relativa a uma LEOPOLDINA que jamais peregrinou pelas paragens desconhecidas da vida eterna…  Era preciso, para que o golpe fosse vibrado, que o bruxo respondesse alguma coisa com relação a essa IMAGINÁRIA PERGUNTA, com respeito a esse IMAGINÁRIO ESPÍRITO, com vistas a essa IMAGINÁRIA PROMESSA, com referência a esse IMAGINÁRIO MARIDO; e o bruxo, por 5$000 apenas, RESPONDEU, RESPONDEU MUITO, RESPONDEU tudo quanto o “Correio” precisava para DESMASCARÁ-LO EM PÚBLICO E RAZO, como agora o desmascara, nesta movimentada segunda-feira de frio seco e céu azul… Desmascara-o, aproveitando esta oportunidade, que é ótima, aproveitando de uma só vez os punhadinhos de lama que, dia a dia, lhe atiraram em vão por havermos a tempo apanhado o velhaco.

O “HOMEM MISTERIOSO” FOI PILHADO EM “TRUQUE” 

A bem dos nossos foros de sociedade culta e civilizada, perseguimo-lo, apanhamo-lo, desmascaramo-lo, e o golpe, em suma, se desferiu.

Mirabelli, com o seu revoltante e habitual caradurismo, não trepidou em asseverar (e o íntegro coronel Goulart quem o atesta) que o espírito de LEOPOLDINA atendera à sua invocação e lhe dissera tudo quanto se lê na seguinte carta, ESCRITA E ASSINADA pelo sr. coronel Fortunato Goulart, com endereço ao imaginado consulente, e a nós retransmitida pelo distinto amigo desta folha, sr. Stockler de Lima, com quem tudo previamente acordáramos, e que reside, como já dissemos, em Santos, à avenida Conselheiro Nobias, nº 734. 

“S. Paulo, 22 de junho de 1916. – Ilmo. sr. Joaquim Gomes Pereira – Saudações. – De acordo com o seu pedido, por carta, me entendi com o sr. Mirabelli e fiz-lhe ver os desejos do amigo, bem como entreguei-lhe 5$000 para distribuir aos pobres em atenção ao espírito de Leopoldina.

Obtive quanto à sua consulta a resposta que segue: O sr. deverá distribuir aos pobres, sempre que tiver ocasião, esmolas em atenção ao espírito de Leopoldina, sua falecida esposa. Não é necessário ir a Aparecida, mandar dizer missas, porque sua esposa RECEBEU DE QUALQUER LÁBIO UMA PRECE AO CRIADOR E COM MUITO MAIOR SATISFAÇÃO QUANDO ESSA ORAÇÃO FOR DE UM CORAÇÃO SOFREDOR e que curva-se ante os pés do Pai. A igreja que Deus exige é a boa obra, e a humildade e o cumprimento das leis humanamente traçadas por Ele. Assim, O MÉDIUM MANDA-LHE DIZER QUE PODERÁ DISTRIBUIR O QUE PUDER AOS INFELIZES EM ATENÇÃO AO ESPÍRITO REFERIDO.

Do seu criado e amigo – (a) F. Goulart.”

Para qualquer intrujão da marca de Mirabelli, ou como Mirabelli deslavado, ou insolente como Mirabelli, ou como Mirabelli acostumado a públicas escamoteações, o que acima se relata não prova coisa alguma. A parte sã, porém, dos que se interessam neste caso, única a que nos dirigimos, já agora não pode, EM BOA FÉ, negar razão ao “Correio Paulistano”. 

Se, todavia, houver alguém ainda que se sinta bem na companhia desse sovado arlequim de feira, que continue a prestar-se a esse doloroso desfrute; mas, quanto a nós, fique

EM PAZ E ÀS MOSCAS”. 

Para amanhã:

A explicação dos “truques”

Como é que o lápis sai da garrafa – A caixa que gira e cai – A bengala magnetizada – O chapéu do “espírito”

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