Algumas Reflexões sobre Critérios de Autenticidade de Textos Antigos, com Aplicação na Análise da Autenticidade de Algumas Cartas Paulinas

O texto a seguir é uma resposta, ou melhor, uma reflexão, a algumas considerações que os srs. Marcelo e Carlos teceram, nos comentários ao texto "Resposta ao Prof. Pinheiro Martins, com Referências Iniciais a Pedro de Campos…" do Sr. José Carlos Ferreira Fernandes, publicado neste "blog", e referentes quer, no geral, à confiabilidade dos textos bíblicos, mais especificamente dos neotestamentários, quer à autenticidade de algumas das epístolas que formam o "corpus" dos escritos de São Paulo Apóstolo preservado no Novo Testamento (mais especialmente, a 2a carta aos Tessalonicenses, a carta aos Efésios e as assim denominadas "Pastorais", ou seja, as duas cartas a Timóteo e a carta a Tito).  O objetivo da apresentação a seguir (e que não se pauta por considerações teológicas, mas sim de evidenciação e de confiabilidade histórica e de autoria) é demonstrar que existem bases sólidas e racionais para considerar as cartas citadas como autenticamente paulinas, mostrando igualmente as grandes limitações que os métodos de crítica textual e de análise estilística intrinsecamente possuem.  Defender a integridade e a autenticidade (em termos de autoria, e de valor histórico) dos escritos neotestamentários não é, em absoluto, algo restrito a "fanáticos", a "ortodoxos" e a "carolas"; ao contrário, repousa em estudos circunstanciados e em evidências de forte caráter probante – algo que, muitas vezes, falta àqueles que, para defender suas agendas específicas, constróem castelos assentados em areia na sua ânsia de desmerecer o valor e a autenticidade de tais escritos.

1. Amenidades Introdutórias: 

As observações dos srs. Marcelo e Carlos, acerca de meus posicionamentos sobre a historicidade dos escritos neotestamentários, demandariam, sem dúvida, uma resposta bem detalhada. Contudo, tendo em vista tanto minha (pouca) disponibilidade de tempo quanto os outros compromissos que já assumi com relação a este “blog” e a seus leitores, optei, quanto a isso, por confeccionar um texto independente, embora não (tão) longo, e, mesmo, incompleto. Eu sei que, mais cedo ou mais tarde, terei que me debruçar em tais assuntos de forma bem mais minuciosa; esperava não ter que fazê-lo, mas sei que, cada vez mais, serei cobrado por isso. Claro, considerações desse tipo terão de ser efetuadas, quase certamente, noutro espaço, já que este “blog” não se dedica a assuntos de tal espécie, mas, enquanto isso, e apenas para não deixar tal questão sem nenhum tipo de resposta, peço aos srs. Marcelo e Carlos, bem como a todos os demais leitores, que se contentem com as (poucas) considerações que serão apresentadas a partir de agora. Espero que, ao menos por ora, isso não enseje mais dúvidas, ou pedidos de esclarecimento. Não que não me sinta na necessidade, ou na obrigação, de os fornecer, mas sim estritamente por limitações de tempo, bem como pela assunção de outros compromissos. Assim, peço a todos, quanto a isso, uma boa dose de paciência. 

Há uma grande probabilidade de que aqueles que venham a ler meus escritos neste “blog” pensem que, no que diz respeito às Sagradas Escrituras, eu venha a utilizar um padrão de aceitação bem mais “leniente” do que aquele que utilizo, p.ex., para afirmar a inexistência de “Públio Lêntulo”, assim como a inautenticidade de sua “carta”, ou “relatório”, ao Imperador (ou ao Senado). Isso porque considero que o Novo Testamento (mais especialmente os Evangelhos, e principalmente os Atos, mas também os seus outros escritos, dentro de suas especificidades) é, em si, uma fonte histórica não apenas utilizável, mas de um modo geral confiável, para o período de que trata, qual seja, para o período da missão de Cristo e dos primeiros tempos da Igreja (de cerca do ano 30 dC até cerca do ano 100 dC, com maior ênfase nos anos 30/33 até 62/64 dC, o período coberto pelos “Atos”). Mais ainda, considero que não há nenhuma razão sustentável para se duvidar da existência histórica de Jesus; nem para se duvidar do fato de que os Sinópticos foram escritos antes da destruição do Templo de Jerusalém (70 dC); e nem para se duvidar do fato de que o “corpus” paulino recolhido no Novo Testamento seja autêntico; e assim por diante. Pois, modernamente, a partir do uso da “crítica textual”, bem como da “análise estilística”, vem sendo moda duvidar disso tudo – e apresentar as conclusões assim obtidas como sendo verdades solidamente fundamentadas. 

Para mim, tudo isso é um equívoco; o que posso dizer é que (apesar de muitos talvez duvidarem) o grau de exigência que impus aos escritos neotestamentários, em termos de os aceitar como substancialmente históricos, é absolutamente igual, em termos de exigências de evidenciação, àquele que utilizei, e utilizo, para quaisquer outros documentos, sejam ou não de origem cristã, sejam ou não religiosos – “Lêntulo” inclusive. 

Quando faço uso da expressão “substancialmente históricos”, não quero, em absoluto, afirmar que TUDO o que neles consta seja “histórico” no sentido de: a) terem efetivamente ocorrido exatamente do modo como narrado, ou b) tenham efetivamente ocorrido exatamente na ordem cronológica narrada. Para exemplificar a limitação constante no item “a”, pode-se ter em mente, p.ex., a questão das duas “narrativas da Infância”, referentes ao nascimento e à infância de Cristo, presentes no início dos Evangelhos de Mateus e de Lucas; para “b”, tem-se o ordenamento cronológico efetivo do ministério terreno de Jesus – já que o material referente aos ditos e feitos de Cristo foram claramente reordenados pelos Sinópticos, e por João, tendo em vista uma apresentação mais “lógica” (dentro das especificidades e objetivos de cada Evangelista) do que propriamente “cronológica”. Os Evangelhos não são “só” História, mas são também (e cada um dentro de suas especificidades) História – e boas fontes históricas. 

2. O Papel da Crítica Textual e da Análise Estilística: 

Talvez pelo fato de eu não esposar muitas dessas modernas “conclusões” a que se chega mediante o uso da “crítica textual”, em geral, ou da “análise estilística” em particular, muitos podem ser levados a acreditar que utilizo “pesos diferentes” em minhas análises de autenticidade histórica – o peso mais “leve” sendo reservado para o Novo Testamento. Mas não esposo essas “conclusões” por as considerar, nas mais das vezes, frágeis, e creio que, quanto a isso, não estou sendo “ortodoxo”, e nem utilizando especificamente “dois pesos e duas medidas”, mas sim comportando-me de modo racional. Reafirmo o que já comentei: há muitas hipóteses, mas praticamente nenhuma evidenciação – quando se procuram as bases para todas essas “novas posições”, o edifício, mais uma vez, afigura-se, a meu ver, como um gigante com pés de barro. 

Isso não quer dizer, em absoluto, que a “crítica textual”, ou mesmo a “análise estilística”, sejam inúteis. Muito pelo contrário. São instrumentos muito úteis, e mesmo necessários. Mas, tendo em vista inclusive as suas próprias características de uso (por se pautarem exclusivamente, ou quase, por uma crítica interna dos documentos sobreviventes), são, as mais das vezes, instrumentos AUXILIARES, que não podem, sozinhos, embasar conclusão alguma. Porque, se não são sustentadas por outras evidências, quer arqueológicas, quer referentes à transmissão documental (incluindo-se quer a citação direta, quer a alusão indireta, aos respectivos documentos sob análise), quase sempre não passam de hipóteses, que podem, muito simplesmente, ser combatidas com outras hipóteses – ao longo deste texto, procurarei dar alguns exemplos. 

Com efeito, fatos se combatem com fatos, mas, para teorias e hipóteses, bastam outras teorias e hipóteses. P.ex., se não há nenhuma evidenciação documental (quer citações diretas, quer alusões indiretas) para uma determinada peça escrita que “aparece” de repente no séc. XIV dC, isso é um fato. Para combatê-lo, deve-se contrapor um outro fato – no caso, a descoberta de evidenciações (diretas ou indiretas) anteriores àquela data, até então desconhecidas. E não é fácil “fabricar” fatos. Eles podem ser ignorados, ou escondidos – ou então simplesmente não existirem; mas “fabricá-los” é algo, no mínimo, bem trabalhoso, demandando uma “expertise” de falsificação virtualmente inexistente e gerando “fakes” os quais serão, mais cedo ou mais tarde, desmascarados (veja-se, p.ex. o caso patético daquela peça que era apresentada como “o ossuário de Jesus”; e veja-se também a “assimetria marqueteira” em cima disso – muito barulho e sensacionalismo na sua apresentação, e um virtual silêncio a partir do instante em que ficou patente que se tratava duma falsificação, mediante os estudos da dra Rochelle Altman, uma das maiores especialistas atuais na área de paleografia). Já com teorias, ou com hipóteses de trabalho, isso não ocorre – nada é mais fácil do que as construir, e nada é mais gratificante do que as espalhar. O difícil, contudo (mais uma vez), é sair desse campo da (legítima) hipótese de trabalho para a (efetiva) evidenciação. Hipóteses de trabalho não evidenciadas transformam-se em alegações gratuitas; e tudo aquilo que é gratuitamente afirmado também pode ser gratuitamente negado. 

O grande problema, assim, a meu ver, não reside na “crítica textual” em si, ou na “análise estilística” em si; esses métodos, mais uma vez faço questão de afirmar, são AUXILIARES utilíssimos. O problema é querer tirar conclusões – e, muitas vezes, conclusões portentosas, e revolucionárias – a partir de “hipóteses de trabalho”, muitas delas mirabolantes, calcadas APENAS em tais metodologias, sem respaldo da necessária evidenciação suplementar. 

Se não se consegue tal evidenciação, o melhor que se pode fazer é ficar com o que já se tem. Talvez haja erros, mas a probabilidade da presença de tais erros é menor do que aquela que ocorre com a assunção de hipóteses de trabalho não provadas (por mais “bonitas”, “consoladoras”, “convenientes” ou “politicamente corretas” que sejam). 

Portanto, as evidências arqueológico-documentais (incluindo-se a paleografia, a papirologia, etc.), ligadas quer a citações diretas, quer a alusões indiretas, referentes às obras sobreviventes, bem como o estudo e a análise de toda a tradição ligada especificamente à transmissão de tais documentos – todo esse conjunto, enfim, deve se constituir no critério PRINCIPAL de investigação e de estudo. E o que me parece é que, muitas vezes, essas evidências (principalmente as referentes à tradição da transmissão dos documentos) são, ao contrário, colocadas como secundárias, sendo a “crítica textual” e a “análise estilística” apresentadas como as vedetes. O típico caso da cauda abanando o cão… 

Obviamente, isso não significa que não possa haver problemas nas evidências arqueológicas, papirológicas ou documentais, ou mesmo nas informações que a tradição nos legou acerca da transmissão de determinada peça. Tudo isso deve ser analisado criticamente, mas, no geral, tais problemas (que, sim, ocorrem) são bem menores (e bem menos gratuitos) do que aqueles advindos de meras hipóteses não demonstradas, embasadas apenas por “crítica textual” e “análise estilística”, e que, ao fim e ao cabo, não exibem nenhum controle crítico sobre suas próprias pressuposições. 

Essa é, portanto, a minha visão: quando se analisa a autenticidade de determinado documento, deve-se (aqui listando os procedimentos muito resumidamente): a) sempre se iniciar por uma pesquisa acerca dos espécimes físicos efetivamente sobreviventes, sua datação, suas características físicas, caligráficas e paleográficas, a par das variantes existentes; b) prosseguir então a partir da análise da “evidência de transmissão”, ou seja, da “tradição testemunhal” referente a tal documento (tanto das citações diretas quanto das alusões indiretas, do documento, do seu autor ou do seu teor, acompanhando-se o estudo, claro, da análise crítica do grau de confiabilidade dessas fontes que o citam, ou a ele se referem); c) enfim, suplementar os estudos anteriores com considerações acerca do conteúdo do documento em si, quer em termos de seu assunto, quer via crítica textual, quer mediante análise estilística. É o conjunto desses procedimentos, em que os itens “a” e “b” são fundamentais, e o item “c” é suplementar, que pode vir a fornecer conclusões razoavelmente embasadas acerca da autenticidade da peça em análise. E eu me pergunto: tudo isso tem sido levado na devida conta pelos “modernos”? 

3. Um Exemplo das Limitações da Crítica Textual – O Evangelho de Tomé: 

Os próprios princípios da crítica textual podem levar, muitas vezes, a conclusões totalmente equivocadas. P.ex., diz-se que uma versão mais curta dum determinado dito, ou documento, pode ser tomada como mais próxima do “original”, ou do “autógrafo”, do que uma versão mais longa. Há, claro, motivos razoáveis para se pensar assim; e, no próprio âmbito da sabedoria popular (i.e., no âmbito do “senso comum”), há o conhecido adágio segundo o qual “quem conta um conto aumenta um ponto”. Mas a questão é: será isso sempre verdadeiro? Mais ainda: pode-se, APENAS a partir dessa constatação, ou melhor, dessa hipótese de trabalho, classificar um documento, ou parte dum documento, como “mais antigo” ou “mais recente”? Talvez o melhor exemplo, quanto a isso, diga respeito à peça gnóstica conhecida como “Evangelho de Tomé”, que muitos (principalmente John-Dominic Crossan) consideram como uma fonte independente acerca do Jesus histórico, quando já foi (a meu ver, cabalmente) demonstrado que se trata dum pastiche calcado nos quatro Evangelhos Canônicos, em que os ditos de Jesus eram reinterpretados em chave gnóstica. A principal razão para que o “Evangelho de Tomé” fosse considerado assim tão antigo era justamente o caráter “seco”, “enxuto”, “curto”, dos ditos de Jesus que nele estavam presentes, sinal (segundo os princípios da crítica textual) de que seriam uma forma mais “antiga” dos mesmos, mais próxima dos “originais” – enfim, uma fonte no mínimo tão confiável quanto a dos Evangelhos Canônicos, se não mais. De fato, a apresentação geral do Evangelho de Tomé, que se mostra como um elenco de ditos de Jesus, sem material narrativo, lembrava a muitos estudiosos a “primitiva” “fonte Q” (que, aliás, até agora continua existindo apenas na imaginação, já que nenhuma evidência documental direta, ou menção acerca dela, foi encontrada – outra fantasmagoria tomada como certeza). 

Quanto a isso, limito-me a citar trechos da pertinente análise efetuada por John P. Maier, no primeiro volume (cap. 5, “As Fontes – Os Ágrafa e os Evangelhos Apócrifos”) de sua coleção “Um Judeu Marginal – Repensando o Jesus Histórico”: 

“Por um lado, o evangelho [de Tomé] contém frases iguais ou muito semelhantes às dos [Evangelhos] Sinópticos [i.e., Mateus, Marcos e Lucas]. Consideradas isoladamente ou (…) em seu contexto sinóptico, tais frases nunca nos pareceriam gnósticas. No entanto, no Evangelho de Tomé essas frases, à semelhança dos Sinópticos, estão justapostas a outras de evidente matiz gnóstico e, por vezes, parecerem ter sido reformuladas de modo a transmitir uma mensagem gnóstica”. 

(…) 

“No mito gnóstico implícito no Evangelho de Tomé, os espíritos individuais originalmente habitavam o reino da luz, o reino do Pai, que é o princípio básico do ‘Todo’ (…) Por sua própria natureza, esses espíritos eram todos unidos ao divino e da mesma substância que ele. Em decorrência de algum tipo de catástrofe primeva, alguns desses espíritos passaram para a pobreza deste mundo material, sendo aprisionados na roupagem carnal de corpos humanos. Tal queda e aprisionamento fizeram com que adormecessem espiritualmente, esquecessem sua verdadeira origem no reino da luz, vivendo como bêbados e cegos no reino da escuridão. O Jesus ‘vivo’ (basicamente, o Filho intemporal, eterno, sem uma verdadeira encarnação material, o longo ministério terreno dedicado ao povo judeu em geral, a morte real ou a verdadeira ressurreição do corpo) vem a este mundo para despertar os espíritos, para lembrá-los de sua origem e destino verdadeiros, para libertá-los da ilusão de que pertencem a este mundo material e mortal. Da mesma substância divina daqueles que procura, Jesus os salva apenas revelando-lhes a verdade sobre quem são, isto é, seres divinos que pertencem a outro mundo. Esse conhecimento, puro e simples, logo salva essas criaturas espirituais. Assim que compreendem quem são, libertam-se imediatamente das ‘roupagens’ de seus corpos materiais, os quais podem esmagar sob os pés”. 

(…)

“Não existe um reino nas alturas ou no futuro a ser esperado; o reino espiritual já está dentro e ao redor de cada um, bastando apenas usar a visão interior para vê-lo. O mundo material e o corpo físico são rejeitados como malignos e, tanto quanto possível, é preciso renunciar às coisas materiais. O sexo é visto como um mal, e o papel da mulher, o de gerar novos espíritos aprisionados em corpos, é particularmente condenado. Através do ascetismo, os espíritos já em princípio triunfam sobre o corpo, que será totalmente abandonado com a morte física”. 

(…) 

“Somente à luz dessa estranha mistura de misticismo, ascetismo, panteísmo e politeísmo é que se podem entender algumas das palavras do Jesus ‘vivo’ [do Evangelho de Tomé]: ‘Quem não se abstém do mundo, este não encontrará o reino’ (dito 27); ‘Espanta-me que tão grande riqueza tenha vindo habitar nesta pobreza’ (dito 29); ‘Onde houver três criaturas divinas, todas são divinas. Onde houver duas ou uma, eu próprio moro nela’ (dito 30); ‘Se vos perguntarem de onde vindes, respondei que é da luz que vindes’ (dito 50); ‘Jesus disse: Eu é que sou o Todo, é de mim que o Todo veio, é para mim que o Todo vai. Cortai um pedaço de madeira: eu estou ali. Levantai uma pedra, e me encontrareis ali’ (dito 77); (…) ‘Simão Pedro lhes disse: Maria [Madalena] deve deixar-nos, pois que as mulheres não são dignas de viver. Jesus disse: Vede, eu vou guiá-la para fazer dela um homem, de modo que ela também possa se transformar num espírito vivo que se pareça com vós homens. Pois toda mulher que se faça homem entrará no reino do céu’ (dito 114). Com tal sumário diante de nós, fica claro que a intenção dominante do redator do Evangelho de Tomé é gnóstica, e que as palavras semelhantes às dos Sinópticos devem ser (re)interpretadads de acordo com o seu ‘genuíno’ e secreto significado gnóstico. Como este tipo de visão gnóstica do mundo só veio a ser empregado para ‘reinterpretar’ o Cristianismo de forma tão completa no decorrer do séc. II dC, não há como aceitar que o Evangelho de Tomé, no seu todo, como se apresenta no texto copta, seja um reflexo confiável do Jesus histórico ou das fontes do cristianismo do séc. I dC. Na verdade, é sintomático que o mais antigo dos papiros de Oxirrinco, os primeiros testemunhos (em grego) do Evangelho de Tomé [anteriores a recensão copta encontrada em Nag-Hammadi], seja datado de aproximadamente 200 dC; foi em algum momento do séc. II dC que a composição que conhecemos como o Evangelho de Tomé tomou forma, como expressão do cristianismo gnóstico daquele período”. 

(…) 

“Mais importante ainda, alguns padrões começaram a surgir [com relação aos apócrifos, em geral, e ao Evangelho de Tomé, em particular]. Sob o poderoso impacto dos Quatro Evangelhos [canônicos, Mateus, Marcos, Lucas e João], escritos no séc. I dC mas gradualmente reconhecidos como canônicos apenas mais tarde, o cristianismo do séc. II dC explodiu em febris tentativas de imitar, fundir e harmonizar estas quatro ‘vidas’ de Jesus, assim como de criar novas vidas e novos Jesus. Por vezes, a força dominante era apenas a imaginação pia e a curiosidade do cristianismo ‘popular’, que beiravam o novelesco (p.ex., o ‘Protevangelium Iacobi’); em outras ocasiões, uma proposta mais teológica, geralmente de conteúdo gnóstico, vislumbrada através dos fragmentos (p.ex., o Evangelho dos Egípcios). Mas em nenhum caso anterior às nossas investigações do Evangelho de Tomé encontramos qualquer documento que pudesse conter palavras autênticas de Jesus, independentes dos Evangelhos Canônicos. Assim, se o Evangelho de Tomé de fato contém tais palavras independentes, é praticamente o único na literatura cristã do séc. II dC. Se, ao contrário, ele se baseia nos Evangelhos Canônicos, se enquadra perfeitamente no panorama maior do cristianismo da época. Quero enfatizar que este ponto é simplesmente uma consideração preliminar, mas ela emana de tudo o que vimos até agora e coloca a questão apropriada de como havemos de imaginar o Evangelho de Tomé dentro da evolução da literatura cristã do séc. II dC”. 

(…) 

“Quando os estudiosos discutem se ele [o Evangelho de Tomé] é independente dos Evangelhos Canônicos, um dos argumentos mais freqüentes é que o Evangelho de Tomé nos apresenta uma versão mais curta e concisa de um determinado dito ou parábola, sem a alegoria e a teologia redacional acrescentadas pelos quatro evangelistas [canônicos]; à primeira vista, este argumento é direto e atraente, porém uma reflexão melhor nos mostra que ele não é tão probatório como parecia de início (…) Nem sempre é absolutamente verdadeiro, na tradição evangélica, que o texto mais curto seja mais antigo ou independente do texto mais longo que contém o mesmo material. (…) O redator desse evangelho [de Tomé] não pretende que os ditos de Jesus sejam prontamente compreendidos por qualquer leitor. Ao contrário, suas palavras são apresentadas como doutrinação esotérica, inteligíveis apenas aos iniciados, que, munidos da ‘lanterna’ da visão gnóstica do mundo, procuram na escuridão para encontrar o significado gnóstico oculto das palavras de Jesus. Como resultado dessa hermenêutica, o redator do Evangelho de Tomé propositadamente trata de suprimir da tradição qualquer coisa que torne as palavras de Jesus muito claras ou unívocas, ou qualquer coisa que use o discurso genérico para realçar uma aplicação específica (geralmente moral ou eclesiástica). Dessa forma, o redator naturalmente desfaz o que os quatro evangelistas canônicos tão arduamente se esforçaram para escrever, pois, através de alegorias ou outros acréscimos e reformulações redacionais, eles muitas vezes explicam o significado dos pronunciamentos de Jesus, ou os aplicam a questões concretas da Igreja. São esses acréscimos esclarecedores que Tomé sistematicamente omite, criando assim uma versão mais curta e compacta de um dito ou parábola. O enfoque totalmente gnóstico de Tomé faz com que ele se incline para uma forma lacônica, ‘contraída’, despojada da tradição (…)”. 

Até aqui, alguns trechos da análise de Maier.

Esse critério da “forma primitiva mais curta”, que aqui foi especificamente analisado, portanto, não pôde, por si apenas, levar a uma análise realista acerca da autenticidade (em termos de sua ligação direta às “fontes primitivas”) do “Evangelho de Tomé”; apenas a aplicação conjunta de várias das considerações que aqui já elencamos como ESSENCIAIS pôde gerar uma análise minimamente aceitável. E tal situação pode ser extrapolada para quaisquer critérios que a “crítica textual” venha a utilizar, como é deixado claro a partir da tabela a seguir.

Critério

Limites e Objeções a Serem Levadas em Conta

Critério da Dificuldade, ou do Constrangimento: parte do princípio de que dificilmente se inventa algo que possa causar constrangimentos, ou dificuldades. Assim, se um determinado texto possui um conteúdo polêmico, ou, principalmente, embaraçoso, há uma razoável probabilidade de se tratar de material autêntico.

Trata-se, sem dúvida, dum critério forte – na minha modesta opinião, trata-se do mais forte dos critérios da “crítica textual”; mas mesmo ele deve ser utilizado com prudência; sua força probante diminui se não há muitos manuscritos sobreviventes, pois, nesse caso, um texto “embaraçoso” pode dar impressão de autenticidade apenas devido a uma antiguidade relativa.

Critério da Descontinuidade: parte do princípio de que uma determinada característica, ou um conteúdo específico, do documento, que seja muito diferente do que se esperaria para a época, para o lugar ou para o meio social tem razoável probabilidade de ser autêntico, já que falsificações ou invenções tenderiam a “seguir o padrão” usualmente conhecido e previamente esperado (falsificadores e inventores tendem a “seguir servilmente a média”).

Também tem, ao menos em princípio, uma razoável força probante, mas com os mesmos limites mostrados para o critério anterior. Deve-se tentar sempre estabelecer um “equilíbrio”, já que nenhum documento é nem totalmente apartado das, e nem totalmente aderente às, características de sua época, meio ou lugar. Levado a extremos, o critério da descontinuidade transformaria cada documento num “caso único”, repleto de idiossincrasias.

Critério da Continuidade: parte do princípio de que determinadas características, ou determinado conteúdo, dum documento, que sejam coerentes com o que se esperaria de documentos da mesma espécie, do mesmo tempo, do mesmo lugar e do mesmo meio social, teriam razoável probabilidade de se mostrarem autênticos.

Esse critério (que é a antítese do anterior!) tem força probante apenas relativa. Um falsificador, ou inventor, sempre tentaria fazer com que sua peça se conformasse o mais possível às características (inclusive estilísticas) inerentes ao tipo de documento que estivesse forjando. E, além disso, há a questão do “equilíbrio”, mencionada no critério anterior (o da descontinuidade), já que nenhum escritor, ou documento, é totalmente “conforme” e “aderente” à “média” que se esperaria obter em sua época, meio e lugar. E nem, tampouco, totalmente apartado dela…

Critério do Testemunho Múltiplo, ou da Múltipla Atestação: parte do princípio de que determinado conteúdo dum documento que seja encontrado em várias fontes independentes entre si tem maior probabilidade de ser autêntico, já que seria muito difícil que várias fontes independentes inventassem ou falsificassem algo que resultasse numa peça de mesmo, ou muito semelhante, conteúdo.

Esse critério, ao menos teoricamente, tem boa força probante, e situa-se, na prática, na fronteira entre a “crítica textual” e os critérios evidenciais principais (essenciais) já citados neste trabalho. O problema, aqui, é estabelecer a INDEPENDÈNCIA das fontes. Isso somente pode ser feito (quando pode) a partir da análise cuidadosa dos documentos sobreviventes, em termos dos critérios de evidenciação principais já mencionados: evidências arqueológicas, papirológicas, documentais em geral (diretas ou indiretas, referentes às obras sobreviventes), bem como a tradição ligada especificamente à transmissão dos documentos.

Critério da Forma Primitiva mais Curta: parte do princípio de que, para várias versões dum documento, ou trecho de documento, a versão mais curta, lacônica e despojada, e na qual se notem menos elementos digressivos ou explanatórios, tem maior probabilidade de ser autêntica.

Suas limitações, creio, já foram bem exemplificadas no caso do “Evangelho de Tomé”, anteriormente citado. Uma forma mais curta pode ser simplesmente posterior a uma mais longa, e resultado duma edição do texto original, tendo em vista uma “agenda” específica (no caso do Evangelho de Tomé, uma “agenda” gnóstica).

Critério (ou melhor, Metodologia) da Coerência: a partir dum conjunto de materiais considerados com alto grau de probabilidade de autenticidade, obtidos pela aplicação dos critérios anteriores, pode-se utilizar a simples comparação para se determinar o grau de probabilidade de que novos materiais sejam considerados igualmente autênticos.

Potencialmente, trata-se duma metodologia razoável, desde que o tal “conjunto” seja, de fato, representativo. Pois pode haver peças “não representativas” incluídas, por engano ou descuido, no “conjunto de comparação”, e que resultem no descarte de peças genuínas que não se “encaixem” nesse padrão de comparação viciado.

 

Que isso baste, então, para mostrar a incapacidade de os princípios da “crítica textual”, POR ELES APENAS, poderem levar a conclusões solidamente embasadas acerca da autenticidade de um texto. O exemplo que aqui se citou, referente à “maior antiguidade” dos “textos mais curtos e enxutos”, pode, como se vê, ser facilmente extrapolado, com as devidas adaptações, para quaisquer critérios esposados pela “crítica textual”; seu caráter AUXILIAR (embora útil e necessário) mostra-se, assim, evidente.

4. Os Limites da “Análise Estilística” – Tácito, Flávio José, e o Novo Testamento:

4.1. Tácito e o “Diálogo sobre os Oradores”:

Quanto à análise estilística, ela é em tudo semelhante a um modelo matemático sofisticado, no sentido de se mostrar tão mais útil e confiável nos resultados que gera quanto mais abundantes, e melhores, forem os dados de entrada, e contra os quais o documento em questão for comparado. Ou seja, para que critérios eminentemente estilísticos possam ter algum valor (e, mesmo assim, note-se, valor SUPLEMENTAR, RELATIVO e AUXILIAR, nunca essencial) no que concerne à análise da autenticidade dum documento, deve-se ter um amplo conjunto de textos da mesma espécie, e considerados originais, do mesmo autor, para servir de base de comparação. 

Porque diferenças de estilo e de vocabulário (na maior parte das vezes, aliás, arbitrariamente exageradas pelos críticos) podem se originar quer da idade de quem escreve (o “estilo” de alguém, sem dúvida, “amadurece” com o tempo), quer do tipo de documento (p.ex., se é mais ou menos formal), quer do assunto em si (há assuntos que pedem um estilo mais leve, ao passo que para outros um estilo mais detalhado, ou técnico, torna-se necessário), quer de circunstâncias específicas, quer dos próprios destinatários. Daí a necessidade, para a análise estilística, dum grande conjunto de textos (considerados originais) da mesma espécie, e do mesmo autor, para servirem de “bloco de comparação” – algo que nem sempre é possível de se obter. Aliás, no que diz respeito a textos antigos, quase nunca se consegue algo assim… 

Ainda especificamente no caso de textos antigos, deve-se também levar em consideração que os “estilos” considerados “corretos” e “adequados” para os diferentes assuntos (p.ex., para obras históricas, ou para peças retóricas, ou para discursos de ocasião e/ou panegíricos, e isso sem falar em poesia), muitas vezes, se sobrepunham às próprias características pessoais de escrita dos autores, já que a preocupação com a adequação do estilo ao tema era muito maior, para os autores antigos, do que ocorre, p.ex., nos tempos modernos. Assim, peças duma mesma categoria, mesmo que de autores distintos, tendiam a apresentar muitas semelhanças, já que seus autores procurariam, tanto quanto possível, enquadrá-las nos “clichês” dominantes (e esperados) para os respectivos assuntos. Essa característica da literatura clássica greco-romana, sempre presente, mas que se acentuou sobremaneira a partir da época de Augusto (31 aC – 14 dC) e dos Júlio-Cláudios (14-68 dC), com a progressiva ênfase retórica e tendência de “modelização” e de “beletrismo” das peças literárias (até mesmo históricas), por si só, requer de qualquer afirmação de autoria, ou de autenticidade, dum documento antigo, se se basear apenas, ou preponderantemente, em critérios estilísticos, um extremo cuidado, a par dum alto grau de prudência. 

Pode-se verificar isso, p.ex., quando se analisam estilisticamente as obras do historiador romano Cornélio Tácito (c.55 dC – c.117 dC). O estilo historiográfico de Tácito é inconfundível, mas, no que diz respeito à sua obra “Diálogo sobre os Oradores”, nota-se um modo de expressão razoavelmente distinto daquele de suas demais obras, principalmente do das suas grandes obras históricas, as “Histórias” (escritas por volta de 102 dC) e os “Anais” (escritos por volta de 117 dC). Com efeito, o estilo do “Diálogo sobre os Oradores”, assim dizem os entendidos, embora refinado, é mais “leve”, menos condensado, mais “clássico” do que o usual em Tácito, apresentando-se como mais próximo do de Cícero, ou das prescrições de Quintiliano. Essa diferença pode ser, no entanto, totalmente explicada quer pelo assunto (com certeza), quer (talvez também) pelo período de composição. 

De fato, o “Diálogo sobre os Oradores” era uma peça retórica, que procurava analisar a pretensa “decadência” da oratória romana, tal como se verificava, na visão de Tácito, sob o Império, ou seja, sob o governo de um só, quando comparada com a grande e vivaz oratória da época republicana; ora, em obras versando sobre assuntos retóricos da espécie, era usual que se utilizasse Cícero como paradigma, o que explicaria o estilo mais “leve”, e mais aderente aos modelos “clássicos”, presente no “Diálogo”. 

Essa diferença pode se dever também, adicionalmente, ao fato de o “Diálogo” ser uma obra da juventude de Tácito. Ela é dedicada a Fábio Justo, cônsul 102 dC, e essa vem sendo considerada como a data da composição – mas poderia apenas ser a data da “publicação” e da “dedicação formal” do trabalho, já que, no capítulo 17 do “Diálogo”, faz-se explicitamente menção, no contexto duma disputa retórica, de que o enredo passa-se no 6o ano do império de Vespasiano, ou seja, por volta do ano 75 dC. 

Considerando que a menção ao 6o ano do império de Vespasiano não seja apenas ficcional, mas que, de fato, esteja ligada à época, ainda que aproximada, da efetiva composição do “Diálogo”, ambas as vertentes citadas anteriormente podem se complementar para explicar a diferença estilística da peça em análise: era um trabalho de índole eminentemente retórica (portanto, por convenção, mais ligada aos modelos clássicos ciceronianos e, tendo em vista a valorização da oratória “clássica” que advoga, igualmente às prescrições de Quintiliano), e, além disso, composta por um Tácito ainda novo (nos seus vinte anos), ainda sem ter seu “estilo próprio” totalmente amadurecido. Não obstante, não se duvida seriamente da autoria taciteana do “Diálogo”, mesmo com essas diferenças estilísticas; inclusive, a tradição manuscrita sempre agrupou essa peça com as demais obras “curtas” de Tácito (a “Vida de Agrícola” e o “Germânia”). As diferenças estilísticas quedam-se, assim, totalmente explicáveis quer pelo assunto, quer pela idade do autor, quer por ambas[1]. 

4.2. De novo o “Testimonium Flavianum”: 

Pode-se também tomar um outro exemplo, qual seja, o referente a uma “análise estilística” do “Testimonium Flavianum”, como aquela que Alice Whealey realizou, palavra por palavra, expressão por expressão, no seu “paper” “Josephus, Eusebius of Caesarea and the Testimonium Flavianum”, em Josephus und das Neue Testament, Tubingen, 2007, págs. 73-116. Tal análise, especificamente, pode, ao menos em termos potenciais, resultar em conclusões válidas, ou, ao menos, com razoável grau de probabilidade, uma vez que existe todo um “corpus”, bastante amplo e volumoso, de textos de mesma espécie (históricos), do mesmo autor (Flávio José), e numa mesma obra, que podem servir de comparação, nomeadamente todo o conteúdo dos 20 “livros” d’ “As Antiguidades Judaicas”. A conclusão de Whealey é a de que o estilo do “Testimonium”, inclusive nas partes usualmente consideradas como “interpoladas”, não pode ser considerado como diferente do estilo utilizado por Flávio José n’ “As Antiguidades Judaicas”. E aí? O que dizem, então, os “críticos textuais”? Se são capazes de utilizar resultados de “análise estilística” (tendo por base conjuntos de comparação bem mais magros) para “declarar” a não autenticidade de certos textos, estariam prontos para considerar tal análise do “Testimonium”, e apenas ela, como prova de sua autenticidade? Creio que não; muitas vezes, os mesmos que se prostram idolatricamente diante do “admirável mundo novo” da crítica textual e da análise estilística são aqueles que dizem que Jesus não existiu historicamente, que o “Testimonium” é falso, tendo sido provavelmente forjado por Eusébio de Cesaréia, etc., etc., etc… Isso, sim, é usar “dois pesos e duas medidas”! 

A “análise estilística” do “Testimonium” tem muito mais valor probante, em si, do que qualquer “análise estilística” que se possa fazer com qualquer obra neotestamentária, em geral, ou mesmo com qualquer epístola paulina, em particular (entraremos nesse assunto de modo mais detalhado a seguir). Não obstante, a principal razão para se considerar o “Testimonium” como substancialmente autêntico ainda são os inúmeros argumentos PRINCIPAIS, inclusive em termos de tradição e transmissão manuscrita, a par das citações e alusões, diretas ou indiretas, que a mesma Whealey elenca em seu livro “Josephus on Jesus – the Testimonium Flavianum Controversy from Late Antiquity to Modern Times”, Peter Lang Ed., 2003, 231 págs.; e, mesmo que a “análise estilística” não tenha detectado interpolações, admite-se que houve, sim, interpolações, ainda que poucas (menos do que usualmente se supõe) no “Testimonium”. A “análise estilística”, assim, entra como deve entrar, como um complemento, e um complemento útil, de todo um conjunto de análises efetuadas a partir do estudo de dados efetivos referentes à tradição documental e à citação da peça, quer direta, quer indiretamente. 

Porque, enfim, nessa questão toda, segundo a qual “estilos semelhantes” seriam maior garantia de “autenticidade”, tem-se uma situação análoga àquela referente ao fato, já analisado, de que “formas mais curtas” dum documento, ou trecho de documento, seriam “mais antigas” e “com maior probabilidade de autenticidade” do que formas mais longas ou elaboradas; de fato, mais uma vez rememorando: 

·         Se eu fosse um falsificador, ou um editor de textos, e quisesse aumentar o grau de plausibilidade de minha falsificação, ou edição, procuraria não um estilo diferente, mas sim um estilo tão semelhante quanto possível àquele do autor cuja obra estivesse falsificando, ou editando; e 

·         Mesmo no caso de estilos ou apresentações semelhantes, p.ex., sendo “A” semelhante a “B”, isso pode ocorrer pelo fato de “A” ter gerado “B”; mas, ao menos potencialmente, também pode ocorrer por “B” ter gerado “A”, ou então pelo fato de tanto “A” quanto “B” terem sido originados por “C”… Mais uma vez, mostra-se claro que a “análise estilística”, mesmo quando pode dispor dum grande “corpus” de textos “genuínos” para comparação, é um critério suplementar.

Portanto (e combatendo “teoria” com “teoria”), pode-se dizer que a existência de variantes de estilo seria muito mais um sinal de autenticidade do que, propriamente, de falsificação, já que um falsificador buscaria o semelhante, a fim de dar crédito a seu próprio trabalho. E aí? O “desempate”, claro, somente pode advir de outros critérios de evidenciação – justamente daqueles que temos denominado, neste texto, de critérios “principais”. 

4.3. O Novo Testamento e o “Corpus” Paulino: 

Mas agora seria interessante contrapor todas essas considerações anteriormente tecidas acerca da “análise estilística” para o caso do Novo Testamento, e, mais especificamente, para o caso das epístolas paulinas. 

Deve-se notar, quanto a isso, e antes de mais nada, a extensão do “material de comparação”: em termos dos Evangelhos/Atos, há quatro conjuntos distintos: “Mateus”, “Marcos”, “Lucas + Atos” e “João”; cada um deles podendo ser contido num único “livro”, i.e., “rolo” (exceto a obra lucana, que, embora pudesse ser arranjada num volumoso e pouco manuseável “livro”, ou “rolo”, quase certamente o seria em dois “livros”, ou “rolos”; por outro lado, o “livro”, ou “rolo”, de Marcos seria bem magrinho). As cartas paulinas (considerando todo o conjunto “canônico” incluído no Novo Testamento, ou seja, também Hebreus, as Pastorais e o bilhete a Filêmon) poderiam ser agrupadas em cerca de 110 fólios (220 páginas), mais ou menos a mesma extensão de fólios necessários para os Quatro Evangelhos e os Atos dos Apóstolos. Ou seja, no total, ter-se-ia, na prática, um conjunto de cinco “livros” (rolos) para cada conjunto (“Evangelhos Canônicos + Atos” e “Corpus Paulino”) – isso, claro, se os cristãos tivessem utilizado a forma padrão do livro, o “rolo”; todas as evidências sugerem (e sugerem fortemente) que, se não desde o início, pelo menos desde a época imediatamente após a dos Apóstolos, as Escrituras cristãs foram acondicionadas no novo formato de livro, o “códice” (que é o formato atual dos livros, ou seja, um conjunto encapado de folhas individuais – não um rolo contínuo – unidas por costura numa lombada). 

Assim sendo (e ainda raciocinando, apenas para fins didáticos e comparativos, em termos de “rolos”), para “análises estilísticas” no conjunto “Evangelhos-Atos”, seriam disponíveis uns cinco “livros” (rolos), representando quatro conjuntos distintos (o maior, em dois “livros”, constituído pela obra lucana), de autores distintos, compostos em épocas distintas, com características, finalidades e arranjos também distintos, possuindo três desses conjuntos um material comum retrabalhado, cuja fonte, ou fontes, originais, quer tenham sido escritas ou orais, não sobreviveram e nem deixaram vestígios documentais. Compare-se isso aos 20 “livros” (rolos) de texto corrido d’ “As Antiguidades Judaicas”, que se pode ter como “bloco de comparação”, p.ex., para o “Testimonium Flavianum” e, creio, meu pessimismo em relação às conclusões advindas SOMENTE da “análise estilística” aplicada aos Evangelhos e aos Atos, bem como a quaisquer considerações referentes a “quem copiou de quem, e o que é mais antigo” (a velha questão de “A” gerar “B”, ou de “B” gerar “A”, ou de “A” e “B” serem gerados por “C”…) ficará não apenas entendido mas, creio, justificado… 

Para “análises estilísticas” no conjunto do “corpus” paulino, haveria a disponibilidade (como visto) de outros tantos cinco “livros” (rolos). Bem, aqui já há algum volume ligado especificamente a um único autor; talvez se consiga alguma coisa… Não obstante, os cinco “livros” incluem TODO o “corpus” paulino, tal como se apresenta atualmente no Novo Testamento; retirando-se o material que é usualmente considerado sub iudice, qual seja, as Pastorais e o bilhete a Filêmon (unas 20 páginas, ou 10 fólios), a carta aos Colossenses (umas 10 páginas, ou 5 fólios), a carta aos Efésios (umas 12 páginas, ou 6 fólios), a 2a carta aos Tessalonicenses (umas 4 páginas, ou 2 fólios) e, claro, a carta aos Hebreus (umas 24 páginas, ou 12 fólios), tudo isso somaria uns 35 fólios (ou 70 páginas), ou seja, “grosso modo” 1½ “livro”, ou rolo; ter-se-iam, assim, 3½ “livros” (rolos) remanescentes, e não cinco, como “bloco de comparação”. Ainda razoável, pode-se pensar. Mas não se deve esquecer que esses 3½ “livros” restantes não se constituem (como os 20 “livros” d’ “As Antiguidades Judaicas” de Flávio José, ou as partes sobreviventes dos “Anais” ou das “Histórias” de Tácito) duma única obra, em texto corrido, dum tipo específico (prosa historiográfica), cobrindo um único assunto principal – mas sim de várias “cartas de ocasião”, escritas sem planejamento prévio, ao longo de anos, com tamanhos diversos, para comunidades diversas (i.e., destinatários específicos) e referindo-se a assuntos diversos (das mais abstratas especulações teológicas a normas práticas para a resolução de conflitos específicos que se verificavam nas diversas comunidades); e, mais uma vez, meu pessimismo (ou, no mínimo, a necessidade dum altíssimo grau de prudência) em relação a conclusões advindas SOMENTE da “análise estilística”, aplicada também ao “corpus” paulino, mostra-se (creio) plenamente justificada. 

4.4. Análise Estilística Quantificada – “Hapax Legomena” em Paulo, Shakespeare e Platão:

Como a “crítica textual” em geral, também a “análise estilítica”, especificamente, exibe um grau não pequeno de subjetividade. Não obstante, há a possibilidade de análises mais objetivas, por assim dizer; e, quanto a isso, um dos estudos estilísticos mais simples de se realizar (e, durante longo tempo, tido pelos adeptos da “análise estilística” como tendo alto caráter probante) no “corpus” de obras dum determinado autor, é o referente à computação de “hapax legomena”, ou seja, de “palavras únicas”. Um “hapax legomenon” (em grego, “algo dito apenas uma vez”) constitui-se numa palavra que aparece apenas uma vez, quer numa determinada obra, quer num conjunto de obras dum mesmo autor. Trechos duma obra, ou obras específicas, que apresentassem um número muito grande de “hapax legomena” seriam fortes candidatos à inautenticidade, partindo-se do pressuposto de que o estilo dum determinado autor caracterizar-se-ia, entre outras coisas, por um uso “médio” razoavelmente determinado de palavras “raras”, e que o uso quer muito baixo, quer muito alto, de palavras “únicas” (i.e., de “hapax legomena”) seriam um indicador forte de que o documento, ou parte dele, teria sido forjado (quer imitando o estilo do autor – caso em que haveria pouquíssimos “hapax legomena” em relação à média –, quer utilizando um estilo próprio do falsificador, situação na qual haveria, ou tenderia a haver, muitos mais “hapax legomena” do que a média observável para os textos “autênticos”). 

Seguindo essa teoria, vários estudiosos, a partir da obra de Harrison[2], consideraram as cartas paulinas denominadas “Pastorais” (as duas cartas a Timóteo e a carta a Tito), bem como a “carta” aos Hebreus, como não sendo da autoria do Apóstolo. Não obstante, o minucioso estudo de Workman, realizado ainda bem antes do trabalho de Harrison, simplesmente desmente esse pressuposto, como aqui se mostrará[3]. 

Inicialmente, tomando um “hapax legomenon” como qualquer palavra utilizada numa epístola do “corpus” paulino que não fosse encontrada em nenhum outro escrito do Novo Testamento (inclusive nas restantes cartas paulinas), a partir de consulta ao “Lexicon” de Grimm-Thayer, Workman catalogou tanto o número absoluto de “hapax legomena” presentes nas cartas paulinas quanto a média por página, tendo em vista a edição de Westcott-Hort. Os resultados são tabulados a seguir (a apresentação das cartas segue a ordem cronológica tradicional aproximada): 

Carta

Número Absoluto de “Hapax Legomena”

Número médio de “Hapax Legomena” por página, segundo a edição de Westcott-Hort

1ª Tessalonicenses

23

4,2

2ª Tessalonicenses

11

3,6

Gálatas

34

4,1

1ª Coríntios

110

4,6

2ª Coríntios

99

6,1

Romanos

113

4,3

Colossenses

38

6,3

Filipenses

41

6,8

Efésios

43

4,9

Filêmon

5

4,0

Hebreus

154[4]

7,7[5]

1ª Timóteo

82

11,0

Tito

33

13,0

2ª Timóteo

53

13,0

 

O melhor critério de comparação, no caso (tendo em vista os tamanhos variáveis das cartas), reside no número médio de “hapax legomena” por página. Note-se que tal presença relativa de “hapax legomena” é, efetivamente, alta nas Pastorais, e bem alta em “Hebreus”. Mas tal diferença, quando comparada com a carta aos Filipenses, é da mesma ordem de grandeza daquela existente, p.ex., entre a 2ª aos Coríntios e a 2ª aos Tessalonicenses. Ademais, pode-se notar a tendência no aumento do uso relativo de “hapax legomena” nas cartas consideradas mais “tardias”, o que é algo perfeitamente razoável, tendo-se em conta a evolução de estilo que naturalmente ocorre ao longo da vida dum escritor (normalmente para um estilo mais elaborado, com a tendência de uso de palavras mais “raras”)[6], algo verificado na prática, e que contraria uma das premissas básicas do uso exclusivo de “hapax legomena” para fins de determinação de autoria.

“Desculpa esfarrapada”, dir-se-á. De modo algum; e isso pode ser inclusive quantitativamente demonstrado quando se analisam, p.ex., os resultados dum “estudo estilístico” semelhante, que o mesmo Workman efetuou para as peças duma personagem bem conhecida, o autor teatral William Shakespeare (1564-1616), peças essas sobre cuja autoria não paira (seriamente) nenhuma dúvida entre os estudiosos do assunto, a partir da coletânea em um volume das obras shakespearianas de Irving, e também arranjadas cronologicamente. Os resultados encontram-se a seguir:

Peça

Data de Composição

Número médio de “Hapax Legomena” por página, segundo a edição em volume único de Irving

Henrique VI, parte III

1589 (ou 1590)

3,5

Ricardo III

1591 (ou 1592)

4,4

Comédia dos Erros

1592 (talvez 1590)

4,5

Tito Andrônico

1593 (talvez 1587)

4,9

A Megera Domada

1593 (talvez 1589)

5,1

Os Dois Cavalheiros de Verona

1594 (talvez 1588)

3,4

Trabalhos de Amor Perdidos

1594 (talvez 1593)

7,6

Romeu e Julieta

1594/95 (talvez 1592)

5,7

Ricardo II

1595

4,6

Sonho de uma Noite de Verão

1595

6,8

Rei João

1596 (talvez 1592)

5,4

O Mercador de Veneza

1596

5,6

Henrique IV, parte I

1597

9,3

Henrique IV, parte II

1598

8,0

Henrique V

1599

8,3

Júlio César

1599

3,4

Muito Barulho por Nada

1599

4,7

Como Quiseres

1599

6,4

As Alegres Comadres de Windsor

Entre 1597-1600

6,9

Hamlet

1599 (ou 1600)

10,4

Noite de Reis

1602

7,5

Troilo e Créssida

1602

10,1

Tudo Está Bem Quando Acaba Bem

1603

6,9

Otelo

1603

7,3

Rei Lear

Entre 1603-1606

9,7

Macbeth

Entre 1603-1606

9,7

Medida por Medida

1603

7,0

Antônio e Cleópatra

1606

7,4

Coriolano

1607

6,8

Timão de Atenas

1607

6,2

Péricles, Príncipe de Atenas

1608

5,2

Cimbelino

1609

6,7

Conto de Inverno

1609 (ou 1610)

8,0

A Tempestade

1611

9,3

Henrique VIII (provavelmente em colaboração com John Fletcher)

1612

4,3

 

O padrão das peças shakespearianas repete precisamente o verificado no “corpus” paulino: a) o número de “hapax legomena” varia bastante, mesmo para obras da mesma época (o que é, no fundo, razoável: consoante o assunto ou gênero das peças, mais “pesado” ou “relaxado”, mais “sério” ou mais “leve”, ou mesmo tendo em vista o maior ou menor cuidado, bem como o maior ou menor tempo que o autor pode ter dispendido para confeccioná-las); b) no geral, nota-se um aumento no uso relativo de “hapax legomena” à medida que o tempo passa (fruto do “amadurecimento” do estilo do autor). Assim também para São Paulo Apóstolo (e note-se que, para o “corpus” paulino, o número, e extensão total, dos documentos é menor do que aquele que se pode ter para o “corpus” shakespeariano, e mais, as condições de comparação para as cartas de Paulo é mais severa, já que Workman considerou para elas os “hapax legomena” tendo em vista o vocabulário grego de todo o Novo Testamento, a partir do léxico de Grimm-Thayer, ao passo que, para as obras de Shakespeare, a comparação se deu com o próprio vocabulário do conjunto das peças de Shakespeare): o número de “hapax legomena” varia bastante nas cartas, mesmo para aquelas que a tradição considera como tendo sido compostas mais ou menos na mesma época; e, para as peças mais “tardias”, o uso relativo de “hapax legomena” aumenta (mais uma vez, fruto do amadurecimento do estilo do autor). Assim, se a “análise estilística” efetuada a partir de “hapax legomena” prova alguma coisa, prova justamente que o “corpus” paulino, no seu conjunto, é autêntico.

O caso de “Hebreus” é particular. Não se trata, a rigor, duma “carta”, mas sim duma exposição teológica mais formal; isso justifica, ao menos em parte, o número alto (quer em termos absolutos, quer relativos) de “hapax legomena”. A questão da autoria de “Hebreus” pode ser questionada a partir de outros critérios, sendo que o mais importante deles é justamente a tradição de atribuição de autoria: vários entre os antigos Padres da Igreja tinham dúvidas a respeito, e essa posição por assim dizer mais vacilante da tradição é (a meu ver) o maior obstáculo que se coloca acerca duma autoria paulina de “Hebreus”. Contudo, como tal hesitação tinha por base, principalmente, as diferenças de estilo, e como a corrente majoritária da tradição sempre considerou tal carta como sendo de autoria de São Paulo Apóstolo (inclusive nos mais antigos testemunhos papirológicos, como se verá mais adiante), eu, pessoalmente, me sinto confortável de assim também a considerar – embora reconhecendo que, se alguma obra do “corpus” paulino pode vir a ter sua autoria discutida com um mínimo de plausibilidade, e de elegância argumentativa, tal obra é “Hebreus”.

Pode-se, adicionalmente, realizar um estudo semelhante a respeito de “hapax legomena” para os principais diálogos de Platão, mercê da tese de doutorado (PhD) de Andrew Fossum, apresentada em 1887 à Johns Hopkins University[7]. Desse modo, examinando o vocabulário de 26 diálogos platônicos, que ocupavam 1.520,4 páginas na famosa edição-padrão parisiense de 1578, de Stephanus (Henri Estienne; Henricus Stephanus), Fossum obteve 3.317 “hapax legomena”, ou, na média, 2,18 por página. Não obstante, a ocorrência (e as médias) variaram bastante, consoante os diálogos. A tabela completa encontra-se a seguir (em ordem decrescente de “hapax legomena” por página).

Diálogo

Número de Páginas (ed. Stephanus 1578)

Ocorrência de “Hapax Legomena”

Média por página

Crítias

14,8

83

5,6

Timeu

75,2

311

4,1

Fedro

52,4

196

3,7

Político

54,4

155

2,8

Crátilo

57,4

151

2,6

Leis

316,8

814

2,6

Simpósio

51,4

115

2,2

República

269,6

586

2,2

Laques

12,8

27

2,1

Eutidemo

37,4

78

2,1

Lísis

20,8

43

2,1

Teéteto

68,6

141

2,1

Sofista

52,6

108

2,1

Ião

12

23

1,9

Fedão

60,6

115

1,9

Menexeno

15,6

29

1,9

Protágoras

52,8

72

1,4

Górgias

80,8

94

1,2

Cármides

23,6

25

1,1

Apologia

24,6

26

1,1

Critão

11,6

12

1,0

Filebo

56,4

55

1,0

Hípias Menor

13,4

12

0,9

Menão

29,8

21

0,7

Hípias Maior

13,8

9

0,7

Parmênides

41,2

16

0,4

 

Note-se, assim, que, levando-se em conta aspectos estritamente estilísticos, alguns dos mais característicos diálogos platônicos, como o “Crítias”, e, principalmente, o “Timeu”, seriam, por assim dizer, “suspeitos” em termos de sua autoria… Nota-se, como em Shakespeare (e como em São Paulo Apóstolo), um grande desvio (em relação à média) no uso de “hapax legomena” nas obras (e, aqui, como no caso de Shakespeare, tratam-se de obras reputadas pelos especialistas como autênticas). 

Seria interessante, não obstante, verificar a tendência de aumento (ou não) do uso de “hapax legomena” por parte de Platão, nos seus diálogos, tendo em vista especificamente a sua data de composição. Pois, de acordo com o que se pôde constatar (tanto em São Paulo Apóstolo quanto em William Shakespeare), há uma tendência (não absoluta, mas, de qualquer modo, indiscutível) do aumento do uso de “hapax legomena” nas obras mais tardias, refletindo um maior “amadurecimento” do estilo do autor. Poderia isso ser igualmente verificado, mesmo que em linhas gerais, para Platão?

A grande questão, aqui, é justamente o estabelecimento duma cronologia (ainda que aproximada) para os diálogos platônicos. Embora tenham nos chegado completos, o arranjo canônico dos mesmos, em “tétrades”, foi de índole lógica, e não cronológica – de qualquer modo, a figura de Platão (como aliás as figuras dos sábios e dos grandes homens em geral, na Antiguidade e na Idade Média) era vista como “pronta” e “acabada” desde sempre, como se ele tivesse nascido já com toda a sua doutrina finalizada; ignorava-se todo o processo de amadurecimento intelectual pelo qual passa o ser humano (qualquer ser humano) ao longo de sua vida, e que se mostra não apenas em seu estilo, mas também em suas próprias opiniões e concepções filosóficas, bem como na maneira de as expressar. Some-se a isso: a) que as fontes históricas praticamente nada informam acerca da ordem em que os diálogos foram escritos (uma rara exceção diz respeito a Aristóteles, que, na sua obra “A Política”, livro II, cap. 6º, informa que as “Leis” foram escritas antes da “República”), e que b) o próprio Platão continuou trabalhando em seus diálogos, modificando-lhes detalhes, ao longo de toda a sua vida (como atesta Dionísio de Halicarnasso)[8], e então justifica-se uma atenção e uma prudência redobradas em tal assunto. 

Não obstante, mesmo com todas essas (necessárias) precauções, os estudiosos são capazes de esboçar uma ordem cronológica aproximada para os diálogos platônicos; distinguem-se, assim, os diálogos “antigos”, como a “Apologia” e o “Critão”, nos quais Platão mostra o Sócrates histórico (ou, ao menos, aproximadamente histórico) refutando seus interlocutores; os diálogos “médios”, como a “República” e o “Fedão”, nos quais Platão atribui suas próprias opiniões a Sócrates; e os diálogos “tardios”, como o “Sofista” e as “Leis”, nos quais Platão usualmente apresenta suas próprias doutrinas, já amadurecidas, pondo-as na boca dum porta-voz não socrático[9].

Desse modo, tem-se a seguinte relação cronológica aproximada para os diálogos platônicos (considerando-se apenas os 26 diálogos examinados por Fossum):

·         Diálogos antigos: Apologia, Cármides, Critão, Hípias Maior, Hípias Menor, Ião, Laques, Lísis;

·         Diálogos transitórios e médios: Crátilo, Eutidemo, Górgias, Menexemo, Menão, Fedão, Protágoras, Simpósio;

·         Diálogos médio-tardios: República, Fedro, Parmênides, Teéteto;

·         Diálogos tardios: Timeu, Crítias, Sofista, Político, Filebo, Leis.

Rearranjando os diálogos platônicos (com os seus respectivos “hapax legomena” por página da edição de Stephanus) em ordem aproximadamente cronológica (dos mais recentes diálogos para os mais antigos), segundo os quatro grupamentos identificados pelos especialistas e citado imediatamente acima:

Diálogo

“Hapax Legomena” por página (ed. Stephanus, 1578)

Média de “hapax legomena” por página para o grupo

Diálogos Tardios

3,0

Crítias

5,6

Timeu

4,1

Político

2,8

Leis

2,6

Sofista

2,1

Filebo

1,0

Diálogos Médio-Tardios

2,1

Fedro

3,7

República

2,2

Teéteto

2,1

Parmênides

0,4

Diálogos Transitórios e Médios

1,8

Crátilo

2,6

Simpósio

2,2

Eutidemo

2,1

Fedão

1,9

Menexeno

1,9

Protágoras

1,4

Górgias

1,2

Menão

0,7

Diálogos Antigos

1,4

Laques

2,1

Lísis

2,1

Ião

1,9

Cármides

1,1

Apologia

1,1

Critão

1,0

Hípias Menor

0,9

Hípias Maior

0,7

 

Nota-se, mais uma vez, o mesmo padrão já verificado, tanto para São Paulo Apóstolo quanto para William Shakespeare: a) o número de “hapax legomena” varia bastante, mesmo para obras cronologicamente próximas (para isso, deve-se ter em conta o assunto da obra, as condições específicas ligadas à sua composição e à sua destinação, as idiossincrasias do autor, etc.); mas, b) há uma nítida tendência de aumento do uso de “hapax legomena” à medida que o tempo passa, ou seja, à medida que se passa das obras mais “antigas” para as obras mais “recentes”, ou “tardias” (para isso, deve-se ter em conta o amadurecimento natural do estilo do autor, e, talvez também, dependendo do caso, do amadurecimento dos assuntos tratados nas próprias obras). Assim, do ponto de vista estritamente estilístico, ao menos em termos gerais, como vem sendo demonstrado nos últimos parágrafos, não há absolutamente nenhuma base sólida para se impugnar a autoria paulina de qualquer das epístolas canônicas incluídas no Novo Testamento as quais a tradição atribui a São Paulo Apóstolo (incluindo Hebreus, as Pastorais e o bilhete a Filêmon). 

Evidentemente, a análise de “hapax legomena” não resume toda a “análise estilística” – mas é uma parte importante dela, no sentido de estabelecer, a partir de critérios quantitativos e, assim, menos sujeitos à subjetividade, semelhanças (ou diferenças) de estilo. As considerações tecidas nos parágrafos anteriores (que serão complementadas nas devidas ocasiões), e especificamente ligadas a esse tema, servem assim como mais uma ilustração tanto das potencialidades quanto das limitações da análise estilística, em si.

5. Cronologia do “corpus” paulino, e o testemunho de “P46”:

5.1. Pontos Básicos para o Estabelecimento duma Cronologia paulina: 

O estabelecimento duma cronologia, ainda que aproximada, para a vida de São Paulo Apóstolo (e, por conseguinte, para a confecção de suas cartas, bem como para vários eventos da primitiva história da Igreja) reside, fundamentalmente, em quatro acontecimentos mencionados nos “Atos dos Apóstolos” e que podem, a partir de outras fontes, ser datados com razoável grau de precisão:

·         A lapidação de Santo Estêvão o Protomártir, instigada por Saulo: é praticamente certo que esse incidente (narrado em Atos, cap. 6º, vers. 8º a cap. 7º, vers. 60) tenha ocorrido no ano 36 dC, no vácuo de poder que se seguiu imediatamente à destituição de Pôncio Pilatos por Aulo Vitélio (pai do futuro Imperador Aulo Vitélio), o legado propretoriano da Síria (mas antes da deposição, por parte desse mesmo Vitélio, do sumo-sacerdote Caifás). De fato, não se cita nenhuma atuação da administração romana no incidente, e o tipo de morte sofrida por Estêvão, por lapidação (apedrejamento), trai uma pena judaica; é possível que, aproveitando-se da transição de governo, o sumo-sacerdote Caifás, então, por assim dizer, com as “mãos livres” em Jerusalém, tenha decidido “se livrar” de Estêvão, esperando apresentar como desculpa para a sua execução um “tumulto popular”; não obstante, talvez justamente por causa disso – por não ter conseguido conter distúrbios em Jerusalém – Caifás acabasse também deposto por Vitélio. Com efeito, sabe-se (por Flávio José) que Vitélio depôs Pilatos, a partir de sérias queixas a ele levadas por parte dos samaritanos, no ano 36 dC, enviando à Judéia (quase certamente à Cesaréia Marítima), como locus tenens, o procurador (equestre) Marcelo (ou Márulo), com ordens a Pilatos para que seguisse a Roma, a fim de se justificar diante do Imperador[10]. Também sabe-se que Vitélio visitou duas vezes Jerusalém, a primeira vez por ocasião da Páscoa (Flávio José, “As Antiguidades Judaicas”, livro XVIII, cap. 4º, par. 3º [seção 90]), e a segunda vez por ocasião de um “festival” (“As Antiguidades Judaicas”, livro XVIII, cap. 5º, par. 3º [121]). Na sua primeira visita, Vitélio depôs Caifás do sumo-sacerdócio, instalando em seu lugar Jônatas, filho de Anás; na sua segunda visita, depôs esse Jônatas, instalando em seu lugar seu irmão, Teófilo. É pouco provável que a primeira visita tenha ocorrido na Páscoa de 36 dC, já que, antes de poder dar atenção pessoal aos assuntos judaicos, Vitélio lançou duas campanhas de verão contra os partas (cf. Tácito, “Anais”, livro VI, cap. 38). Como Vitélio (cônsul ordinário 34 dC) foi nomeado por Tibério legado da Síria em 35 dC, o tempo de sua chegada à província, preparo do exército e duas campanhas de verão tornam uma visita a Jerusalém em 36 dC implausível. Assim, a primeira visita de Vitélio a Jerusalém deu-se, quase certamente, na Pásccoa de 37 dC (19 de abril). A sua 2ª visita deu-se num contexto diferente e, como será detalhado no parágrafo a seguir, deve ser datada de Pentecostes de 37 dC (10 de junho). Portanto, a cronologia mais provável para o período é a seguinte:

  • 35 dC: Lúcio Vitélio (cônsul ordinário 34 dC) nomeado legado propretoriano da Síria; chega à província e lança, cf. Tácito, “duas campanhas de verão” contra os partas, quase certamente, no verão de 35 dC e no verão de 36 dC (Tácito, “Anais”, livro VI, caps. 31-32 e 38);

  • 36 dC: Atendendo às queixas dos samaritanos (entre a 1ª e a 2ª campanhas partas? Ou logo após a 2ª campanha?), Vitélio depõe Pôncio Pilatos; envia (quase certamente à capital da província, a Cesaréia Marítima), como locus tenens, o procurador Marcelo (ou Márulo); o sumo-sacerdote Caifás, para todos os efeitos práticos, torna-se a principal autoridade em Jerusalém; desse período data a lapidação de Santo Estêvão o Protomártir, instigada por Saulo de Tarso (São Paulo Apóstolo);

  • 37 dC: 16 de março: morre Tibério, na ilha de Cápri; sucede-lhe Calígula;

  • 37 dC: Páscoa (19 de abril): Vitélio vai a Jerusalém; depõe Caifás (talvez por causa dos distúrbios ligados à lapidação de Estêvão), substituindo-o por Jônatas, filho de Anás;

  • 37 dC: Pentecostes (10 de junho): 2ª visita de Vitélio a Jerusalém; chegada da notícia da morte de Tibério; interrupção da ofensiva contra Aretas IV; Vitélio depõe Jônatas do sumo-sacerdócio, substituindo-o por seu irmão Teófilo.

·         Saulo (Paulo) em Damasco: seguindo-se ao suplício de Estêvão, Paulo seguiu até Damasco, onde ocorreu a sua conversão ao Cristianismo, e de onde, depois, escaparia, iludindo a vigilância do governador do rei Aretas (cf. Atos, cap. 8º, vers. 1º-4º; 2ª Carta aos Coríntios, cap. 11, vers. 32-33). Desde a época do arranjo dos assuntos orientais, efetuado por Pompeu o Grande (63 aC), Damasco, teoricamente uma “cidade livre”, estava enquadrada numa liga de dez cidades “autônomas”, quase todas transjordanianas, a Decápole, sob suserania romana[11]. Depois, caiu sob domínio de Aretas IV, rei dos árabes nabateus (reinou 9 aC a 40 dC), permanecendo nas mãos dos nabateus pelo menos até meados do reinado de Nero. O testemunho numismático, quanto a isso, é o seguinte: a) as últimas moedas batidas em Damasco com a efígie de Tibério são datadas do ano 345 da era selêucida (33/34 dC)[12]; b) a mais antiga moeda damascena com a imagem do rei Aretas tem a data 101; se tal datação se refere, como é praticamente certo, à era pompeiana (iniciada em 63 aC), tal peça é de 37/38 dC[13]; c) não se conhecem moedas damascenas cunhadas em nome dos Imperadores romanos para o final do principado de Tibério (33/34 a 37 dC), nem para os principados de Calígula (37-41 dC) e de Cláudio (41-54 dC), e nem para o início do principado de Nero; as efígies e os nomes dos Imperadores reaparecem na cunhagem damascena a partir duma moeda que traz como data o ano 374 da era selêucida, ou seja, 62/63 dC[14]. Assim, Damasco pode ter sido conquistada por Aretas, nos últimos tempos do governo de Tibério, como conseqüência de seu avanço para o norte e de sua guerra contra Antipas, ou então pode ter-lhe sido cedida por Calígula. Houve, inicialmente, um conflito entre Aretas e Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e da Peréia (4 aC – 39 dC), pelo fato de Antipas haver repudiado sua esposa, Fasélis (que era filha de Aretas), a fim de se casar com Herodíades (a mãe da famosa Salomé)[15]. A repudiada Fasélis não aceitou a situação e refugiou-se junto a seu pai, que aproveitou a situação para invadir as terras de Antipas, triunfando sobre as forças deste último (35/36 dC); Antipas então apelou para Tibério, que instruiu o novo legado propretoriano da Síria, Vitélio, para apoiar militarmente Antipas (provavelmente porque a expansão do reino de Aretas incluiu a anexação de porções consideráveis da Decápole, Damasco inclusive). Após ter concluído satisfatoriamente suas duas campanhas partas, e de ter seguido até Jerusalém na Páscoa de 37 dC a fim de organizar os assuntos judaicos, Vitélio então iniciou efetivamente a sua campanha contra Aretas; acompanhado por Antipas, passou novamente por Jerusalém por alturas do Pentecostes de 37 dC (junho), quando, contudo, recebeu a notícia da morte de Tibério, suspendendo então a campanha. O novo Imperador, Calígula, a fim de evitar guerras, quase certamente optou por ceder ao fato consumado, reconhecendo a soberania de Aretas sobre Damasco e região (37/38 dC). Assim, o período em que Paulo permaneceu em Damasco (sob governo de Aretas), logo após o martírio de Estêvão, situa-se entre c. 37 dC e c. 40 dC.

·         A morte de São Tiago o Menor, irmão de São João o Evangelista: como narrado nos Atos dos Apóstolos, cap. 12, vers. 1º e 2º, ocorreu sob o governo de Herodes Agripa I como rei em Jerusalém, ou seja, entre 41 e 44 dC. 

·         A fome no tempo de Cláudio: Lucas, nos Atos dos Apóstolos (cap. 11, vers. 27-30), narra que Ágabo, um dos “profetas” que visitaram Antióquia da Síria vindos de Jerusalém, “naqueles dias” (i.e., logo após os eventos ligados à conversão do centurião Cornélio, da coorte Itálica)[16], previu uma grande fome “em todo o mundo” (i.e., no Império Romano), fome essa que, de fato, ocorreu no tempo de Cláudio (reinou 41-54 dC). Há, de fato, testemunhos inequívocos para uma época de escassez pelo menos por todo o Mediterrâneo oriental, aproximadamente entre os anos 45 e 50 dC. Uma série de secas locais foram agravadas por uma colheita insuficiente no Egito, bem como (especificamente para a Judéia) pelo ano sabático: 

  • Segundo Suetônio (“Sobre as Vidas dos Césares”, “Vida de Cláudio”, cap. 18, par. 2º), ocorreram, sob o principado de Cláudio, “secas persistentes” – tal expressão refere-se a vários anos de tempo mais seco, com menores precipitações, em vários lugares do Mediterrâneo, não necessariamente como ocorrências simultâneas, mas que, de qualquer modo, tornavam o Império mais sensível a qualquer falha na colheita que ocorresse em qualquer de suas grandes regiões cerealíferas (a África, a Sicília, a Campânia e, principalmente, o Egito);

  • Há evidências seguras para a ocorrência duma super-inundação do Nilo no tempo de Cláudio, tal como informado por Plíno o Velho. Do mesmo modo que uma cheia insuficiente, uma cheia excessiva acarretava problemas na colheita[17]; a altura considerada ideal para a cheia anual do Nilo era de 16 côvados (ou “cúbitos”, cada côvado egípcio possuindo aproximadamente 52 cm). Não há evidências de cheias insuficientes no tempo de Cláudio, mas nessa época ocorreu uma inundação excessiva, de 18 côvados, a maior até então registrada[18]. Mas os dados papirológicos apontam, quase certamente, para o ano 45 dC como aquele no qual deu-se essa catástrofe[19]. O preço médio da artaba de trigo, que vinha, em geral, oscilando entre 3 e 4 dracmas por artaba desde a época de Augusto (30 aC – 14 dC), alcançou, na média, 7,1 dracmas por artaba nos anos 45 e 46 dC (ou seja, virtualmente dobrou)[20]. De fato, sendo de conhecimento geral os futuros problemas de plantio e de colheita, a partir da cheia excessiva de junho de 45 dC, o preço subiu. As condições devem ter permanecido críticas ao longo de 45 dC, culminando com uma colheita medíocre em abril/maio de 46 dC; mesmo que a cheia tenha então sido “normal” (o que parece ter, de fato, ocorrido), houve alívio efetivo apenas a partir da próxima colheita, realizada em abril/maio de 47 dC – embora a situação deva ter demorado mais um pouco para se normalizar, tanto no Egito quanto, principalmente, no restante do Mediterrâneo Oriental, bastante dependente dos excedentes cerealíferos egípcios. Tal panorama é bem atestado pelo Papiro de Michigan nº 594, datado de setembro/outubro de 51 dC, que fornece uma lista de pessoas com impostos atrasados: 1.222 pessoas não haviam pago as taxas referentes a 45/46 dC, e 1.678 não o haviam feito para 46/47 dC; o número de inadimplentes começou a declinar a partir de 47/48 dC, mas ainda se estendia até 50/51 dC; padrão semelhante deve ter ocorrido fora do Egito;

  • A situação foi especialmente agravada, na Judéia, pelo fato de o ano 47/48 dC ser um ano sabático[21]: desse modo, a uma colheita possivelmente fraca no verão/outono de 47 dC seguiu-se um ano sabático, numa época de escassez geral de grãos no Mediterrâneo Oriental, quer por outras colheitas locais igualmente fracas, quer pelo efeito retardado da fraca colheita egípcia de 46 dC. Com efeito, Flávio José (“As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 5º, par. 2º [100-101]) data uma grande fome na Judéia no tempo das procuradorias de Cúspio Fado (44-46 dC) e de Tibério Júlio Alexandre o Moço (46-48 dC); nessa ocasião, a rainha-mãe Helena, da Adiabena, uma prosélita (i.e., convertida à religião judaica), providenciou socorros à população, adquirindo grãos no Egito e figos em Chipre, e transportando-os a Jerusalém para distribuição; ao mesmo tempo, seu filho, o rei Izates, enviou uma enorme soma em dinheiro para as autoridades de Jerusalém, a ser utilizada para o alívio da população (Flávio José, “As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 2º, par. 5º [50-53])[22];

  • Imediatamente depois, as últimas manifestações das dificuldades com as colheitas, agravadas por chuvas insuficientes, provavelmente atingiram a Grécia (um país que dependia bastante de importações de trigo), e mesmo a própria Roma: a) segundo a “Crônica” de Eusébio de Cesaréia, no ano 2.065 após Abraão, correspondente ao 8º ou ao 9º ano do império de Cláudio (48/49 dC, ou 49/50 dC), houve “fome na Grécia” (limos kata tên Hellada); sabe-se com segurança que, por essa época, Tibério Cláudio Dinipo foi, por três vezes (algo inusitado), o encarregado do abastecimento (curator anonnae) da cidade de Corinto – uma das vezes no ano 51 dC, sob o proconsulado de Galião; a situação do abastecimento em Corinto era, portanto, delicada na época em que Paulo lá se encontrava, e ecos dessa situação podem, talvez, estar presentes na 1ª carta aos Coríntios, cap. 7º, vers. 26, quando o Apóstolo se refere às “angústias atuais” (enestôsan anagkên), já que a palavra anagkê (“necessidade”, “angústia”) é um termo muito utilizado na descrição de situações de escassez de cereais; b) segundo Paulo Orósio (“Histórias Contra os Pagãos”, livro VII, cap. 6º, par. 17), no 10º ano do império de Cláudio houve fome em Roma – é, quase certamente, a mesma que Tácito (“Anais”, livro XII, cap. 43), reporta como tendo ocorrido no ano do 5º consulado do Imperador Cláudio, tendo como colega Sérvio Cornélio [Lêntulo Cétego Cipião] Salvidieno Orfito (51 dC);

  • Assim sendo, há um enorme corpo de evidências para um período de escassez nas colheitas cerealíferas (com a conjunção de várias secas locais, a par da falência da colheita egípcia de 45 dC, sendo que, especificamente para a Judéia e a Galiléia, a situação foi ainda mais dificultada pelo ano sabático 47/48 dC) no Mediterrâneo Oriental, inicialmente no Egito, depois na Síria e Palestina, alcançando por fim também a Grécia e a própria Roma, entre os anos 45 e 51 dC.

·         Paulo diante do procônsul Galião: durante sua primeira visita a Corinto, Paulo compareceu diante do procônsul da Acaia, Galião (cf. Atos, cap. 18, vers. 12-17). Esse Galião é Lúcio Júnio Galião Aneano, nascido Lúcio Aneu Novato (irmão de Sêneca o Filósofo, o conselheiro de Nero), adotado pelo retor Lúcio Júnio Galião, e que, após a queda de Sêneca, também foi forçado por Nero a cometer suicídio (c. 65 dC). Uma inscrição encontrada em Delfos (cf. SIG II, 801, 4ª edição, 1960) e datada do 12º ano de exercício do poder tribunício de Cláudio (i.e., do ano 52 dC), e da sua 26ª aclamação como Imperator (a qual se sabe, pelas inscrições CIL III, 476 e CIL VI, 1256, que ocorreu no primeiro semestre de 52 dC), referente a um rescrito do referido Imperador aos cidadãos de Delfos, cita Galião como procônsul da Acaia; como os procônsules usualmente tomavam posse em julho, o proconsulado de Galião durou, quase certamente, de julho de 51 dC a junho de 52 dC (não deve ter sido prolongado, já que, segundo nos informa Sêneca, cf. “Cartas Morais a Lucílio”, carta 104, par. 1º, ele aparentemente teve de retornar a Roma, talvez antes mesmo do término de seu mandato, por ter contraído uma febre na Acaia). 

·         Paulo prisioneiro na Cesaréia Marítima, sob o procurador Félix; Festo sucedendo a Félix; apelo de Paulo a César, e viagem a Roma: Marco Antônio Félix foi nomeado pelo Imperador Cláudio como procurador da Judéia em 52 dC, para suceder a Ventídio Cumano, devido à influência de seu irmão, Marco Antônio Palas, na corte imperial (cf. Tácito, “Anais”, livro XII, cap. 54, e Flávio José, “As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 7º, par. 1º [137-138]), tendo sido mantido no cargo por Nero, após a morte de Cláudio (54 dC). Quando, posteriormente, foi afastado de sua procuradoria, devido às queixas de seus administrados judeus, teve de enfrentar um julgamento por corrupção em Roma, tendo sido inocentado apenas pela interseção de seu irmão Palas (Flávio José, “As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 8º, par. 9º [182]). Embora Palas tenha sido afastado de suas funções palacianas por Nero por volta do início de 55 dC (cf. Tácito, “Anais”, livro XIII, caps. 14-15), ele permaneceu, em geral, influente, continuando a gozar de sua imensa fortuna por muitos anos (cf. Tácito, “Anais”, livro XIII, caps. 14 e 23), até ser eliminado, por fim, apenas em 62 dC (cf. Tácito, “Anais”, livro XIV, cap. 65). Assim sendo, a deposição (e julgamento em Roma) de Félix ocorreu entre 55 dC (após o afastamento de Palas) e 62 dC (antes da morte de Palas, já que Palas auxiliou seu irmão Félix quando este, deposto, foi levado a julgamento em Roma). Com efeito, e procurando diminuir, dentro do plausível, esse intervalo: a) Flávio José narra quase todos os eventos referentes à procuradoria de Félix como tendo ocorrido sob o império de Nero (cf. “As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 8º, par. 5º a 8º [160-181]); portanto, Félix permaneceu em seu posto pelo menos nos primeiros tempos do reinado desse Imperador, e 55 dC é, assim, uma data mínima; b) quando São Paulo Apóstolo foi preso em Jerusalém (sendo Félix procurador), foi confundido pelos soldados com o “falso profeta” egípcio que, pouquíssimo tempo antes, havia liderado quatro mil rebeldes (Atos, cap. 21, vers. 37-40); ora, tal revolta, debelada por Félix, é narrada por Flávio José como tendo ocorrido sob Nero e, pela concatenação do texto, possivelmente pelo final da procuradoria de Félix (“As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 8º, par. 6º [169-172]; “A Guerra Judaica”, livro II, cap. 13, par. 5º [261-263]); c) descontando-se os dois anos durante os quais Paulo permaneceu detido por Félix (Atos, cap. 24, vers. 24-27) da data inicial mínima de 55 dC, tem-se o ano 57 dC – assim sendo, Félix deve ter sido procurador de 52 dC até algum ano entre 57 e 62 dC; d) ora, sabe-se que o sucessor de Festo, Lucéio Albino, já se encontrava em Jerusalém por volta de outubro de 62 dC, na festa dos Tabernáculos (cf. Flávio José, “As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 9º, par. 1º [197]); tendo em vista os termos de governo usuais conhecidos para os procuradores, bem como os fatos ligados à procuradoria de Albino (“As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 9º, pars. 1º-3º [197-207]), é pouco provável que a procuradoria de Festo durasse menos que dois anos; assim, a demissão de Félix ocorreu entre os anos 57 e 60 dC; e) o sumo-sacerdote em exercício na época da prisão de Paulo era Ananias, filho de Nedebeu (cf. Atos, cap. 23, vers. 1º-2º, e cap. 24, vers. 1º), o que concorda perfeitamente com as informações colhidas a partir de Flávio José; de fato, Ananias havia sido nomeado c. 47 dC por Herodes de Cálcis (“As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 5º, par. 2º [100-104]), e ele permaneceu no poder até ao final da procuradoria de Félix, tendo então Herodes Agripa II o substituído por Ismael, filho de Fabi, ou Fiabi (“As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 8º, par. 8º [179]), ainda antes da chegada de Festo (narrada logo depois, par. 9º [182]); o novo sumo-sacerdote Ismael serviu por quase toda a procuradoria de Festo (cf. “As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 8º, par. 11 [189-196]), até ser detido em Roma por ordem de Popéia Sabina, a esposa de Nero; então Agripa II nomeou José Cabi, filho de Simão, como sumo-sacerdote (par. 11 [196]). Logo depois, Festo morreu, no exercício da procuradoria (62 dC), e, antes da chegada de seu sucessor nomeado, Lucéio Albino, Agripa II destituiu José Cabi e nomeou Anã, filho de Anás, como sumo-sacerdote (“As Antiguidades Judaicas”, livro XX, cap. 9º, par. 1º [197]); nesse contexto, e ainda antes da chegada de Albino, Anã levou à morte Tiago, “o irmão do Senhor” (São Tiago Maior, primo de Jesus, cf. par. 1º [199-200]), o que acabou provocando a sua deposição, instigada por Albino, e à nomeação, por Agripa II, de Jesus (Josué), filho de Damneu, para o sumo-sacerdócio (par. 1º [201-203]); f) quando se dirigiu a Félix, Paulo referiu-se ao fato de ele já estar “há muitos anos” no cargo de procurador da Judéia (cf. Atos, cap. 24, vers. 10), o que tenderia a situar a data da destituição de Félix mais próxima do ano 60 dC do que do ano 57 dC); g) enfim, o testemunho numismático: o governo provincial romano na Judéia podia emitir, e eventualmente emitia, moedas de cobre para uso local; no período aqui considerado, há, nitidamente, dois conjuntos de emissões efetuadas pela procuradoria romana: uma primeira em três séries distintas, datadas dos anos 13 (iota-gama) e 14 (iota-delta) do império de Cláudio (outubro de 52 a outubro de 53 dC e outubro de 53 a outubro de 54 dC, respectivamente)[23] e uma outra série datada do 5º ano (épsilon) do império de Nero (outubro de 58 a outubro de 59 dC)[24]. Antes das emissões dos 13º e 14º ano de Cláudio, apenas Pôncio Pilatos (procurador 26-36 dC) havia batido moedas na Judéia; e, depois da emissão (aparentemente abundante, a julgar pela quantidade de espécimes que chegaram até aos nossos dias) do 5º ano de Nero, não se conhecem mais cunhagens procuratorianas posteriores, até às cunhagens de prata e cobre efetuadas pelo governo revolucionário judaico, por ocasião da Grande Revolta de 66-73 dC. Ora, essas duas séries de emissões de moeda miúda procuratoriana devem ligar-se a eventos especiais na província, mais especificamente à assunção de novas administrações – e as datas encaixam-se, respectivamente, para o início das procuradorias de Marco Antônio Félix (em 52 dC) e de Pórcio Festo (assim, em 59 dC). Foi sob Félix que Paulo foi preso em Jerusalém, sendo depois transferido para a Cesaréia Marítima, lá permanecendo por dois anos (cf. Atos, cap. 24, vers. 24-27), até que Félix foi substituído por Festo; e foi no início da procuradoria de Festo que ele foi enfim julgado (provavelmente em meados do ano 60 dC, após o novo procurador já ter tomado pé da situação provincial e poder dedicar mais tempo à resolução de problemas jurídicos pendentes) tendo apelado para o Imperador e sendo então remetido à Itália; assim, a prisão de Paulo na Cesaréia Marítima estendeu-se de 57/58 a 59/60 dC, sendo Paulo mandado a Roma provavelmente no outono de 60 dC, tendo chegado à cidade, após inúmeras peripécias, pela primavera de 61 dC. 

5.2. Esboço Cronológico para as Cartas Paulinas:

Então, a partir da análise do texto dos “Atos dos Apóstolos”, bem como de inúmeros indícios internos presentes em várias das cartas, e levando-se em consideração todos os pontos básicos analisados anteriormente, pode-se obter um apanhado cronológico aproximado para a confecção das cartas do “corpus” paulino, ou seja, do conjunto de cartas redigidas por São Paulo Apóstolo e constantes no cânon do Novo Testamento (pode haver algumas variações nas datas a seguir consideradas; os dados da lista fornecida a seguir devem ser considerados como representando apenas uma visão geral): 

·         Por volta de 52-53 dC, em Corinto, foram escritas as duas cartas aos Tessalonicenses[25];

·         Quer em Éfeso c. 54 dC, quer em Corinto c. 57-58 dC, foi escrita a carta aos Gálatas[26];

·         Por volta de 56 dC, em Éfeso, a 1a carta aos Coríntios;

·         Por volta de 57 dC, na Macedônia, a 2a carta aos Coríntios[27];

·         Por volta de 57-58 dC, em Corinto, a carta aos Romanos;

·         Pelos anos 58-60 dC, na Cesaréia Marítima, por ocasião de sua detenção, as cartas aos Colossenses e aos Efésios, bem como o bilhete a Filêmon[28];

·         Pelos anos 62-63 dC, em Roma, por ocasião do 1o cativeiro, a carta aos Filipenses[29];

·         Por volta de 63-64 dC, em Roma, ou na Itália, logo após o 1o cativeiro, a carta aos “Hebreus”[30];

·         Por volta do ano 65 dC, na Macedônia, a 1a carta a Timóteo;

·         Por volta de 65-66 dC, em Nicópolis do Épiro, a carta a Tito;

·         Por volta de 66-67 dC, em Roma, pouco antes de seu martírio, a 2a carta a Timóteo. 

O Apóstolo certamente escreveu outras cartas, que se perderam, p.ex.; a) a 1a carta aos Coríntios, cap. 5o, vers. 9o-11, alude a uma carta anteriormente enviada, e por nós desconhecida; b) a 2a carta aos Coríntios, cap. 2o, vers. 4o, e cap. 7o, vers. 8o-9o, alude, talvez, a uma outra carta enviada a Corinto, que não a 1a aos Coríntios, e que também nos é desconhecida; c) a carta aos Colossenses, cap. 4o, vers. 16, faz menção a uma carta que Paulo teria enviado aos Laodicenses, e que cujo texto também não sobreviveu. 

Quando escreveu os “Atos dos Apóstolos” (para mim, seguindo a datação tradicional, que não pôde ser derrubada por nenhum argumento “moderno”, por volta de 63-64 dC), São Lucas não conhecia o conteúdo das cartas paulinas até então escritas, e por isso não as utilizou. De fato, Lucas cita, em sua obra, cartas bem menos importantes (p.ex., em Atos, cap. 23, vers. 26-30, o bilhete do tribuno Cláudio Lísias ao governador Félix); se tivesse tido conhecimento das grandes cartas paulinas, certamente as teria utilizado em sua obra, o que não fez. Mesmo quando narrou acontecimentos também referidos nas cartas, omitiu fatos e circunstâncias constantes especificamente nelas, ainda que pudessem ter contribuído para completar ou esclarecer sua própria obra, na qual, muitas vezes, os termos utilizados são diferentes daqueles empregados por Paulo (o caso mais flagrante é o que diz respeito ao episódio da fuga de Damasco; basta comparar Atos, cap. 9o, vers. 22-25, especialmente o vers. 24, e a 2a carta aos Coríntios, cap. 11, vers. 32-33, especialmente o vers. 32). Portanto, é certo que Lucas desconhecia tais cartas. Com efeito, à época em que publicou seus “Atos”, i.e., por volta de 63/64 dC, algumas das cartas do “corpus” paulino ainda não haviam sido escritas (como “Hebreus” e as Pastorais); quanto às já escritas (e escritas recentemente), podiam ainda não estar universalmente divulgadas (já que dirigiam-se a comunidades específicas, para tratar de assuntos específicos); e nem se pode tomar como certo que Paulo conservasse consigo cópias das cartas já escritas e encaminhadas. Assim sendo, Lucas poderia ter conhecimento direto apenas das “Cartas da Prisão” (quer as do cativeiro cesariense, quer a do 1o cativeiro romano: Colossenses, Filipenses, Efésios, e o bilhete a Filêmon); mas, no que se refere a tais composições, somente encontraria conselhos práticos e alguns esclarecimentos doutrinais, que não se prestariam à finalidade dos “Atos” – daí não as ter mencionado. Pois todas as outras grandes cartas (as duas aos Tessalonicenses, as duas aos Coríntios, a carta aos Gálatas e a epístola aos Romanos) foram escritas entre a 1a e a 3a viagem missionária de Paulo para a Acaia, período em que Lucas não estava com ele, como se pode depreender dos próprios “Atos”, a partir das “seções de ‘nós’”, iniciadas na Tróade (Atos, cap. 16, vers. 10), logo interrompidas (vers. 17), e reiniciadas somente na passagem de Paulo por Filipos, na sua 3a viagem missionária (Atos, cap. 20, vers. 5o e 6o)[31].

Assim, os “Atos” e as epístolas paulinas formam dois conjuntos documentais independentes, e que, no geral, confirmam-se mutuamente, existindo entre eles concordância acerca da personalidade de Paulo, bem como a respeito das pessoas e dos incidentes relacionados a seu apostolado. 

5.3. O Testemunho Papirológico de “P46”: 

Embora não seja necessariamente o mais antigo testemunho papirológico das cartas de Paulo[32], o códice papiráceo denominado “P46” é, sem dúvida, o mais famoso, por incluir uma boa parte do “corpus” paulino tal como consta no Novo Testamento, inclusive a carta aos Hebreus. Ele é datável, paleograficamente, para o período compreendido entre o último quartel do séc. II dC e o 1º quartel do séc. III dC (ou seja, 175-225 dC), com data “média” provável de c. 200 dC. Parte dele encontra-se na Biblioteca Chester Beatty, em Dublim, Irlanda (denominado “Papiro Chester Beatty II”), e parte na Universidade de Michigan, em Ann Harbor (denominado “Inv. 6238”). 

Tal como hoje se apresenta, o códice P46 (incluindo-se tanto as partes ora na Irlanda quanto as nos EUA) consiste em 86 fólios, com o tamanho aproximado de 28 x 16 cm, sendo que praticamente todos os fólios perderam algumas linhas na parte inferior, devido à deterioração do material. A parte remanescente do P46 inclui, nesta ordem, os últimos 8 capítulos da carta aos Romanos, a carta aos Hebreus em sua totalidade, as duas cartas aos Coríntios virtualmente completas, as cartas aos Efésios, Gálatas, Filipenses e Colossenses completas, os dois primeiros capítulos da 1a carta aos Tessalonicenses e um fragmento do final desta última carta. 

Sua origem é incerta; é provável que tenha sido obtido a partir de escavações clandestinas nas ruínas de algum antigo mosteiro cristão abandonado. Ao alcançar o mercado de antiguidades do Cairo, foi certamente seccionado pelo negociante, a fim de ser vendido “em lotes” e, desse modo, maximizar seu ganho. Inicialmente, foram postos à venda (talvez como “teste”) 10 fólios, em 1930, que foram logo adquiridos por um rico colecionador inglês, o sr. Chester Beatty. Em 1931, a Universidade de Michigan adquiriu 6 fólios, e mais 24 em 1933. Ao fim, Beatty comprou os 46 remanescentes em 1935. Desse modo, 30 fólios hoje se encontram em Michigan, e 56 na Biblioteca Chester Beatty, em Dublim.

Especificamente no que diz respeito ao P46, certas características peculiares ligadas à sua confecção permitem, não obstante, que se obtenha o número total de fólios (e, assim, de páginas) que originalmente o compunha. Para começar, as páginas do P46 são numeradas, o que permite saber o número de fólios faltantes nas lacunas intermediárias: sabe-se, assim, que faltam os fólios 1-7 (páginas 1 a 14 na numeração moderna), 9-10 (páginas 17 a 20) e 95-96 (páginas 189 a 192). O último fólio existente é o (muito fragmentado) fólio 97 (páginas 193 e 194). Além desses, quantos mais haveria? Certamente não muitos, tendo em vista o volume do códice – mas, exatamente, quantos? A resposta a essa pergunta, como se verá, é de extrema importância.

Mas uma outra característica específica do P46 permite responder – e responder precisamente – a essa pergunta. Ao contrário dos “livros” (i.e., dos “rolos”), constituídos por folhas de papiro sucessivamente emendadas, até um certo comprimento (que variava muitíssimo, mas que usualmente situava-se entre os 3 e os 15 metros[33]), um códice (i.e., um “livro” no sentido moderno do termo) era composto por uma série de folhas de papiro, dobradas uma ou mais vezes, ajuntadas e costuradas na lombada, a esse conjunto acrescentando-se uma encadernação, geralmente com pranchas de madeira cobertas de couro. 

Se essas folhas de papiro fossem dobradas apenas uma vez, formavam 2 fólios, ou 4 páginas, para cada folha de papiro original. Se fossem dobradas duas vezes, formavam 4 fólios, ou 8 páginas (devendo as dobraduras situadas na parte superior ser serrilhadas, a fim de liberar os fólios). Se fossem dobradas três vezes, formavam 8 fólios, ou 16 páginas (devendo as dobraduras situadas na parte superior e na lateral ser serrilhadas, a fim de liberar os fólios), e assim por diante. Cada conjunto de dobraduras é denominado “quatérnio”, ou “caderno”, e se constitui na unidade formadora dos códices, sendo os sucessivos “cadernos” costurados pela lombada, e protegidos pelas capas. Quando há apenas uma dobradura (o que faz com que a folha original de papiro gere um “caderno” de 2 fólios, ou 4 páginas), o formato é dito “in-folio”, (in-2º); quando há duas dobraduras (fazendo com que a folha original de papiro gere um “caderno” de 4 fólios, ou 8 páginas), o formato é dito “in-quarto” (in-4º); quando há três dobraduras (fazendo com que a folha original de papiro gere um “caderno” de 8 fólios, ou 16 páginas), o formato é dito “in-octavo” (in-8º), e assim por diante. 

Todos esses “cadernos” eram costurados, um ao lado do outro; mas, especificamente no caso de um códice formado por cadernos “in-folio”, um modo de confecção mais antigo para o códice os unia sucessivamente pela dobradura, um dentro do outro, de modo que o “caderno” mais externo albergava tanto as duas primeiras páginas quanto as duas últimas. E é justamente através desse método mais antigo, que gera, a rigor, um códice dito “de um único caderno”, que o P46 foi confeccionado. Portanto, uma vez que as páginas são numeradas, basta conseguir identificar um dos “cadernos” que, a rigor, pode-se calcular o tamanho original do códice. 

Ora, pôde-se verificar, pela análise do posicionamento das fibras dos fólios, apesar da deterioração do tempo, que fez desaparecer as junções das dobraduras, que as páginas numeradas 48 e 159 formavam originalmente um único conjunto; assim, 47 páginas antecediam a página 48, e também 47 páginas seguiam-se à página 159, ou seja, o códice possuía, originalmente, 159 + 47 = 206 páginas numeradas (103 fólios); como a 1ª página não era numerada (a numeração original se iniciava com o “verso” do 1º fólio), havia então originariamente, no códice P46, 208 páginas no total (104 fólios). 

As características gerais mais marcantes do códice P46, tanto no que se refere à situação atual quanto à sua estrutura original, estão elencadas a seguir (a numeração utilizada é a moderna, ou seja, incluindo a 1ª página). 

Situação Atual

Estrutura Original

 

Fólios

Conteúdo

Localização

Páginas (numeração moderna)

Conteúdo

 

1 a 7

Rom 1:1 a 5:17

Desaparecido

1 a 41 (fólios 1 a 21)

Romanos

 

8

Rom 5:17 a 6:14

Chester Beatty

 

9-10

Rom 6:14 a 8:15

Desaparecido

 

11-15

Rom 8:15 a 11:35

Chester Beatty

 

16-17

Rom 11:35 a 14:8

Michigan

 

18 (frag.)

Rom 14:9 a 15:11

Chester Beatty

 

19-28

Rom 15:11 a Heb 8:8

Michigan

41 a 64 (fólios 21 a 32)

Hebreus

29

Heb 8:9 a 9:10

Chester Beatty

 

30

Heb 9:10 a 9:26

Michigan

 

31-39

Heb 9:26 a 1Cor 2:3

Chester Beatty

64 a 117 (fólios 32 a 59)

1 Coríntios

40

1Cor 2:3 a 3:5

Michigan

 

41-69

1Cor 3:6 a 2Cor 9:7

Chester Beatty

118 a 145 (fólios 59 a 73)

2 Coríntios

70-85

2Cor 9:7 ao fim; Ef; Gal 1:1 a 6:10

Michigan

146 a 158 (fólios 73 a 79)

Efésios

 

158 a 172 (fólios 79 a 86)

Gálatas

86-94

Gál 6;10 ao fim; Fil, Col, 1Tes 1:1 a 2:3

Chester Beatty

172 a 176 (fólios 86 a 88)

Filipenses

 

176 a 184 (fólios 88 a 92)

Colossenses

 

184 a 194 (fólios 92 a 97)

1 Tessalonicenses (quase certamente toda a carta)

95-96

1Tes 2:3 a 5:5

Desaparecido

 

97 (frag.)

1Tes 5:5 a 5:23-28 (final)

Chester Beatty

 

98-104

Talvez 2Tess, 1Tim, 2Tim, Tit, Filêmon

Desaparecido

195 a 208 (fólios 98 a 104)

Talvez 2 Tess, mas conteúdo incerto

 

 

Assim sendo, os 7 fólios (14 páginas) faltantes no final do códice teriam de conter (supondo-se todo o “corpus” paulino) a 2ª aos Tessalonicenses, as Pastorais (as duas cartas a Timóteo e a carta a Tito) e o bilhete a Filêmon. Tendo em vista as dimensões dos fólios, bem como o tamanho médio das letras e o número de linhas por página, Kenyon calculou[34] que a 2ª carta aos Tessalonicenses necessitaria de 2 fólios (4 páginas), deixando apenas 5 fólios (10 páginas) para as Pastorais e para Filêmon; mas a 1ª carta a Timóteo requereria 8¼ páginas, a 2ª a Timóteo, 6 páginas, a carta a Tito 3½ páginas, e o bilhete a Filêmon 1½ página – no total, 19¼ páginas, ou seja, 10 fólios, para as Pastorais e para Filêmon, quando haveria apenas 5 fólios (10 páginas) restantes. Portanto, se P46 contivesse todo o “corpus” paulino, tal como atualmente existe, teria de conter 109 fólios (218 páginas), e não 104 (208 páginas).

Como o final do códice desapareceu, fica aberto o espaço a todo o tipo de especulação. Das várias possibilidades, podem ser elencadas as seguintes como razoavelmente plausíveis:

·         O códice P46 não incluía nem a 2ª carta aos Tessalonicenses, nem as Pastorais, nem o bilhete a Filêmon; os últimos 7 fólios foram simplesmente deixados em branco, por terem sido “contados a maior” por ocasião da confecção do códice. Essa situação não era comum, mas era possível, e ocorria, às vezes;

·         O códice P46 incluía a 2ª carta aos Tessalonicenses, e talvez também o bilhete a Filêmon, mas não as Pastorais; os últimos 4 ou 5 fólios teriam sido deixados em branco, numa situação semelhante à suposta no item anterior;

·         O códice P46 incluía tanto a 2ª carta aos Tessalonicenses quanto as Pastorais e o bilhete a Filêmon (i.e., todo o “corpus” paulino, tal como atualmente existe); os 5 fólios adicionais necessários foram simplesmente acrescentados ao final, e costurados à parte, pelo fato de o códice ter “contado a menor” o número de fólios necessários para a inclusão de todas as obras de São Paulo. Essa situação (inclusão num códice de fólios extranumerários) não era comum, mas era possível, e ocorria às vezes. Note-se que, mesmo com a inclusão de mais 5 fólios (fazendo com que o códice P46 apresentasse 109 fólios, ou 218 páginas, no total), o tamanho do códice ainda seria viável (embora no limite) para um códice de apenas um “caderno”[35].

Tendo sido então tecidas todas essas considerações, para concluir o presente texto proceder-se-á à análise, ainda que resumida, dos argumentos contrários e favoráveis à autoria paulina da 2ª carta aos Tessalonicenses, da carta aos Efésios e das Pastorais (as duas cartas a Timóteo e a carta a Tito) – as cartas objeto das observações dos srs. Marcelo e Carlos. Para cada carta, seguir-se-á a mesma estrutura de argumentação: a) inicialmente, serão apresentadas as evidências dos mais antigos autores cristãos, quer ortodoxos, quer hereges, bem como dos mais antigos documentos disponíveis, acerca da carta, ou das cartas, em questão, reconhecendo-as como paulinas (ou seja, o testemunho documental); depois, b) serão apresentados, e refutados, os principais argumentos comumente apresentados para se recusar uma autoria paulina à peça, ou às peças, em análise. Embora se tenha procurado ser, nas apresentações, o mais exato possível, elas não devem ser consideradas, obviamente, como elencando nem todos os argumentos contrários, e nem tampouco todos os argumentos favoráveis, servindo apenas como uma introdução (ainda que relativamente detalhada) ao assunto, e mostrando que, ao contrário do querem fazer crer alguns, há, sim, muitos e bons motivos, racionalmente embasados, para se considerar que o “corpus” paulino, tal como fixado no Novo Testamento, é, em seu conjunto, autêntico.

6. A Segunda Carta aos Tessalonicenses:

6.1. O Testemunho Documental:

Chega a causar espécie que se considere a 2ª carta aos Tessalonicenses como não sendo de autoria paulina, já que o testemunho documental afirmando tal autoria é tão abundante, ou mais, do que aquele que se dispõe para a 1ª aos Tessalonicenses. Os principais pontos que podem ser considerados são os seguintes:

·         A 2ª carta aos Tessalonicenses não consta do importante testemunho papiráceo P46, mas, como já mencionado, isso pode se dever simplesmente ao fato de que não se possui o final do referido códice; não é correto simplesmente se afirmar que a referida carta não consta em P46;

·         O mais antigo testemunho documental da 2ª aos Tessalonicenses parece ser o papiro P92, de finais do séc. III ou inícios do séc. IV dC (275-325 dC, média c.300 dC), atualmente no Museu Egípcio do Cairo (contém 2ª Tessalonicenses, cap. 1o, vers. 4o-5o e 11-12; também a carta aos Efésios, cap. 1o, vers. 11-13 e 19-21); 

·         São Policarpo, bispo de Esmirna (c.69 – c.155 dC), possivelmente faz-lhe uma referência (“Carta aos Filipenses”, cap. 11, seção 4ª, cf. 2ª Tessalonicenses, cap. 3o, vers. 15); 

·         A carta foi incluída pelo herege gnóstico Marcião de Sinope (c.85 – c.160 dC) em seu cânon (cf. testemunho de Santo Epifânio de Eleuterópolis, arcebispo metropolitano da Salamina cípria, no seu “Contra as Heresias”, também denominado “Caixa de Remédios”, ou Panarion, cap. 62, par. 9o);

·         A carta consta no Cânon de Muratori[36], ou seja, já era conhecida, e considerada autêntica, na comunidade cristã de Roma pelos meados do séc. II dC;

·         Santo Ireneu da Ásia Menor (c.130 – c.202 dC), bispo de Lugduno (Lião), nas Gálias, discípulo de São Policarpo de Esmirna, em sua obra “Detecção e Refutação da Falsa Gnose”, também conhecida como “Contra os Hereges” (escrita na época em que Santo Eleutério de Nicópolis era bispo de Roma, ou seja, entre c.174 e 189 dC) menciona-a várias vezes: a) explicitamente como “a segunda [carta] aos Tessalonicenses”, citando-lhe o cap. 2º, vers. 8-9 (“Contra os Hereges”, livro III, cap.7º, par. 2º); b) nas mesmas condições, cita 2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 11 (“Contra os Hereges”, livro IV, cap. 29, par. 1º); c) cita trechos da 2ª aos Tessalonicenses com a indicação expressa de que “o Apóstolo” a teria escrito (“Contra os Hereges”, livro IV, cap. 27, par. 4º, citando 2ª Tessalonicenses, cap. 1º, vers. 6º-10; e “Contra os Hereges”, livro V, cap. 25, par. 1º, citando 2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 4º); d) cita trechos da 2ª aos Tessalonicenses com a indicação expressa de que Paulo a teria escrito (“Contra os Hereges”, livro III, cap.6º, par.5º, citando 2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 4º; e “Contra os Hereges”, livro V, cap. 25, par. 3º, citando 2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 8º);

·         Clemente de Alexandria (c.150 – c.215 dC) cita 2ª Tessalonicenses, cap. 3º, vers. 1º-2º, com a observação de que o trecho havia sido composto “pelo Apóstolo” (“Miscelâneas”, ou “Estrômatos”, livro V, cap. 3º);

·         Tertuliano de Cartago (c.160 – c.220 dC) também cita a 2ª aos Tessalonicenses: a) pouco após citar extensivamente a 1ª aos Tessalonicenses (e a 2ª a Timóteo), menciona a 2ª aos Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 1º-7º, e depois vers. 8º-10, notando que tal citação se encontrava in secunda (i.e., “na segunda [carta]”, cf. “A Ressurreição da Carne”, cap. 24); b) noutra passagem, refere-se à 2ª aos Tessalonicenses explicitamente como tendo sido escrita por Paulo (“Remédio Conta a Picada do Escorpião”, ou Scorpiace, cap. 13, início, citando 2ª Tessalonicenses, cap. 1º, vers. 4º).

6.2. Razões Aduzidas para a não-Autoria Paulina, e suas Refutações: 

A 2ª aos Tessalonicenses, assim, encontra-se bem atestada pela tradição como uma carta paulina, e desde a 1ª metade do séc. II dC. Mas outras considerações têm sido levantadas contrárias a tal autoria; as principais são a seguir elencadas: 

·         A referência muito enfática à autoridade e à tradição apostólica (2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 1º-4º e 14-16; cap. 3º, vers. 4º-15, especialmente 4º e 14) referir-se ia a uma época posterior, pós-apostólica. Mas: esse argumento não leva em conta que, noutras cartas consideradas como autênticas, Paulo também dá a devida ênfase à sua autoridade apostólica (p.ex., 1ª Tessalonicenses, cap. 4º, vers. 1º-3º; 1ª Coríntios, cap. 7º, vers. 25-28 e 39-40, e cap. 14, vers. 37-38; Gálatas, cap.5º, vers. 2º-3º; Filipenses, cap. 2º, vers. 12); 

·         Haveria uma contradição da 2ª aos Tessalonicenses, em termos de expectativas escatológicas, quando comparada às demais cartas paulinas: a) o fato de que, antes da volta de Cristo, ocorreria uma grande apostasia, manifestando-se o “homem ímpio”, o “filho da perdição”, que haveria de se assentar no Templo e, mesmo, se proclamar Deus (2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 1º-4º) iria de encontro ao ensinamento da 1ª Tessalonicenses, cap. 5º, vers. 1º-3º, de que a volta de Cristo ocorreria de modo imprevisível, “como um ladrão à noite”; b) a perspectiva escatológica expressa na 2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 1º-4º, liga-se mais ao livro do Apocalipse (composto pelos fins do séc. I dC) do que, propriamente, a Paulo; a carta, assim, teria sido escrita por alguém que já conhecia o Apocalipse, com a finalidade de transportar a escatologia apocalíptica para o universo das cartas paulinas, a fim, entre outras coisas, de poder reprimir certos “videntes” místicos que, calcados em suas experiências apocalípticas, viviam às custas das comunidades (cf. 2ª Tessalonicenses, cap. 3º, vers. 6º-10); c) os paralelos com o Apocalipse seriam: a “apostasia” (2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 3º, com Apocalipse, cap. 13, vers. 3º-4º, 8º, 12, 14 e 15); o aparecimento do “homem ímpio”, apoiado por Satanás, dotado de grande poder, e capaz de realizar sinais e prodígios a fim de espalhar a mentira (2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 9º-10, com Apocalipse, cap. 13, vers. 2º e 12-14; cap. 16, vers. 13-15; cap. 19, vers. 20); enfim, a expressão “filho da perdição” (2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 3º, semelhante a Apocalipse, cap. 17, vers. 9-10). Mas: na 1ª carta aos Tessalonicenses explica-se que a “segunda vinda” de Cristo, como Senhor, será uma terrível surpresa “para o mundo”, para os que não pertencem à comunidade dos “santos” (i.e., para os não cristãos: comparar 2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 2º-3º, com os versículos 4º-5º), pois estes últimos são capazes de examinar os sinais dos tempos e esperarem, alertas, a segunda vinda, triunfal, de Cristo – ou seja, os dois textos escatológicos (da 1ª e da 2ª Tessalonicenses) não se opõem, mas sim se complementam. Quanto aos paralelos com o Apocalipse, eles são, de fato, evidentes, mas, a rigor, nada provam, já que foram retirados dum repertório de imagens que eram comuns à literatura apocalíptica judaica desde a confecção das partes respectivas do livro de Daniel (especialmente os capítulos 11 e 12 desse livro, que devem datar de c. 165 aC); podiam ser utilizadas, como o foram, numa multidão de escritos apocalípticos, desde a revolta dos Macabeus até à Grande Revolta contra os romanos, e mesmo além, ou seja, por uns 200 ou 250 anos (p.ex., no 1º livro de “Enoc”, nos “Oráculos Sibilinos”, no “Testamento dos Doze Patriarcas”, nos “Salmos de Salomão”, no “Livro dos Jubileus”, na “Assunção de Moisés”, no “Martírio de Isaías”, só para citar alguns); portanto, podiam perfeitamente constar tanto do vocabulário de São Paulo quanto do de São João o Evangelista – tanto dos meados do séc. I dC quanto dos finais desse mesmo século. 

·         A idéia do juízo na 2ª aos Tessalonicenses, cap. 1º, vers. 5º-12, não seria paulina, mas sim um consenso posterior à época apostólica. Mas: há passagens de cartas paulinas consideradas como autênticas com as mesmas idéias, e os mesmos argumentos (p.ex., Romanos, cap. 2º, vers. 5º-11º, ou Filipenses, cap. 1º, vers. 27-28). 

·           O estilo da carta seria “por demais paulino”, e, além disso, a 2ª aos Tessalonicenses estaria por demais ligada à 1ª aos Tessalonicenses, traindo assim o fato de ser uma falsificação anterior, baseada naquela. Mas: trata-se, como aliás já se analisou neste trabalho, de suposição gratuita; de fato, se o estilo é “diferente”, considera-se o documento como falso, mas se, por outro lado, o estilo é “igual” e “conforme”, também… Ora, levando-se tal “raciocínio estilístico” às últimas conseqüências, Paulo somente poderia ter escrito, ao longo de toda a sua vida, uma única carta, já que qualquer outra que escrevesse posteriormente ou seria de estilo e/ou idéias semelhantes (e, portanto, falsa, por ser uma “cópia”), ou então apresentaria certas diferenças de estilo e de apresentação de idéias (e, portanto, também seria falsa, por não se adequar ao “modelo paulino”).

·         Enfim (e em contrapartida à objeção anterior!), para alguns o “estilo” que se pode perceber na 2ª aos Tessalonicenses diferiria do esperado: predominaria nessa última epístola um estilo mais formal, oposto ao suposto “calor humano” presente na 1ª aos Tessalonicenses. Mas: mais uma vez, argumentos dúbios e suposições gratuitas baseados exclusivamente no “estilo”; com análises subjetivas como a aqui citada, pode-se virtualmente provar qualquer coisa. Assim, se, por um lado, Trilling, e depois Sturdy, consideraram que havia elementos estilísticos “tipicamente paulinos” que estariam faltando na 2ª Tessalonicenses[37], Kümmel, em contrapartida[38], asseverou que a linguagem e o estilo da carta, independentemente de palavras isoladas, eram, no geral, paulinos… Além de tudo o que já aqui se discutiu acerca da análise estilística em geral, e dos “hapax legomena” em particular, basta apenas notar, para se refutar Trilling e Sturdy (“teoria” contra “teoria”, e “suposição” contra “suposição”), que, numa carta tão breve quanto a 2ª Tessalonicenses, era mesmo de se esperar que faltassem vários elementos de estilo…

As principais “objeções” à autoria paulina da 2ª aos Tessalonicenses, assim, como se pode ver, partem de argumentos de índole as mais das vezes “estilística”: quer ligados a particularidades de expressão, quer ligados à ênfase na apresentação de alguns conceitos, especialmente teológicos. Esse é, aliás, o panorama que se encontra em virtualmente todas as apresentações da espécie, que procuram negar a autoria paulina de determinadas cartas. Deve também ter ficado claro que tais argumentos não se sustentam, mercê de sua própria inconsistência: de fato, para os críticos, se o texto é muito semelhante ao de outras cartas, há a suspeita de fraude por cópia; se é diferente, há a suspeita de fraude por incompatibilidade…

7. A Carta aos Efésios: 

7.1. A Questão dos Destinatários: 

O primeiro versículo do primeiro capítulo da epístola aos Efésios assim reza: 

Paulos apostolos Christou Iêsou dia thelêmatos Theou tois hagiois tois ousin [en Ephesô] kai pistois en Christô Iêsou 

Ou seja: 

Paulo, apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus, a todos os santos [{que estão} em Éfeso] e aos fiéis em Cristo Jesus

A expressão “en Ephesô” ([que estão] em Éfeso) falta nalguns testemunhos documentais (manuscritos) antigos e importantes, embora esteja presente na maioria dos manuscritos sobreviventes, alguns deles também antigos[39]: 

·         Ela não consta: no importante testemunho papiráceo P46 (c. 200 dC); também está ausente nos dois grandes unciais do séc. IV dC, o Sinaítico e o Vaticano; e mesmo nalguns manuscritos mais tardios, como os minúsculos 1739 (do séc. X dC) e 424 (do séc. XI dC);

·         Mas consta: na maioria dos manuscritos sobreviventes; assim, entre os unciais, no Alexandrino (séc. V dC), no Claromontano greco-latino (fins do séc. V ou inícios do VI dC), no Boemeriano (séc. IX dC), no Mosquense (séc. IX dC), no Porfiriano (séc. IX dC) e no Laurense do Monte Atos (sécs. IX/X dC); na esmagadora maioria dos minúsculos, p.ex.: 33 (séc. IX dC), 181 (séc. X dC), 326 (séc. X dC), 81 (de 1044 dC), 451 (séc. XI dC), 104 (de 1087 dC), 436 (sécs. XI/XII dC), 88 (séc. XII dC), 330 (séc. XII dC), 1241 (séc. XII dC), 630 (sécs. XII/XIII dC), 614 (séc. XIII dC), 629 (séc. XIV dC), etc.; igualmente na versão bizantina padrão do texto grego do Novo Testamento (textus receptus), bem como nas antigas versões latinas itálicas (vetus latina Itala), na Vulgata e nas versões siríaca, copta, gótica (vulfilana) e armênia.

A falta dessa especificação dos destinatários em testemunhos antigos e importantes, e a indicação de que, já no séc. II dC circulava ao menos uma versão de Efésios sem essa designação no primeiro versículo, fez com que o herege gnóstico Marcião de Sinope (c.85 – c.160 dC), embora a incluísse no seu cânon, considerasse a carta como tendo sido endereçada à comunidade de Laodicéia (talvez levando em conta a menção constante em Colossenses, cap. 4o, vers. 16, a uma carta que Paulo teria enviado aos Laodicenses, e que não nos chegou). Modernamente, tal ausência é interpretada por alguns como indicação de que Efésios não seria originalmente endereçada a uma comunidade específica, tratando-se, ao contrário, duma espécie de carta-circular, ou encíclica, destinada a várias comunidades. Contudo: a) a designação da carta como sendo dirigida “aos Laodicenses” é arbitrária, e não é corroborada pela tradição, a qual (como se verá) sempre considerou-a como endereçada à igreja de Éfeso; e b) uma carta poderia ser destinada à leitura em várias comunidades, sem que tivesse o caráter de carta-circular – caso, p.ex., da epístola aos Gálatas. 

Mais ainda, se o endereçamento falta no corpo do texto da carta, consta no título e na subscrição de virtualmente todos os manuscritos a indicação “[carta] aos Efésios” (pros Ephesious), e isso desde época muito antiga (pelo menos desde o tempo de Santo Ireneu, bispo de Lião). Tertuliano, p.ex., critica Marcião por ter designado a carta como endereçada aos Laodicenses, “quando temos no título a designação aos Efésios” (quam nos ad Ephesios praescriptam habemus, cf. “Contra Marcião”, livro V, cap. 17). E, da mesma forma que a destinação, a autoria paulina é unanimemente atestada pela tradição, como se verá. 

7.2. O Testemunho Documental:

·         A carta consta no importante testemunho papiráceo P46 (c.200 dC), sem a alusão no primeiro versículo, mas com a subscrição “aos Efésios”; 

·         São Clemente I, bispo (ou chefe do colégio presbiteral) de Roma (c.88 – c.97 dC), em sua “Carta aos Coríntios”, cap. 46 (escrita c. 95/96 dC), refere-se claramente a Efésios, cap. 4º, vers. 4º-6º (embora sem nomeá-la explicitamente);

·         Santo Inácio, bispo de Antióquia da Síria (martirizado em Roma pelos finais do império de Trajano, c. 110/115 dC), em sua Carta aos Efésios, cap. 12, menciona explicitamente o fato de que Paulo deles (i.e., dos Efésios) sempre se lembrou em sua carta ([…] Paulou […] hos en pasê epistolê mnêmoneuei hymôn en Christô Iêsou); e, na sua carta a São Policarpo, bispo de Esmirna, cap. 5º, há uma clara alusão a Efésios, cap. 5º, vers. 25 e 29; 

·         São Policarpo, bispo de Esmirna (martirizado c. 155/56 dC), na sua “Carta aos Filipenses”, cita Efésios, cap. 4º, vers. 26, chamando-a de “escrito sagrado” (“Carta aos Filipenses”, cap. 12); 

·         Santo Ireneu da Ásia Menor (c.130 – c.202 dC), bispo de Lugduno (Lião), nas Gálias, discípulo de São Policarpo de Esmirna, em sua obra “Detecção e Refutação da Falsa Gnose”, também conhecida como “Contra os Hereges” (escrita por volta de 180 dC), menciona-a várias vezes: a) livro I, cap. 8º, par. 4º (citando Efésios, cap. 5º, vers. 32, e informando que o trecho em questão havia sido escrito por Paulo); b) livro I, cap. 8º, par. 5º (Efésios, cap. 5º, vers. 13, e informando que havia sido escrito por Paulo); c) livro II, cap. 2º, par. 5º (citando Efésios, cap. 4º, vers. 6º, e informando que havia sido escrito pelo Apóstolo Paulo); d) livro IV, cap 5º, par. 1º (citando Efésios, cap. 2º, vers. 7º) ; e) livro IV, cap. 19, par. 2º (citando Efésios, cap. 1º, vers. 21); f) livro IV, cap. 20, par. 2º (citando Efésios, cap. 4º, vers. 6º, e informando que havia sido escrito pelo “Apóstolo”); g) livro V, cap. 2º, par 3º (citando Efésios, cap. 5º, vers. 30, e informando explicitamente que o trecho havia sido escrito por Paulo em sua carta aos Efésios); h) livro V, 18, 2 (Efésios, cap. 4º, vers. 6º); i) livro V, cap. 24, par. 4º (aludindo a Efésios, cap. 2º, vers. 2º, e informando tratar-se de algo escrito por Paulo em sua carta aos Efésios); 

·         Clemente de Alexandria (c.150 – c.215 dC) também cita a carta aos Efésios em suas obras, p.ex.: a) nas “Miscelâneas”, ou “Estrômatos”, livro III, cap. 14 (citando Efésios, cap. 4º, vers. 24, e informando tratar-se de algo escrito pelo “Apóstolo”) e livro IV, cap. 8º (citando longamente Efésios, cap. 5º, vers. 21-29, e informando explicitamente tratar-se de trecho retirado da carta aos Efésios); b) n’ “O Instrutor”, ou “O Pedagogo”, livro I, cap. 5º (citando Efésios, cap. 4º, vers. 13-15, informando explicitamente tratar-se de trecho retirado da carta aos Efésios); c) na “Exortação aos Pagãos”, cap. 1º (citando Efésios, cap. 2º, vers. 2º, e informando tratar-se de “recomendação apostólica”); cap. 2º (citando Efésios, cap. 2º, vers. 12, informando tratar-se de recomendação do “Apóstolo”, e Efésios, cap. 2º, vers. 3º-5º); cap. 5º (citando Efésios, cap. 4º, vers. 13-15, e informando tratar-se de trecho retirado da carta aos Efésios); 

·         Como já mencionado, Tertuliano de Cartago (c.160 – c.220 dC) conhece a carta aos Efésios, dela se ocupando em sua obra atacando a doutrina de Marcião (“Contra Marcião”, livro V, cap. 17). 

7.3. Razões Aduzidas para a não-Autoria Paulina, e suas Refutações: 

·         Ao contrário das cartas paulinas geralmente reputadas como autênticas, a epístola aos Efésios não apresentaria uma característica ambiência epistolar, inclusive com poucas alusões pessoais. Mas: ainda que haja poucas notas pessoais na carta aos Efésios (mas note-se o cap. 6º, vers. 18-24), ela, mesmo assim, apresenta-se como uma missiva; e também noutras cartas paulinas (como Gálatas, e as duas aos Coríntios), também ocorrem apenas esparsamente saudações nominais. 

·         Além de diferenças de estilo, haveria na carta aos Efésios o uso incomum de algumas palavras, como: a) ho Diabolos para designar o Diabo (cf. cap. 4º, vers. 27 e cap. 6º, vers. 11), ao invés de ho Satanas (como, p.ex., na 1ª Coríntios, cap. 5º, vers. 5º); b) somente em Efésios o Céu é denominado ta epourania (cap. 1º, vers. 3º e 20; cap. 2º, vers. 6º; cap. 3º, vers. 10; cap. 6º, vers. 12); c) ao contrário do usual, na carta aos Efésios utiliza-se apenas o termo “pecados” no plural (hamartia, cf. cap. 2º, vers. 1º), denotando situações concretas, e não no singular, denotando um conceito abstrato (como em Romanos, cap. 5º, vers. 12). Mas: novamente, questionamentos baseados em considerações estilísticas. Em termos gerais, objeções desse tipo já foram respondidas ao longo deste trabalho. Especificamente quanto ao uso incomum de algumas palavras: a) ho Diabolos também consta nas Pastorais, onde, aliás, também é utilizado ho Satanas.(duas vezes: 1ª Timóteo, cap. 1º, vers. 20, e cap. 5º, vers. 15); ho Satanas ocorre 10 vezes no conjunto das cartas paulinas, e 8 vezes ho Diabolos; dessas 8 vezes, 5 significam o próprio Diabo (Efésios, cap. 4º, vers. 27 e cap. 6º, vers. 11; 1ª Timóteo, cap. 3º, vers. 6º e 7º; 2ª Timóteo cap. 2º, vers. 26) e 3 referem-se a um ser humano como “difamador”, “acusador” ou “maledicente” (o significado original da palavra – 1ª Timóteo, cap. 3º, vers. 11, 2ª Timóteo, cap. 3º, vers. 3º, e Tito, cap. 2º, vers. 3º) – o uso de uma ou de outra palavra, assim, é misturado, não se podendo separar padrões nitidamente delimitados; e, além disso, Paulo utiliza ainda outras expressões para designar o Maligno; veja-se, p.ex., Efésios, cap. 2º, vers. 2º, e cap. 6º, vers. 12; e 2ª Coríntios, cap. 4º, vers.4º; b) se o substantivo epourania ocorre apenas em Efésios, o adjetivo epouranios, “celeste”, seu originador, ocorre 5 vezes no capítulo 15 da 1ª Coríntios, e também na 2ª Timóteo, cap. 4º, vers. 18 – mais uma vez, não se pode estabelecer um padrão delimitador; enfim, c) além da ocorrência de “pecados” em Efésios, em outras 11 ocasiões há também a mesma ocorrência, hamartia, no plural: em Romanos (cap. 4º, vers. 7º; cap. 7º, vers. 5º e cap. 11, vers. 27 aqui citando o Antigo Testamento), na 1ª Coríntios, cap. 15, vers. 3º e 17; em Gálatas, cap. 1º, vers. 4º; em Colossenses, cap. 1º, vers. 14; na 1ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 16; na 1ª Timóteo, cap. 5º, vers. 22 e 24; e na 2ª Timóteo, cap. 3º, vers. 6º – o argumento, assim, não é válido. 

·         Na carta aos Efésios, os dons da graça seriam apanágio dos ministérios proféticos e apostólicos, sinal da “nostalgia” de tempos posteriores com relação à época dos Apóstolos e traindo, assim, uma composição posterior para a carta (cf. cap. 3º, vers. 5º). Mas: o argumento é gratuito; e o trecho acerca das especificidades dos carismas e dos dons (cap. 4º, vers. 11-13) tem nitidamente o mesmo teor da passagem na 1ª Coríntios, cap. 12, vers. 27-30 (carta considerada autêntica). 

·         Segundo o texto da carta aos Efésios, a ressurreição dos santos já teria ocorrido por ocasião de seu batismo (cap. 2º, vers. 5º), não havendo, assim, a ressurreição física nos últimos dias. Mas: trata-se de interpretação equivocada (e forçada); a doutrina presente em Efésios (e o ponto frisado pelo Apóstolo) é que, mortos (metaforicamente) por causa dos pecados, os crentes foram vivificados (“tornaram à vida”, também metaforicamente) pela sua fé em Cristo (leia-se com cuidado e atenção o cap. 2º, vers. 1º-5º); é nesse sentido que a conversão ao Cristianismo, consubstanciada no batismo, marca o início duma “nova vida” (cf. Efésios, cap. 1º, vers. 13, e Romanos, cap. 6º, vers. 5º-6º e 11); e a infusão do Espírito Santo, por ocasião da conversão (e batismo), mostra-se efetivamente como um “sinal”, ou “garantia” (arrhabôn, Efésios, cap. 1º, vers. 14) da redenção final (Efésios, cap. 4º, vers. 30), que é a ressurreição corporal, nos últimos tempos (2ª Coríntios, cap. 1º, vers. 22; Romanos, cap. 8º, vers. 10-11). 

8. As “Pastorais” – As duas Cartas a Timóteo, e a Carta a Tito: 

8.1. Introdução Geral às Pastorais, sua Motivação e sua Cronologia: 

As duas cartas a Timóteo, bem como a carta a Tito, são denominadas “Epístolas Pastorais”, já que tratam, no geral, de normas às quais deveriam se submeter, em seu ministério, aqueles colocados por Paulo na chefia das diversas comunidades – os “anciãos” (“presbíteros”), ou “supervisores” (“epíscopos”, ou, na linguagem atual, “bispos”, embora o termo, inicialmente, não tivesse a acepção atual do episcopado monárquico, como se pode verificar ainda, inclusive, na Didaquê). 

Não se pode assinalar precisamente, na vida de Paulo, tempo e lugar específicos para a composição de tais cartas, pois os Atos dos Apóstolos terminam com o 1º cativeiro romano (c.63 dC). Os indícios internos nas próprias epístolas permitem, não obstante, reconstituir um arcabouço cronológico aproximado: a 1ª carta a Timóteo e a carta a Tito teriam sido escritas após o 1º cativeiro romano, e a 2ª carta a Timóteo, a última composição de Paulo, dataria do 2º cativeiro romano, estando o Apóstolo já próximo do martírio. Após sua libertação, e depois de ter escrito a carta aos “Hebreus”, Paulo deve ter partido da Itália (antes do incêndio de Roma em 64 dC, e, portanto, antes do início da perseguição neroniana). Pode ter seguido até à Espanha, como já antes se tinha proposto (cf. Romanos, cap. 15, vers. 28), a fim de cumprir a ordem do Senhor de “levar a salvação até aos confins da Terra” (cf. Atos dos Apóstolos, cap. 13, vers. 47). Essa viagem à Espanha, embora não referida em nenhum lugar das Sagradas Escrituras, repousa sobre uma tradição bem antiga; a ela alude São Clemente de Roma no cap. 5º de sua “Carta aos Coríntios” (escrita c. 95/96 dC, ao final do império de Domiciano)[40], bem como o Cânon de Muratori[41]. No seu retorno para as terras orientais (quer da Itália, quer da própria Espanha), deve ter seguido para Éfeso c. 64 dC (com eventuais passagens por regiões vizinhas, como Mileto e a Tróade), e daí para a Macedônia, onde escreveu (c. 65 dC) a 1ª carta a Timóteo, que havia permanecido em Éfeso. Da Macedônia deve ter seguido até Creta, onde deixou Tito, dirigindo-se até Nicópolis do Épiro, onde deve ter passado o inverno de 65/66 dC, e de onde escreveu a carta a Tito. De Nicópolis então passou a Roma, onde logo seria preso, por causa da perseguição de Nero aos cristãos. Desse 2º cativeiro romano é a 2ª carta a Timóteo, sofrendo logo depois Paulo o martírio (c.67 dC), na mesma época provavelmente que Pedro. 

Há diferenças no estilo e no vocabulário das Pastorais com relação aos das demais cartas, mas que não depõem em absoluto contra a autenticidade paulina dessas peças: elas podem ser naturalmente explicadas quer a partir do amadurecimento natural do estilo quer a partir dos temas tratados (distintos dos das demais cartas), das circunstâncias e dos próprios destinatários. Nas Pastorais, Paulo objetivava indicar às comunidades cristãs e a seus chefes normas práticas para o correto desempenho de suas várias funções; nelas não há, como nas outras cartas, a solução de controvérsias, ou a exposição de assuntos de fé, ou a polêmica contra os judaizantes. Assim, não é de se admirar que o estilo seja mais simples, que a seqüência seja menos concatenada, e que apareçam novidades no vocabulário. 

Quanto às “falsas doutrinas” combatidas nas Pastorais, e nas quais se quis discernir os grandes sistemas gnósticos que se desenvolveram somente a partir dos meados do séc. II dC (datando então as Pastorais dessa época), uma simples leitura dessas cartas é suficiente para esclarecer que os “erros” combatidos por Paulo nas Pastorais não são os sistemas gnósticos plenamente desenvolvidos do séc. II dC, mas sim, na melhor das hipóteses, especulações (apocalípticas ou proto-gnósticas) e discussões levantadas por judeu-cristãos acerca da validade da Lei e de sua obrigatoriedade para os gentios, inclusive prescrições relativas a alimentos permitidos ou proibidos, dias de festa, angelologia e genealogias, a que já se havia referido o próprio Paulo, p.ex., na 1ª Coríntios, cap. 8º, vers. 1º-13, ou em Colossenses, cap. 2º, vers. 6º-8º e 16-17. 

Enfim, a organização hierárquica da Igreja, tal como apresentada pelas Pastorais, seria apenas constituída, segundo alguns críticos, no séc. II dC. Embora seja verdade que nas Pastorais se pode discernir uma organização das comunidades mais elaborada do que a encontrada nas grandes epístolas dogmáticas escritas uma década antes, trata-se dum processo natural; isso seria de se esperar, tendo em vista o próprio desenvolvimento e crescimento da Igreja, como um todo, bem como das diferentes comunidades, em particular. E note-se que, mesmo desde o início, as comunidades não foram desprovidas de organização e de hierarquia, muitas vezes decalcada na das sinagogas: veja-se, p.ex., 1ª Tessalonicenses, cap. 5º, vers. 12-13; Colossenses, cap. 4, vers. 17, a par de Atos, cap. 20, vers. 17-28. Mas (e isso é o mais importante) as Pastorais não apresentam a organização eclesiástica já plenamente amadurecida, com suas três ordens (diáconos, presbíteros e bispos monárquicos) e, principalmente, com a instituição já estabilizada do episcopado monárquico e residencial (i.e., com um único episkopos, bispo, chefe dos sacerdotes, presbyteroi e dos diáconos, diakonoi, e responsável pelas congregações numa cidade específica), que, já desde o início do séc. II dC, pode-se vislumbrar nas cartas de Santo Inácio, bispo de Antióquia da Síria (martirizado em Roma pelos fins do império de Trajano, que morreu em 117 dC)[42]. 

Nas Pastorais, ao contrário, os termos episkopos (literalmente: “supervisor”, e que daria origem ao nome “bispo”) e presbyteros (literalmente: “ancião”, e que seria depois o nome aplicado ao clero cristão, não importando a sua efetiva idade) ainda são intercambiáveis (p.ex., Tito, cap. 1º, vers. 5º-7º), do mesmo modo que nos Atos (cap. 20, vers. 17-28). Timóteo e Tito são, assim, os representantes que Paulo, com a sua autoridade apostólica, deixa na ilha de Creta (Tito) e na Macedônia (Timóteo), para supervisionarem as várias igrejas locais em seu nome – sua “jurisdição”, por assim dizer, engloba regiões, e não uma sé determinada, e, nessa condição, ainda não possuem residência permanente (cf. Tito, cap. 3º, vers. 1; 2ª Timóteo, cap. 4º, vers. 9º-10). Ora, tudo isso aponta não para uma época “posterior”, para o séc. II dC, mas, ao contrário, para uma época mais primitiva, embora já com comunidades consolidadas e desenvolvidas – justamente para a década que antecede a revolta judaica e a destruição do Templo. A principal autoridade, na época de Timóteo e de Tito, ainda repousava nos Apóstolos, que escolhiam os homens que julgavam aptos para os auxiliarem e, depois, sucederem no governo das igrejas que haviam fundado. Assim, essa ambiência é mais uma confirmação da autenticidade das Pastorais. 

8.2. O Testemunho Documental para as Pastorais: 

Para a 1ª a Timóteo: 

·         Não sobreviveram testemunhos papiráceos da 1ª Timóteo anteriores ao séc. IV dC; mas não se pode saber com certeza se ela (como as demais Pastorais) constava ou não no P46 (conforme visto), e um testemunho independente para a carta a Tito (além das citações noutros autores) evidencia fortemente que elas já eram conhecidas, e consideradas canônicas, pelo menos desde os meados do séc. II dC; 

·         Há nitidamente uma alusão à 1ª Timóteo na “Carta aos Filipenses”, de São Policarpo, bispo de Esmirna (c.69 – c.155 dC): “Carta aos Filipenses”, cap. 4º, seção 1ª; comparar com 1ª Timóteo, cap. 6º, vers. 6º e 10); 

·         São Teófilo, bispo de Antióquia da Síria (de c.169 a c.183 dC), em sua “Apologia a Autólico”, cita um trecho dessa carta, denominando-a inclusive “escrito divino” (i.e., inspirado), theion logos (“Apologia a Autólico”, livro III, cap. 14, citando 1ª Timóteo, cap. 2º, vers. 2º); 

·         Santo Atenágoras de Atenas (c.130 – c.190 dC) alude três vezes à 1ª Timóteo como ajuda em sua argumentação a favor dos cristãos, na petição endereçada (em 176 ou 177 dC) conjuntamente ao Imperador Marco Aurélio e a seu filho Cômodo (“Súplica em Favor dos Cristãos”, cap. 13, referindo-se a 1ª Timóteo, cap. 2º, vers. 8º; cap. 16, cf. 1ª Timóteo, cap. 6º, vers. 16; e cap. 37, referindo-se a 1ª Timóteo, cap. 2º, vers. 1º e 2º); 

·         A 1ª Timóteo aparece no Cânon de Muratori (c.170 dC), ou seja, já era conhecida, e considerada autêntica, na comunidade cristã de Roma pelos meados do séc. II dC; 

·         Santo Ireneu da Ásia Menor (c.130 – c.202 dC), bispo de Lugduno (Lião), nas Gálias, em sua obra “Detecção e Refutação da Falsa Gnose”, também conhecida como “Contra os Hereges” (escrita por volta de 180 dC), cita ou menciona a 1ª Timóteo inúmeras vezes, p.ex.: a) logo no início do “Prefácio” ao livro I, cita a 1ª Timóteo, cap. 1º, vers. 4º, observando que havia sido escrita pelo “Apóstolo”; b) citando 1ª Timóteo, cap. 6º, vers. 20 (livro II, cap. 14, par. 7º), menciona que foi escrita por “Paulo”; c) há uma nítida alusão à 1ª Timóteo, cap. 1º, vers. 9º, no livro IV, cap. 16, par. 3º; 

·         Clemente de Alexandria (c.150 – c.215 dC) faz inúmeras citações da 1ª Timóteo em suas obras, quer ligando-a ao “Apóstolo”, quer explicitamente a Paulo; p.ex.: a) nas “Miscelâneas”, ou “Estrômatos”, livro I, cap. 1º (citando 1ª Timóteo, cap. 5º, vers. 21); livro I, cap. 8º (parafraseando 1ª Timóteo, cap. 6º, vers. 3º-5º); livro I, cap. 27 (citando 1ª Timóteo, cap. 1º, vers. 5º e 7º-8º); livro III, cap. 5º (onde Clemente faz, entre outras citações, uma paráfrase da 1ª Timóteo, cap. 4º, vers. 1º e 3º para combater idéias encratitas); b) n’ “O Instrutor”, ou “O Pedagogo”, livro II, cap. 2º (cf. 1ª Timóteo, cap. 5º, vers. 23); livro II, cap. 3º (cf. 1ª Timóteo, cap. 6º, vers. 10); livro III, cap. 11 (cf. 1ª Timóteo, cap. 2º, vers. 9º); livro III, cap. 12 (1ª Timóteo cap. 4º, vers. 6º-8º e cap. 6º, vers. 2º); c) na “Exortação aos Pagãos”, cap. 9º (citando 1ª Timóteo, cap. 4º, vers. 8º e vers. 10); 

·         Tertuliano de Cartago (c.160 – c.220 dC) menciona a 1ª Timóteo como sendo escrita por Paulo (“A Ressurreição da Carne”, cap. 23, citando 1ª Timóteo, cap. 6º, vers. 14-15; e, na mesma obra, no cap. 63, fazendo alusão à 1ª Timóteo, cap. 2º, vers. 5º); também faz uso dela várias vezes n’ “A Prescrição contra os Hereges”, p.ex., no cap. 25 (citando sucessivamente a 1ª Timóteo, cap. 6º, vers. 20, cap. 1º, vers. 18 e cap. 6º, vers. 13), ou no cap. 33 (citando sucessivamente a 1ª Timóteo, cap 4º, vers. 3º, e cap. 3º, vers. 4º); enfim, menciona também as duas cartas de Paulo a Timóteo, bem como a carta a Tito (i.e., todas as Pastorais), admirando-se de o herege Marcião não as incluir em seu cânon, embora nele fizesse constar o bilhete a Filêmon (cf. “Contra Marcião”, livro V, cap. 21).

Para a 2ª a Timóteo: 

·         Também não sobreviveram testemunhos papiráceos da 2ª Timóteo anteriores ao séc. IV dC; mas não se pode saber com certeza se ela (como as demais Pastorais) constava ou não no P46 (conforme visto), e um testemunho independente para a carta a Tito (além das citações noutros autores) evidencia fortemente que já eram conhecidas, e consideradas canônicas, pelo menos desde os meados do séc. II dC; 

·         Como o cânon de Muratori (c.170 dC) menciona explicitamente duas cartas paulinas a Timóteo, então também a 2ª Timóteo era conhecida, e considerada autêntica, na comunidade cristã de Roma pelos meados do séc. II dC; 

·         Santo Ireneu da Ásia Menor (c.130 – c.202 dC), bispo de Lugduno (Lião), nas Gálias, em sua obra “Detecção e Refutação da Falsa Gnose”, também conhecida como “Contra os Hereges” (escrita por volta de 180 dC), também cita várias vezes a 2ª Timóteo, p.ex.: a) ao mencionar “as cartas que Paulo dirigiu a Timóteo” (Paulos en tais pros Timotheon epistolais), referindo-se, nesse contexto, a São Lino (livro III, cap. 3º, par. 3º; cf. 2ª Timóteo, cap. 4º, vers. 21); b) cita ainda 2ª Timóteo, cap. 4º, vers. 10-11, como tendo sido escrita por Paulo (livro III, cap. 14, par. 1º); 

·         Clemente de Alexandria (c.150 – c.215 dC) faz inúmeras citações da 2ª Timóteo em suas obras, quer ligando-a ao “Apóstolo”, quer explicitamente a Paulo; p.ex.: a) nas “Miscelâneas” ou “Estrômatos”, livro I, cap. 1º, (cf. 2ª Timóteo, cap. 2º, vers. 1º-2º); livro I, cap. 10, ao final (cf. 2ª Timóteo, cap. 2º, vers. 14); livro IV, cap. 7º (cf. 2ª Timóteo, cap. 1º, vers. 7-8); livro V, cap. 1º (cf. 2ª Timóteo, cap. 2º, vers. 23); b) na “Exortação aos Pagãos”, cap. 9º, onde, após citar três vezes a 1ª Timóteo, complementa mencionando a 2ª Timóteo, cap. 3º, vers. 15;

·         Tertuliano de Cartago (c.160 – c.220 dC) menciona a 2ª Timóteo como sendo escrita por Paulo (“A Ressurreição da Carne”, cap. 23, citando 2ª Timóteo, cap. 1º, vers. 18); e, como já citado, menciona as duas cartas de Paulo a Timóteo, bem como a carta a Tito, admirando-se de o herege Marcião não as incluir em seu cânon, embora incluísse o bilhete a Filêmon (cf. “Contra Marcião”, livro V, cap. 21).

Para a carta a Tito: 

·         O papiro P32, datado paleograficamente dos finais do séc. II dC ou dos inícios do séc. III dC (contemporâneo, ou talvez um pouco mais antigo, que o P46 já aqui estudado), fragmentado, cita, da carta a Tito, o cap. 1º, vers. 11-15, e o cap. 2º, vers. 3º-8º. É uma indicação preciosa, não apenas para a carta a Tito, mas também para as Pastorais como um todo, já que as duas cartas a Timóteo e a carta a Tito sempre foram agrupadas em conjunto nos manuscritos neotestamentários; desse modo, além de ser um testemunho direto para Tito, o é, indiretamente, para as duas cartas a Timóteo;

·         O cânon de Muratori (c.170 dC) menciona explicitamente a carta a Tito entre as cartas paulinas; portanto, ela era conhecida, e considerada autêntica, na comunidade cristã de Roma pelos meados do séc. II dC; 

·         Santo Ireneu da Ásia Menor (c.130 – c.202 dC), bispo de Lugduno (Lião), nas Gálias, em sua obra “Detecção e Refutação da Falsa Gnose”, também conhecida como “Contra os Hereges” (escrita por volta de 180 dC), menciona a carta a Tito: a) no livro I, cap. 16, par. 3º, citando Tito, cap. 3º, vers. 10, e informando explicitamente tratar-se de escrito de Paulo; b) repetindo a mesma citação de Tito no livro III, cap. 3º, par. 4º; 

·         Clemente de Alexandria (c.150 – c.215 dC) faz várias citações da carta a Tito em suas obras, quer ligando-a ao “Apóstolo”, quer explicitamente a Paulo; p.ex.: a) nas “Miscelâneas”, ou “Estrômatos”, livro I, cap. 8º (cf. Tito, cap. 1º, vers. 10); livro I, cap. 14 (cf. Tito, cap. 1º, vers. 12-13); livro IV, cap. 9º (cf. Tito, cap. 1º, vers. 16); livro IV, cap. 20 (cf. Tito, cap. 2º, vers. 3º-5º); b) na “Exortação aos Pagãos”, cap. 1º, duas vezes: Tito, cap. 3º, vers. 3º-5º (com a observação de se tratar de “escrito apostólico”) e Tito, cap. 2º, vers. 11-13 (com a observação de se tratar de algo escrito “pelo inspirado Apóstolo do Senhor”); 

·         Tertuliano de Cartago (c.160 – c.220 dC) menciona a carta a Tito na sua obra “A Prescrição contra os Hereges” (cap. 6º, citando Tito, cap. 3º, vers. 10-11); e, em sua obra “Contra Marcião”, livro V, cap. 21, como já citado neste trabalho, menciona as duas cartas de Paulo a Timóteo, bem como a carta a Tito, admirando-se de o herege Marcião não as incluir em seu cânon, embora incluísse o bilhete a Filêmon. 

Que o elenco de testemunhas ora fornecido (e que não é, de modo algum, exaustivo, mas apenas exemplificativo) possa mostrar que as Pastorais foram desde cedo consideradas escritos inspirados, e da autoria de São Paulo Apóstolo. 

8.3. As Razões Aduzidas para a não-Autoria Paulina, e suas Refutações: 

·         As Pastorais não constam no cânon de Marcião, e também encontram-se ausentes no importante testemunho papiráceo P46. Mas: em primeiro lugar, a ausência das Pastorais do cânon de Marcião, um herege gnóstico, deve-se provavelmente a razões de ordem teológica, já que parece quase certo que ele as conhecia (conforme o testemunho de Tertuliano, “Contra Marcião”, livro V, cap. 21, já mencionado); em segundo lugar, não é certo, conforme visto, que P46, originariamente, não incluísse as Pastorais; enfim, note-se que a carta de Tito consta num outro testemunho contemporâneo de P46, o papiro P32. 

·         É extremamente difícil, e mesmo impossível, conciliar os dados constantes nas Pastorais acerca da situação de Paulo e de seus colaboradores com os dados conhecidos a partir dos Atos dos Apóstolos, ou das demais cartas. Mas: conforme já comentado, as Pastorais não precisam ser inseridas, necessariamente, no arcabouço cronológico apresentado pelos Atos dos Apóstolos, já que, como demonstrado, podem perfeitamente ter sido escritas após o 1º cativeiro romano (sendo, portanto, posteriores tanto aos acontecimentos narrados nos Atos quanto à confecção das demais cartas). Portanto, a dificuldade, ou mesmo a incapacidade, de enquadramento das Pastorais na estrutura cronológica dos Atos dos Apóstolos, ou mesmo na das demais cartas, não é argumento para sustentar a sua inautenticidade. 

·         A estrutura e a hierarquia eclesiástica presentes nas Pastorais é mais desenvolvida e sofisticada do que a presente nas epístolas usualmente reconhecidas como autênticas, traindo a sua confecção numa época posterior. Mas: essa objeção já foi analisada e refutada, em termos gerais, no item “8.1”. Prosseguindo e detalhando a análise lá efetuada, deve-se notar que: a) desde o início, alguma hierarquia esteve sempre presente nas comunidades, com a instituição de vários ofícios especializados, principalmente aqueles ligados à assistência aos desvalidos (cf., p.ex., Atos, cap. 6º, vers. 1º-6º, para a instituição dos diáconos); b) muito dessa organização primitiva, aliás, decalcou-se nas sinagogas, das quais se adotou o cargo (e o nome) dos “anciãos” ou “presbíteros” (para Jerusalém: Atos, cap. 11, vers. 27-30; cap. 15, vers. 2º, 4º, 6º e 22-23; para Derbe, Listra, Icônio e Antióquia da Pisídia: Atos, cap. 14, vers. 23; para Éfeso: Atos, cap. 20, vers. 17; de um modo geral: carta de São Tiago, cap. 5º, vers. 14; 1ª carta de São Pedro, cap. 5º, vers. 1º); c) é verdade que Paulo emprega o termo presbyteros apenas nas Pastorais, mas ele cita explicitamente, nas cartas mais antigas, aqueles que presidem as comunidades (p.ex., Romanos, cap. 12, vers. 8º, ou 1ª Tessalonicenses, cap. 5º, vers. 12), a mesma expressão que aplica aos “anciãos” (1ª Timóteo, cap. 5º, vers. 17); d) como já notado, os termos episkopos e presbyteros são intercambiáveis, e ambos ligados ao conceito de “pastor”, quer nas Pastorais, quer nas cartas mais antigas (os presbíteros de Éfeso citados em Atos, cap. 20, vers. 17, são também epíscopos, i.e., supervisores: comparar com Atos, cap. 20, vers. 28, e com Tito, cap. 1º, vers. 5º e 7º; também, Filipenses, cap. 1º, vers. 1º). Assim sendo, tem-se, mesmo nas Pastorais, uma estrutura ainda primitiva (embora um tanto mais evoluída em relação às primeiras comunidades, o que é, aliás, algo normal e esperado), e não o episcopado monárquico e a hierarquia das três ordens (episcopado, presbiterado e diaconato) já notados a partir do primeiro quartel do séc. II dC – ainda ausentes na “Didaquê”, mas claramente presentes nas cartas de Santo Inácio, bispo de Antióquia da Síria (martirizado em Roma antes de 117 dC). 

·         O autor das Pastorais estaria argumentando contra os sistemas gnósticos que se desenvolveram a partir de meados do séc. II dC, sendo dessa época a efetiva composição de tais cartas. Mas: como já comentado, não se pode, em absoluto, ligar os “falsos mestres” referidos pelas Pastorais aos expoentes das correntes gnósticas plenamente desenvolvidas de épocas posteriores; tratam-se de tendências apocalípticas e, no máximo, “proto-gnósticas”, ligadas a interpretações místicas do Antigo Testamento e ligadas a aspectos extremados de ritual judaico, de genealogias e de angelologia – trata-se de pretensos “mestres da lei” (p.ex., 1ª Timóteo, cap. 1º, vers. 7º) e de judaizantes em muitos aspectos (p.ex., Tito, cap. 1º, vers. 10 e 14; cap. 3º, vers. 9º).

·         A linguagem, o estilo e o vocabulário das Pastorais são notavelmente diferentes da das demais cartas paulinas geralmente aceitas como autênticas; mais ainda, segundo os estudos já citados de Harrison[43], entre os “hapax legomena” presentes nas Pastorais, especificamente, haveria o uso de palavras ou expressões que não ocorreriam, ou ocorreriam apenas raramente, na literatura em língua grega antes do séc. II dC – sinal evidente de que tratar-se-ia dum caso de falsificação posterior, ou seja, as Pastorais estariam utilizando o vocabulário “típico” duma época posterior à de Paulo. Mas: têm-se aqui, mais uma vez, considerações estilísticas. Quanto às diferenças de linguagem, de estilo e, mesmo, de vocabulário, já foram respondidas em vários pontos deste trabalho. Argumentos desse tipo, quando convenientemente manejados, podem provar qualquer coisa; assim, p.ex., como se pôde notar, pautando-nos por critérios exclusivamente estilísticos e de vocabulário, poderíamos, inclusive, negar ao próprio Platão a autoria do “Timeu”! Mas o argumento inicialmente utilizado para se considerar as Pastorais como não autênticas, e baseado em grande parte na (maior) ocorrência de “hapax legomena”, foi sofisticado por Harrison no sentido de mostrar que, nesse conjunto de palavras únicas, haveria o uso dum “vocabulário posterior”. A questão é: tal assertiva se sustenta? O fato é que, malgrado o cuidado e a erudição do estudo de Harrison (1921), uma obra que merece ser lida e analisada com cuidado e atenção, ele não pôde, ao fim e ao cabo, levantar novos argumentos de modo a contradizer os estudos anteriores, e muito bem fundamentados, de Lilley (1901) e de James (1906-1907), bem como o posterior de Guthrie (1955), conforme será detalhadamente exposto a partir de agora:

  • Lilley[44], em seu estudo, mostra que, das 897 palavras presentes nas Pastorais, 726 (81%) encontram-se também nos outros escritos neotestamentários, e que dois terços do vocabulário das Pastorais encontra-se presente igualmente nas outras cartas paulinas (uma proporção semelhante à existente quando se analisam as cartas aos Gálatas e aos Romanos, reputadas como genuínas);

 

  • James[45], em seus estudos, faz ver que, dos 168 “hapax legomena” presentes nas Pastorais:

 

·         73 dentre eles encontravam-se na versão grega do Antigo Testamento, a versão dita “dos Setenta”, que era, obviamente, do conhecimento de São Paulo Apóstolo, e, mesmo, de seu uso, já que sua língua materna (sendo natural de Tarso da Cilícia, e cidadão romano) era o grego; 

·         10 outros eram claramente derivados da versão dos Setenta, como aneksilakos (presente em 2ª Timóteo, cap. 2º, vers. 24, reminiscente de aneksilakia, presente no livro da Sabedoria, cap. 2º, vers. 9º), antithesis (1ª Timóteo, cap. 6º, vers. 20, cf. antithetos em Jó, cap. 32, vers. 3º), authentein (1ª Timóteo, cap. 2º, vers. 12, cf. authentês em Sabedoria, cap. 12, vers. 6), ghenealoghia (1ª Timóteo, cap. 1º, vers. 4º e Tito, cap. 3º, vers. 9º; cf. ghenealoghein em 1ª Crônicas, cap. 5º, vers. 1º); paroinos (1ª Timóteo, cap. 3º, vers. 3º e Tito, cap. 1º, vers. 7º, cf. paroinein em Isaías, cap. 41, vers. 12), etc.; 

·         29 outros encontravam-se nos autores clássicos, de Aristóteles e Políbio até Estrabão, e faziam parte do vocabulário grego de nível coloquial culto da época; 

·         8 encontravam-se nos escritos do filósofo judeu alexandrio Fílon (viveu c.20 aC a c.50 dC), contemporâneo mais velho de Paulo e, assim, também corrente em sua época e, mais importante, em seu meio;

·         Pelo menos 10 (talvez mais) podiam se ligar à especificidade dos temas tratados, que, no caso das Pastorais, centravam-se no delineamento de normas de conduta para os dirigentes cristãos, a par da elaboração de conselhos práticos (essa necessidade pode, até mesmo, explicar um ou outro neologismo): ksenodochein, oikodespotein, technogonein, philandros, heterodidaskalein, kenophonia, logomachein, logomachia, metaiologia, metaiologos, e possivelmente outras; 

·         O simples acaso (i.e., referências anedóticas) podia responder por outros 4, quais sejam, as palavras para “pergaminho” (literalmente “membrana”, cf. 2ª Timóteo, cap. 4º, vers. 13), “manto” (citado também na 2ª Timóteo, cap. 4º, vers. 13), “estômago” (cf. 1ª Timóteo, cap. 5º, vers. 23) e “profeta” (referido a Epimênides de Cnossos, cf. Tito, cap. 1º, vers. 12); 

·         Outros 7 eram derivados de palavras utilizadas pelo próprio Paulo noutras cartas (p.ex., airetikos, presente em Tito, cap. 3º, vers. 10, cf. airesis, 1ª Coríntios, cap. 11, vers. 19, ou Gálatas, cap. 5º, vers. 20; dioktês, em 1ª Timóteo, cap. 1º, vers. 13, cf. diokein em Romanos, cap. 12, vers. 14; ou episoreuein em 2ª Timóteo, cap. 4º, vers. 3º, cf. soreuein epi em Romanos, cap. 12, vers. 20); 

·         Outros 5 eram derivados, pelo mesmo princípio, de diversas palavras bíblicas; 

·         Enfim, o uso de epiphaneia ao invés de parousia para denotar a segunda vinda de Cristo (Tito, cap. 2º, vers. 13) não devia ser considerado, a rigor, como específico das Pastorais, já que o vocabulário de Paulo, a esse respeito, era bastante mutável: usa, p.ex., hê hêmera Kyriou na 1ª Tessalonicenses, cap. 5º, vers. 2º, e na 1ª Coríntios, cap. 1º, vers. 8º e cap. 5º, vers. 5º; hê apokalypsis na 2ª Tessalonicenses, cap. 1º, vers. 17; e hê epiphaneia tês parousias autou na 2ª Tessalonicenses, cap. 2º, vers. 8º. 

·         Assim sendo, dos 168 “hapax legomena” presentes nas Pastorais, 147 (87,5%) podiam ser perfeitamente explicados quer pelo vocabulário grego (coloquial culto) conhecido na época e no meio cultural de Paulo, quer pelas especificidades dos temas tratados. Para os restantes 21 casos (12,5%), o amadurecimento do estilo, a par das idiossincrasias pessoais de Paulo, e mesmo condições específicas de redação (como será mostrado mais abaixo) são hipóteses explicativas mais do que suficientes. 

  • Para complementar os estudos anteriores, pode-se lançar mão da tabela comparativa elaborada por Guthrie[46], a partir dos dados compilados pelo próprio Harrison, acerca do percentual das palavras presentes nas várias cartas de Paulo (exceto “Hebreus”), Pastorais inclusive, que ocorriam nos escritos cristãos posteriores, quais sejam, nos Padres Apostólicos[47] e nos Apologistas[48]; o resultado merece ser exibido na íntegra:

 

Carta

Percentagem do vocabulário presente nos Padres Apostólicos

Percentagem do vocabulário presente nos Padres Apostólicos, ou nos Apologistas, ou em ambos

Romanos

81,7%

89,5%

1ª Coríntios

84,0%

90,5%

2ª Coríntios

80,3%

87,6%

Gálatas

85,9%

90,7%

Efésios

86,2%

91,0%

Filipenses

86,5%

90,7%

Colossenses

85,6%

90,2%

1ª Tessalonicenses

88,1%

93,0%

2ª Tessalonicenses

91,0%

94,2%

Filêmon

92,3%

96,2%

Pastorais

78,3%

86,7%

 

  • Nota-se claramente que o uso de vocabulário comum entre as obras do “corpus” paulino e os Padres Apostólicos (ou entre o conjunto formado pelos Padres Apostólicos e os Apologistas) não difere significativamente, quer se considerem as Pastorais, quer quaisquer outras das demais epístolas. Desse modo, não há como se sustentar a tese de Harrison: quer em termos da análise vocabular das Pastorais, quer comparando o seu vocabulário (e o das demais cartas do “corpus” paulino, exceto “Hebreus”) com o dos Padres Apostólicos e dos Apologistas (que escreveram entre os fins do séc. I dC e a 2ª metade do séc. II dC), não se notam quaisquer variações significativas.

 

  • Enfim, notam-se algumas semelhanças estilísticas entre as Pastorais e os escritos de Lucas (o evangelho e os Atos); isso, aliás, era de se esperar, e se constitui em mais um ponto a favor da autenticidade destas últimas, pois, conforme já mencionado neste trabalho, por ocasião da sua confecção (após o cativeiro romano), Lucas foi o companheiro inseparável de Paulo e, muito provavelmente, seu amanuense, ou escriba. Alguns exemplos (dentre vários) de traços estilísticos lucanos nas Pastorais:

 

·         O uso do radical euseb- indicando a idéia de “piedade”, que, no Novo Testamento, é utilizado quase que exclusivamente por Lucas e nas Pastorais;

·         A palavra timê, que quase sempre significa, nos escritos neotestamentários, “honra”, tem, apenas duas vezes, a acepção de recompensa ou dom material: em Atos, cap. 28, vers. 10 (referindo-se aos presentes dados aos náufragos pelos malteses) e na 1ª Timóteo, cap. 5º, vers. 17 (referindo-se aos estipêndios a serem ofertados aos anciãos);

·         No capítulo 6º da 1ª Timóteo há uma série de considerações contra a avareza e o apego ao dinheiro; no versículo 10, a avareza é denominada philarghyria (literalmente “amor ao dinheiro”), e no versículo 17 Timóteo é exortado a admoestar sua congregação a não ser arrogante, ou orgulhosa (mê hypsêlophronein). Ora, no Evangelho de Lucas, cap. 16, vers. 14, os fariseus são denominados justamente philarghyroi, “amantes do dinheiro”, avaros, e, no próximo versículo, Jesus lhes assevera que o que é agradável (hypsêlon) aos homens é abominável a Deus. Note-se que philarghyria e hypsêophronein ocorrem apenas nessas duas passagens da 1ª Timóteo, em todo o Novo Testamento; e que philarghyros ocorre apenas na referida passagem de Lucas, bem como na 2ª Timóteo, cap. 3º, vers. 2º;

·         Na 2ª Timóteo, cap. 2º, vers. 12, tem-se: “se com Ele perseverarmos, com Ele reinaremos” (ei hypomenomen, kai synbasileusomen); e apenas em Lucas, cap. 22, vers. 29-29, consta o seguinte dito de Jesus: “Como perseverastes comigo em minhas provações, (…), Eu também vos confio o Reino (hymeis […] este hoi diamemenêkotes met’emou en tois peirasmois mou. Kagô diatithemai hymin […] basileian) – o paralelismo é evidente;

·         Sobre o dito de que o operário é digno de seu pagamento, a forma mateana (Mateus, cap. 10, vers. 10) traz “digno de seu sustento” (tês trophês autou), ao passo que Lucas (Lucas, cap. 10, vers. 7º) usa “de seu pagamento” (tou misthou), justamente a mesma versão do dito que é repetida na 1ª Timóteo, cap. 5º, vers. 18.

9. Conclusão:

À guisa de conclusão, espera-se que este trabalho tenha podido mostrar que, ao contrário do que uma “minoria barulhenta” alardeia (escorando-se na pretensa “racionalidade” e “caráter probante” de análises baseadas na crítica textual e em considerações estilísticas): a) nem a crítica textual, e nem a análise estilística, tem o poder probante que lhes é imputado (e suposto), carecendo de efetivas provas para o que alega; e b) há boas bases – essas sim racionais e evidenciáveis – para se esposar tanto a historicidade dos textos neotestamentários, em geral, quanto, em particular, a autenticidade de todo o “corpus” das epístolas de Sâo Paulo Apóstolo, tais como foram preservadas. O que se pode perceber, assim, é que alguns, a fim de viabilizar suas próprias agendas, usurpam os estandartes duma suposta análise “racional” e “neutra”, a qual não é nem uma coisa e nem outra. E que defender, p.ex., a autenticidade do conjunto das cartas paulinas não é “obscurantismo”, ou meramente “ortodoxia”, mas sim o resultado de criteriosa e racional análise dos fatos, tais como se apresentam.

Tomo como encerradas, ao menos por um bom período, minhas considerações acerca da autenticidade e da confiabilidade histórica dos textos neotestamentários., retornando, a partir de agora, à finalização de minha primeira análise acerca da “sentença de Jesus” e de suas correlações com a “carta de Lêntulo” e com o fantasmagórico “manuscrito de Aquiléia” (ou melhor, de Áquila).



[1] Sempre há, claro, aqueles que contestaram, e contestarão, a autoria do “Diálogo sobre os Oradores”, considerando-o como não sendo uma obra de Tácito. Nesse caso, especificamente em termos estilísticos, o candidate mais plausível seria Marco Fábio Quintiliano (c.35 – c.100 dC), o famoso retor de origem hispânica, autor das “Instituições de Oratória”. Além do estilo, pode-se acrescentar que o próprio Quintiliano, em duas passagens de suas “Instituições” (livro VI, prefácio; livro VIII, cap. 6o), menciona o fato de tratar, noutra obra, das causas da corrupção e da decadência da eloqüência em sua época. No entanto: a) a tradição de transmissão dos manuscritos, unanimemente, considera o “Diálogo sobre os Oradores” como sendo uma obra de Tácito, colocando-a junto com as demais “obras menores” (a “Vida de Agrícola” e a “Germânia”); b) na tradição manuscrita, o título do “Diálogo” não faz menção, originariamente, à corrupção e à decadência da eloqüência; a expressão De Causis Corruptae Eloquentiae como sub-título do “Diálogo” é moderna, e foi acrescentada por Lipsius, que a julgou “conveniente”, tendo em vista o assunto da obra; nos manuscritos, a peça é normalmente denominada De Claris Oratoribus, ou Dialogus an sui saeculi Oratoris et quare concedant – daí o título usual pelo qual é conhecida, Dialogus de Oratoribus; c) uma característica sempre presente na obra de Quintiliano, a referência a outras obras do autor, está completamente ausente no “Diálogo sobre os Oradores”; d) quer o “Diálogo” tenha sido composto por volta do ano 75 dC (se se levar em conta a data na qual a própria obra situa o enredo), quer por volta do ano 102 dC (data presumível da dedicatória a Fábio Justo), Quintiliano já seria um adulto (com cerca de 40 anos, ou com mais de 60, dependendo do caso), e a referência do autor do “Diálogo” a ser um “rapaz”, ou “relativamente jovem” (iuvenis admodum) quando presente à conversação ou disputa retórica entre Materno e Áper, datada justamente de c. 75 dC (cf. “Diálogo sobre os Oradores”, cap. 17), e que agora transmitia de memória (memoria et recordatione) a Fábio Justo (“Diálogo sobre os Oradores”, cap. 1o), ficaria bem difícil (quando não impossível) de explicar para Quintiliano (nascido c. 35 dC), mas não em absoluto para Tácito (nascido c. 55 dC).

[2] P.N. Harrison, “The Problem of the Pastoral Epistles”, Oxford University Press, 1921.

[3] W. P. Workman, “The Hapax Legomena of St. Paul”, Expository Times, vol. 7, fascículo 9, junho de 1896, págs. 418-419.

[4] Especificamente para a “carta” aos Hebreus, o cálculo não foi realizado por Harrison, mas obtido a partir dum estudo de Craig Koester, que catalogou em “Hebreus” 154 “hapax legomena”.

[5] Cálculo a partir do número de páginas da edição de Westcott-Hort utilizada por Walkman – em média, 77% em tamanho (20 páginas) com relação à edição do Hendrickson Publishers de 2007 (26 páginas).

[6] E o próprio Workman, op. cit., fornece, como exemplo, a modificação que se pode observar comparando o estilo de Thomas Carlyle, (1795-1881), ensaísta, historiador e escritor satírico escocês, presente em “Latter-Day Pamphlets” (de 1850) com aquele de “Heroes and Hero-Worship and the Heroic in History” (de 1841).

[7]Hapax Legomena of Plato”, 1887, Andrew Fossum, dissertação para obtenção de grau de doutorado (PhD) na Johns Hopkins University, 1887 (manuscrita).

[8]Platão não cessou, mesmo em seus oitenta anos, de procurar modificar e melhorar seus diálogos, remodelando-os em todos os sentidos. Certamente, todo estudioso do assunto está familiarizado com os seus esforços nesse sentido, e mesmo com o caso das tábuas, encontradas após a sua morte, nas quais, ao que se diz, o início da ‘República’, ‘Desci ontem ao Pireu com Glauco, filho de Aristão’, estava elaboradamente disposto numa série de variantes”. (Dionísio de Halicarnasso, “Sobre a Composição Literária”, cap. 25).

[9] A exceção sendo o “Filebo”, que é geralmente considerado como um diálogo tardio, apesar de ter Sócrates como principal protagonista.

[10] O período de navegação no Mediterrâneo iniciava-se a 8 de fevereiro, fechando-se, no mais tardar, a 11 de novembro (cf. Plínio o Velho, “História Natural”, livro II, cap. 47). Desse modo, Pilatos deve ter seguido para Roma, quase certamente, ainda em 36 dC, lá chegando pouco antes da morte de Tibério (que ocorreu aos 16 de março de 37 dC).

[11] As “dez cidades” originais da Decápole (às quais, posteriormente, outras se juntaram) foram (aproximadamente do norte para o sul): Damasco, Canata (hoje Qanawat, na Síria), Hipos (cujas ruínas se situam na margem oriental do lago de Genesaré), Dion (próxima a Irbid, na Jordânia), Rafana ou Ábila (próxima a Umm Qais, na Jordânia), Gádara (Umm Qais, na Jordânia), Citópolis (Bet-Seã, em Israel), Pela (próxima a Irbid, na Jordânia), Gerasa (Djerash, na Jordânia) e Filadélfia (a atual Amã, capital da Jordânia)

[12] Cf. F. de Saulcy, Numismatique de la Terre Sainte – Description des Monnaies Autonomes et Impériales de la Palestine et de l’Arabie Pétrée, J. Rothschild Éditeur, Paris, 1874, pág. 36.

[13] Cf. T. E. Mionnet, Description des Medailles Antiques Grecques et Romaines, vol. V, 1811, pág. 284s

[14] Cf. F. de Saulcy, op. cit., loc. cit.

[15] Essa questão envolve tremendos problemas cronológicos. Herodíades, sobrinha de Antipas, era casada com um seu meio-irmão, Herodes Filipe, que não deve, contudo, ser confundido com o Herodes Filipe que era tetrarca da Gaulanítide, da Batanéia, da Traconítide, da Auranítide e de parte da Ituréia, de 4 aC até á sua morte em 34 dC. Não se sabe exatamente quando o 1º marido de Herodíades morreu, e nem quando ela casou-se com Antipas, mas o fato é que: a) pelos Evangelhos, isso tudo teria ocorrido antes da crucifixão de Jesus (i.e., antes de 33 dC, ou mesmo antes de 30 dC), tendo sido inclusive a causa da morte de São João Batista, que se opôs a tal enlace; mas b) segundo Flávio José, o conflito entre Antipas e Aretas IV (o rei nabateu, pai da esposa repudiada de Antipas) ocorreu apenas a partir de 35/36 dC, ou seja, após a morte de Jesus. Uma conciliação plausível dessas duas fontes apontaria para a seguinte seqüência de eventos; a) Herodes Filipe, o 1º marido de Herodíades (não Filipe, o tetrarca), pode ter morrido c. 30 dC, ou mesmo pouco antes; b) a prisão (e execução) do Batista pode ter ocorrido logo após 30 dC, mas, de qualquer modo, antes de 33 dC; c) as relações entre Aretas e Antipas foram continuamente se deteriorado entre c. 30 dC e c. 34/35 dC; d) utilizando o repúdio de sua filha como pretexto, Aretas iniciou uma agressiva expansão de seus domínios em direção ao norte, conquistando inclusive Damasco (talvez c. 34/35 dC), e enfrentando as forças de Antipas a partir de 35/36 dC. De qualquer modo, Herodíades não era esposa do tetrarca Herodes Filipe, como faz crer o Evangelho de Marcos – tem-se aqui um erro histórico do evangelista.

[16] “Naqueles dias, alguns profetas desceram de Jerusalém para Antióquia. Um deles, chamado Ágabo, inspirado pelo Espírito [Santo], anunciou que uma grande fome afligiria toda a terra. De fato, essa fome sobreveio no tempo do imperador Cláudio. Os discípulos decidiram, então, mandar uma ajuda, cada qual segundo suas possibilidades, aos irmãos que viviam na Judéia. Assim o fizeram, e enviaram tal ajuda aos anciãos [de Jerusalém] por meio de Saulo e Barnabé”.

[17] Uma inundação insuficiente deixaria áreas cultiváveis sem receber a lama fertilizante que a subida anual das águas do Nilo (a qual definia uma estação de cheias entre fins de junho e fins de setembro) depositava no solo; desse modo, com uma menor área fertilizada, a colheita seria menor. Uma super-inundação, por outro lado, acarretava um maior tempo para o escoamento das águas, atrasando o plantio; como a colheita tinha que ocorrer, quaisquer que fossem as circunstâncias, em abril e maio, imediatamente antes da próxima inundação, isso levava (no caso duma super-inundação) a um menor tempo para o desenvolvimento das sementes, acarretando assim uma produtividade menor na colheita.

[18] Cf. Plínio o Velho, “História Natural”, livro V, cap. 10: “A melhor altura [para a inundação anual do Nilo] é de 16 côvados; se as águas não alcançam tal nível, a inundação [das áreas cultiváveis, com a deposição do limo fertilizante] não é universal, mas, se excedem tal valor, a lentidão da retirada das águas retarda o plantio, que é ainda mais prejudicado pelo solo encharcado. Há, assim, razões para que o nível da inundação seja cuidadosamente observado; pois, se o nível das águas alcança apenas os 12 côvados, certamente sobrevirão os horrores da fome; uma inundação de 13 côvados ainda leva à escassez; uma de 14, por sua vez, já traz alívio; uma de 15 faz desaparecer a ansiedade; e uma de 16 é comemorada com alegria. A maior inundação conhecida, até ao tempo presente [i.e., até à época de Vespasiano] foi de 18 côvados, ocorrida sob o império de Cláudio”.

[19] O Papiro Graux I (agora denominado SB-IV-7461), inequivocamente do ano 45 dC, é um relatório enviado pelo oficial Dionisodoro, de Filadélfia, no nomo arsinoíta, ao estratego do nomo heracleopolitano, informando-o que, em Filadélfia, encontravam-se refugiados inúmeros contribuintes do referido nomo, impossibilitados de pagarem os impostos; e requeria que tais trânsfugas fossem capturados e reconduzidos a suas propriedades no nomo heracleopolitano, se necessário mediante o uso de destacamentos de soldados.

[20] Para o período 45/46 dC, há dados papirológicos específicos que atestam os preços de 4,4, de 5,7, de 7,3, de 7,6, e de 8,0 dracmas egípcias (este último valor em quatro exemplares) por artaba. Para o ano 47 dC, há o registro do preço de 8,7 dracmas por artaba; para 56 dC, o preço aparentemente já havia se reestabilizado em 5 dracmas por artaba. A dracma egípcia, uma moeda de bilhão, valia ¼ do denário romano; a artaba era uma medida de capacidade utilizada no Egito (subdividida em 40 quênices, ou 72 sextários, ou ksestai) e equivalente a 38,8 litros (ou, em termos romanos, a 3,33 módios castrenses de 21,6 sextários, ou a 4½ módios itálicos de 16 sextários). Os preços da artaba de trigo foram obtidos a partir dos dados coligidos por R. P. Duncan-Jones (Structure and Scale in the Roman Economy, Cambridge University Press,1990) e por H. J. Drexhage (Preise, Mieten/Pachten, Kosten und Löhne im römischen Ägypten bis zum Regierungsantritt Dioketians, St. Katarinen, Scripta Mercaturae, 1991).

[21] Ou seja, o sétimo ano dum conjunto de sete (contados de outono a outono, i.e., aproximadamente de fins de setembro a fins de setembro), no qual, de acordo com a lei judaica, a terra não deveria ser cultivada, i.e., deveria ser deixada em pousio (cf. Levítico, cap. 25, vers. 1º a 7º). Sobre a cronologia dos anos sabáticos, sabe-se: a) combinando-se os dados do 1º livro dos Macabeus, cap. 6º, vers. 20-49, do 2º livro dos Macabeus, cap. 13, vers. 1º, e de Flávio José (“As Antiguidades Judaicas”, livro XII, cap. 9º, par. 5º [378]) que o ano 149 da era selêucida (164/163 aC) foi um ano sabático; b) que o ano 177 da era selêucida (136/135 aC) foi um ano sabático, a partir de Flávio José (“As Antiguidades Judaicas”, livro XIII, cap. 8º, par. 1º [234]); e c) que o ano 275 da era selêucida (38/37 aC), ano no qual Herodes o Grande, apoiado por tropas romanas, tomou Jerusalém de assalto, era um ano sabático (cf. Flávio José, “As Antiguidades Judaicas”, livro XIV, cap. 16, par. 2º [475], e livro XV, cap. 1º, par. 2º [7]). Desse modo, o ano compreendido entre o outono de 47 dC e o outono de 48 dC foi ano sabático.

[22] As compras de cereais no Egito devem ter sido particularmente onerosas, já que os efeitos da fraca colheita de 45 dC ainda perduravam, em parte. De qualquer modo, ao que parece os socorros de Helena e de Izates concentraram-se na cidade de Jerusalém; pouco deve ter sido feito pelas populações das áreas rurais da Judéia e da Galiléia.

[23] Cláudio tornou-se Imperador em 24 de janeiro de 41 dC; o ano civil, na Judéia, iniciava-se no outono (fins de setembro a inícios de outubro – princípio de outubro, por simplificação). Assim, o 1º ano de Cláudio foi de janeiro a outubro de 41 dC; o 2º ano, de outubro de 41 a outubro de 42 dC; o 3º ano, de outubro de 42 a outubro de 43 dC, e assim sucessivamente, de modo que o 13º ano correu de outubro de 52 a outubro de 53 dC, e o 14º ano, de outubro de 53 a outubro de 54 dC, praticamente terminando com a morte do Imperador, que ocorreu nesse mês, no dia 13.

[24] Nero tornou-se Imperador após a morte de Cláudio, em 13 de outubro de 54 dC. Desse modo, o 1º ano de Nero correu de 13 de outubro de 54 a outubro de 55 dC; o 2º ano, de outubro de 55 a outubro de 56 dC; o 3º ano, de outubro de 56 a outubro de 57 dC; o 4º ano, de outubro de 57 a outubro de 58 dC; enfim, o 5º ano, de outubro de 58 a outubro de 59 dC. Para detalhes acerca das emissões, cf. De Saulcy, op. cit., págs. 76-77.

[25] Em 36 dC, ocorreu o martírio de Santo Estêvão o Protomártir; por volta de 36/37 dC, Paulo seguiu para Damasco, com o intuito de continuar a sua perseguição à Igreja, tendo nessa cidade, contudo, se convertido (Atos, cap. 9º, vers. 1º-22), e depois dela escapando (vers. 23-25); segundo o próprio Paulo informa (carta aos Gálatas, cap. 1º, vers. 17), vagou então pela “Arábia” (aqui significando provavelmente a região de Damasco, então, como visto sob domínio dos árabes nabateus), retornando eventualmente a Damasco e, três anos depois, seguindo para Jerusalém (Gálatas, cap. 1º, vers. 18), provavelmente por volta de 40/41 dC, lá permanecendo aparentemente pouco tempo. De Jerusalém seguiu para a Cesaréia Marítima, e daí para sua cidade natal, Tarso da Cilícia (Atos, cap. 9º, vers. 26-30). De Tarso seguiu, poucos anos depois, para Antióquia da Síria, iniciando, na companhia de Barnabé, a sua 1ª viagem missionária (Antióquia da Síria e Chipre; daí, após os acontecimentos ligados ao mago Barjesus e ao procônsul Sérgio Paulo, para Perga, Antióquia da Pisídia, Icônio, Listra, Derbe; retorno por Perga até Atália, e enfim retorno a Antióquia da Síria). Essa 1ª viagem missionária ocorreu provavelmente de 44/45 dC a 49/50 dC. Por volta da primavera ou do verão de 50 dC, Paulo e Barnabé atenderam o “concílio de Jerusalém”, 14 anos após a conversão de Paulo (cf. Gálatas, cap. 2º, vers. 1º a 9º; Atos, cap. 15, vers. 2º), levando auxílio financeiro à comunidade hierosolimitana, por ocasião da fome que então grassava. Seguiu-se seu retorno a Antióquia, onde Paulo permaneceu provavelmente até ao inverno de 50/51 dC. Depois, iniciou-se a 2ª viagem missionária, na primavera de 51 dC: Síria, Cilícia, Derbe, Listra, Frígia, Galácia, Mísia até Alexandria Tróade; daí até à Samotrácia, Neápolis da Macedônia, Filipos, Anfípolis, Apolônia, Tessalônica, Beréia e Atenas (onde chegou pelo inverno de 51/52 dC), e logo depois Corinto, onde permaneceu 1½ ano (provavelmente da primavera de 52 ao outono de 53 dC); em Corinto, audiência com Galião (primavera/verão de 52 dC), e as duas cartas aos Tessalonicenses.

[26] Partindo de Corinto pelo outono de 53 dC, Paulo seguiu até Éfeso, daí até à Cesaréia Marítima, retornando depois até Antióquia da Síria, terminando então sua 2ª viagem missionária. Permaneceu em Antióquia durante o inverno de 53/54 dC, partindo na primavera de 54 dC na sua 3ª viagem missionária, de Antióquia da Síria, seguindo pela Galácia e depois pela Frígia, alcançando Éfeso por volta do outono de 54 dC e lá permanecendo três anos (possivelmente do outono de 54 dC até ao outono de 57 dC). Pelo final de sua permanência em Éfeso, Paulo escreveu sua 1ª carta aos Coríntios; pode também ter rescrito sua carta aos Gálatas, já que, na sua ida a Éfeso, tinha passado pela Galácia.

[27] No outono de 57 dC, Paulo saiu de Éfeso, seguindo, pela Tróade, até à Macedônia; de algum lugar nessa região, provavelmente de Filipos, escreveu a 2ª carta aos Coríntios; seguindo pela Macedônia e pela Grécia, alcançou Corinto, onde passou o inverno de 57/58 dC, e onde escreveu sua carta aos Romanos e (talvez) a carta aos Gálatas. Na primavera de 58 dC, partiu de Corinto, retornando à Macedônia, daí a Filipos, depois à Tróade, Assos, Mitilene, Quios Samos, Trogílio e Mileto; zarpando de Mileto, por Cós, Rodes, Pátara, e passando ao largo de Chipre, alcançou Tiro, depois Ptolemaida, Cesaréia Marítima e, por fim, Jerusalém (primavera ou verão de 58 dC), terminando sua 3ª viagem missionária Em Jerusalém ocorreram tumultos, sendo Paulo aprisionado; o procurador Félix protelou o seu julgamento, e Paulo permanece detido por dois anos na Cesaréia Marítima (da primavera ou verão de 58 até à primavera ou verão de 60 dC). Datam dessa época, quase certamente (e não do 1º cativeiro romano), o bilhete a Filêmon e as cartas aos Colossenses e aos Efésios.

[28] As cartas aos Colossenses, aos Filipenses e aos Efésios, bem como o bilhete a Filêmon, são chamadas “As Cartas da Prisão”, porque o Apóstolo, quando as escreveu, estava detido, em “algemas” ou “correntes” (cf. Colossenses, cap. 4o, vers. 18; Filipenses, cap. 1o, vers. 7o e 13-14; Efésios, cap. 3o, vers. 1o, cap. 4o, vers. 1o e cap. 6o, vers. 19-20; Filêmon, vers. 9). Tradicionalmente, pensava-se que tais cartas teriam sido todas redigidas por ocasião do primeiro cativeiro romano (61-63 dC), mas vários indícios internos, inclusive a referência a determinados colaboradores, tornam muito mais provável que tenham sido redigidas um pouco antes, por ocasião da detenção do Apóstolo na Cesaréia Marítima, nos dois últimos anos da procuradoria de Félix e no início da de Festo (58-60 dC – cf. Atos, cap. 23, vers. 33 a cap. 26, vers. 32). Paulo fez referência a várias ocasiões em que esteve preso (cf. 2ª Coríntios, cap. 6º, vers. 5º, e cap. 11, vers. 23; Romanos, cap. 16, vers. 7o), mas apenas em três ocasiões esteve detido por tempo suficiente, e em condições relativamente amenas ou estáveis, de modo a poder escrever: no cativeiro na Cesaréia Marítima (58-60 dC), no 1o cativeiro romano (61-62/63 dC) e, até certo ponto, no 2o cativeiro romano (c. 67 dC).

[29] Em 59 dC, Pórcio Festo sucedeu a Marco Antônio Félix como procurador da Judéia, e decidiu, finalmente, resolver o caso de Paulo, detido havia dois anos na Cesaréia Marítima. Após a audiência com Festo (provavelmente na primavera/verão de 60 dC), Paulo apelou ao Imperador (Atos, cap. 25, vers. 11), sendo então despachado para Roma, onde o caso deveria ser ouvido, e julgado, pelo tribunal imperial. Sob guarda, iniciou sua viagem provavelmente no final do verão ou no início do outono de 60 dC; da Cesaréia Marítima alcançou Mira da Panfília, depois Laséia, em Creta; daí, através de tormentas, chegou à ilha de Mélita (Malta), no outono de 60 dC, onde o navio em que viajava encalhou, com avarias impossíveis de consertar. Paulo e os demais do navio, inclusive os soldados, passaram em Malta o inverno de 60/61 dC, conseguindo, na primavera de 61 dC, embarcar num navio que se dirigia a Siracusa, na Sicília. Daí, alcançaram Régio e depois Putéolos, na Campânia, de onde seguiram, por terra, pela via Ápia, até Roma. Em Roma, Paulo permaneceu dois anos (o prazo legal para que seus acusadores apresentassem seus argumentos diante do tribunal imperial), ainda sob o regime, relativamente brando, da custódia militar (cf. Atos, cap. 28, vers. 16 e 30-31). Assim, o cativeiro romano durou quer de 61 a 62 dC (se os dois anos fossem contados da audiência na Cesaréia Marítimca, sob Festo), quer a 63 dC (se o prazo fosse contado a partir da efetiva chegada de Paulo a Roma, o que parece mais provável). Ao contrário do que ocorre no bilhete a Filêmon e nas cartas aos Colossenses e aos Efésios, há na carta aos Filipenses várias informações que a situam justamente nesse 1o cativeiro romano. Após o fim do prazo legal, como não houvesse sido apresentada acusação alguma contra ele, Paulo foi liberado; nesse ponto, termina o livro dos “Atos dos Apóstolos”.

[30] Após seu 1o cativeiro romano situam-se as demais cartas de Paulo; a ordem e a ocasião de sua redação são grandemente conjecturais, já que não mais se tem um documento como os “Atos” para complementar os indícios presentes nas próprias cartas. A primeira delas foi, provavelmente, a carta aos “Hebreus”, escrita na Itália (Hebreus, cap. 13, vers. 24), estando Paulo já livre, pois planejava visitar os “hebreus” – talvez a comunidade cristã judaica. Paulo deve ter partido da Itália pouco tempo depois, quase certamente antes do incêndio de Roma em 64 dC, pois não foi aprisionado no início da perseguição neroniana. É bem provável que seguisse (63/64 dC) para Éfeso (possivelmente com visitas a regiões vizinhas, como Mileto e Tróade), e daí para a Macedônia (64/65 dC), de onde escreveu (c. 65 dC) a 1ª carta a Timóteo, que havia permanecido em Éfeso. Da Macedônia deve ter seguido até Creta, onde deixou seu colaborador Tito, daí se dirigindo até Nicópolis do Épiro, onde tencionava passar o inverno (provavelmente o de 65/66 dC), e de onde escreveu a carta a Tito. É possível que de Nicópolis tivesse voltado a Roma (66 dC), onde logo seria preso, por ocasião da perseguição de Nero aos cristãos; nesse 2o cativeiro romano escreveu sua última correspondência, a 2ª carta a Timóteo, sendo logo depois martirizado (c. 67 dC). Uma tradição bastante antiga, já referida por São Clemente de Roma (“Carta aos Coríntios”, cap. 5o), fala de sua ida “até aos extremos ocidentais”, o que é interpretado como sendo uma viagem à Espanha; aliás, o próprio Paulo afirmou (Romanos, cap. 15, vers. 24 e 28) sua vontade de visitar a Espanha, mas não se sabe se, de fato, tal desejo se concretizou, e nem exatamente quando – se ocorreu, pode ter sido logo depois do 1o cativeiro romano; Paulo, então, teria seguido da Itália até “aos extremos ocidentais” (63/64 dC), de lá então retornando a Éfeso. Mas isso é mera conjectura.

[31] Há, nos “Atos dos Apóstolos”, três “seções de ‘nós’”, em que Lucas passa da 3a para a 1a pessoa do plural: cap. 16, vers. 10-17; cap. 20, vers. 5 a cap. 21, vers. 18; e cap. 27, vers. 1o a cap. 28, vers. 16.

[32] O papiro P32, datado paleograficamente dos finais do séc. II dC ou inícios do séc. III dC, pode ser um pouco mais antigo que o P46, e contém partes da carta a Tito (cap 1o, vers. 11-15 e cap 2o, vers 3o-8o). Encontra-se atualmente na biblioteca da Universidade John Rylands, em Manchester, Reino Unido.

[33] Segundo os estudos de Schbart, um rolo (biblos, liber) de papiro com 6 metros de comprimento, quando totalmente enrolado num cilindro de madeira, resultaria num diâmetro de 5 a 6 cm, algo perfeitamente manejável; cf. T. C. Skeat, “The origin of the Christian Codex”, em Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, vol. 102 (1994) págs. 263–268 (especificamente, pág. 265). Um rolo de 3 metros de comprimento tinha o diâmetro de 4 cm; um de 15 metros exibia, por sua vez, 9 cm (mais ou menos equivalente a uma garrafa de 2 litros de Coca-Cola), e esse parece ter sido, em geral, o limite superior, embora um rolo contendo a “Ilíada” (Pap. Berol. Inv. 16985), pelo que se pôde apurar, deve ter chegado aos 19 metros, e a obra “Sobre a Piedade”, de Filodemo de Gádara, constante na biblioteca da”Vila dos Papiros” de Herculano (uma cidade que, como Pompéia e Estábias, foi soterrada pela erupção do Vesúvio em 79 dC), deve ter alcançado, espantosamente, os 23 metros, conforme se apurou; mas eram, sem dúvida, casos excepcionais (cf. Roger S. Bagnall, “The Oxford Handbook of Papyrology”, pág. 264).

[34] F. G. Kenyon, “The Chester Beatty Biblical Papyri – III.1 Pauline Epistles and Revelation”, Londres, E. Walker, 1934

[35] P.ex., o códice Chester Beatty IX, também de um só “caderno”, e que continha os livros de Ezequiel, Daniel e Ester, compunha-se originalmente de 118 fólios, ou 232 páginas (cf. Skeat, op. cit., pág. 264).

[36] O cânon (ou lista, ou fragmento) muratoriano foi descoberto na Biblioteca Ambrosiana de Milão pelo padre Luís Antônio Muratori (1672-1750), um dos mais famosos historiadores e pesquisadores italianos da época, e por ele publicado em 1740. Consiste num texto num latim incorreto e, às vezes, obscuro (que trai, nalgumas passagens, o fato de ser a tradução dum original grego), inserido num códice do séc. VII ou VIII dC proveniente do mosteiro de São Columbano, em Bobbio, com o elenco dos livros considerados canônicos (e também de alguns não canônicos) na igreja romana por volta do ano 170 dC – já que o texto faz referência ao fato de que a obra “O Pastor”, de Hermas, irmão de São Pio I, bispo de Roma 142-157 dC, era “recente”: “Mas Hermas escreveu o ‘Pastor’ recentemente, em nossa própria época, na cidade de Roma, quando Pio, seu irmão, nela ocupava a cátedra episcopal; é obra merecedora de leitura, mas não publicamente, para a congregação, nas igrejas, já que não pode ser listada nem entre os Profetas, cujo número já se encontra completo, e nem entre os [escritos d’] os Apóstolos, já que é posterior a seu tempo”. (Cânon Muratoriano, linhas 73-80: pastorem vero nuperrim e temporibus nostris in urbe roma herma conscripsit sedente cathetra urbis romae aecclesiae pio eps fratre eius et ideo legi eum quide oportet se publicare vero in eclesia populo neque inter profetas completum numero neque inter apostolos in fine temporum potest).

[37] Wolfgang Trilling, Untersuchungen zum zweiten Thessalonicherbrief, Leipzig: St. Benno, 1972; e J. V. M. Sturdy, Redrawing the Boundaries: The Date of Early Christian Literature, pág. 59 (2 Thessalonians contains many un-Pauline phrases and stylistic peculiarities).

[38] Kümmel, W.G., Introduction to the New Testament, 14a ed., págs. 201-202: The language and style of II Thessalonians are, apart from particular words, thoroughly Pauline (…).

[39] Dos quatro grandes unciais dos sécs. IV e V dC, o Códice Sinaítico (séc. IV dC), o Códice Vaticano (séc. IV dC), o Códice Alexandrino (séc. V dC) e o Códice Efremiano Rescrito (séc. V dC), o endereçamento não consta no Sinaítico e no Vaticano (ou seja, nos dois mais antigos, do séc. IV dC); consta no Alexandrino (do séc. V dC); quanto ao Efremiano, os dois primeiros versículos do 1º capítulo da carta aos Efésios não sobreviveram, o que não permite saber se, originariamente, lá constava o endereçamento.

[40] “… Paulo então obteve a recompensa para sua paciente persistência, que o levou a ser preso sete vezes, sendo obrigado inclusive a fugir, e tendo sido também apedrejado. Após pregar tanto no Oriente quanto no Ocidente, obteve merecida fama por sua fé, tendo ensinado a justiça para todo o mundo, alcançando inclusive os extremos limites ocidentais, e, por fim, sofrendo o martírio, nas mãos dos governantes”. (São Clemente de Roma, “Carta aos Coríntios”, cap. 5o, parte).

[41] Cânon de Muratori, linhas 34 a 39: “E, além [desses escritos], os atos de todos os apóstolos foram escritos num único livro; para o excelentíssimo Teófilo, [de fato] Lucas compilou os eventos de que tinha conhecimento e que tinha testemunhado, já que omitiu tanto o martírio de Pedro quanto a partida de Paulo da Cidade [i.e., de Roma], quando então ele viajou à Espanha (…)”. No original: acta aute omniu apostolorum sub uno libro scribta sunt lucas obtime theofile comprindit quia sub praesentia eius sincula gerebantur sicuti et semote passione petri evidenter declarat sed et profectione pauli ab urbe ad spania proficiscentis.

[42] Ao que parece, a situação evoluiu de modo um tanto mais lento na comunidade de Roma – em si uma comunidade bem mais complexa, muito mais um “conjunto” de congregações de origens diversas, e que tinham, cada uma, um alto grau de autonomia, do que uma comunidade compacta. Os nomes presentes nas listas episcopais romanas como sucedendo a Pedro e Paulo na direção da Igreja ao longo do séc. I dC (quais sejam, São Lino, Santo Anacleto e São Clemente I – cobrindo o período de c.67 dC a c. 97 dC) representam os chefes do colégio presbiteral de Roma, os “supervisores” (episkopoi), que, “primeiros entre iguais”, falavam em nome de toda a comunidade. Ao que parece, a situação já estava começando a evoluir no sentido do estabelecimento dum episcopado monárquico explícito na comunidade romana na época de São Clemente I, mas é interessante notar que Santo Inácio de Antióquia, na carta que envia aos Romanos (ao contrário de suas outras cartas), não faz menção a um “bispo” – ou seja, por volta de 110-117 dC, o processo ainda estava longe de concluído, e os episkopoi que imediatamente sucederam a São Clemente I (Santo Evaristo, Santo Alexandre I e São Sisto I – cobrindo o período de c.97 dC a c. 125 dC) ainda eram mais “chefes do colégio presbiteral”, “primeiros entre iguais”, do que, propriamente, “bispos monárquicos”.

[43] P. N. Harrison, “The Problem of the Pastoral Epistles”, Londres, Oxford University Press, 1921; também, do mesmo autor, o artigo “The Authorship of the Pastoral Epistles”, Expository Times, vol. 67 (1955-56), págs. 77-81.

[44] James Phiip Lilley, “The Pastoral Epistles, a New Translation, with Introduction, Commentary and Appendix”, Edimburgo, T. & T. Clark Ed., 1901, pág. 48.

[45] J. D. James, “The Authorship of the Pastoral Epistles”, I e II, publicados no The Church Quarterly Review, vol. 63, edições respectivamente de outubro de 1906 (pág. 63ss) e de janeiro de 1907 (pág. 344ss).

[46] Donald Guthrie, “The Pastoral Epistles and the Mind of Paul”, The Tyndale New Testament Lecture, 1955, Londres, The Tyndale Press, 1956, 44 páginas. Tabela à pág. 41.

[47] Os “Padres Apostólicos” são autores cristãos (conhecidos ou não) que viveram entre os finas do séc. I dC e os meados do séc. II dC, e que tiveram contato imediato com a geração apostólica; representam, assim, um elo de ligação entre os Apóstolos (e a primeira geração cristã) e as gerações posteriores, que não tiveram diretamente contato ou experiência com esses pioneiros. São considerados como “Padres Apostólicos”: São Clemente, bispo de Roma (com sua “Carta aos Coríntios”, escrita c. 95/96 dC, embora Harrison também inclua a assim denominada “2ª Carta aos Coríntios”, atribuída a Clemente mas não de sua autoria, e datável de c. 140-160 dC), Santo Inácio, bispo de Antióquia (martirizado c. 110/115 dC, que escreveu “cartas” dirigidas aos Efésios, aos Magnésios, aos Tralianos, aos Romanos, aos Filadélfios, aos Esmirneus e a São Policarpo, bispo de Esmirna), São Policarpo, bispo de Esmirna (martirizado c. 155/56 dC, que escreveu uma carta aos Filipenses; juntamente com essa carta, conservou-se a narrativa do “Martírio de Policarpo”, considerada parte da coletânea dos Padres Apostólicos), Pápias, bispo de Hierápolis da Frígia (que viveu no primeiro terço do séc. II dC, e de cuja obra, “Interpretação dos Ditos do Senhor”, somente nos chegaram fragmentos), e Hermas (irmão de Sâo Pio I, bispo de Roma 142-157 dC, e autor do “Pastor”); também são listadas entre os Padres Apostólicos três obras anônimas, a “Didaquê” (um manual para as comunidades cristãs, muito antigo, que guardou uma série de instruções e costumes “arcaicos”, e que foi compilado quase certamente pelos fins do séc. I dC), a “Carta a Barnabé” (provavelmente do 1º quartel do séc. II dC, cujo autor, Barnabé, provavelmente alexandrino, foi confundido com o companheiro homônimo de São Paulo) e a “Carta a Diogneto” (provavelmente da 1ª metade do séc. II dC, e usualmente contada entre os Padres Apostólicos).

[48] Os “Apologistas” foram escritores cristãos que, aproximadamente entre c. 125-200 dC, escreveram tratados (“apologias”, i.e., “súplicas”), endereçados às autoridades, com a finalidade principal de as informar acerca da doutrina cristã, rebatendo os vários boatos e as muitas calúnias então circulantes. Incluem Aristides de Atenas (que dedicou sua “Apologia” ao Imperador Adriano, c. 124 dC), São Justino o Mártir (martirizado em 165 dC, em Roma, sob Marco Aurélio), autor de duas “Apologias”, uma endereçada ao Senado, outra ao Imperador Antonino Pio e a seus dois filhos, Marco Aurélio e Lúcio Vero (entre 147 e 161 dC), Melitão, bispo de Sardes (que apresentou sua “Apologia” ao Imperador Marco Aurélio no início de seu governo, c. 161 dC) e Tatiano o Assírio (morto c. 180 dC, discípulo de São Justino o Mártir, mas depois contado entre os hereges; autor duma “Exortação aos Pagãos”, de índole apologética); Harrison incluiu também as várias “cartas” de São Dionísio, bispo de Corinto, que floresceu sob o império de Marco Aurélio (governou 161-180 dC), mas que, a rigor, não foi um “apologista”.

22 respostas a “Algumas Reflexões sobre Critérios de Autenticidade de Textos Antigos, com Aplicação na Análise da Autenticidade de Algumas Cartas Paulinas”

  1. Gilberto Diz:

    Resposta do espírita analfabeto:
    .
    Falou, falou e não disse nada.
    .
    Resposta do espírita Xaveriano:
    .
    A amor infinito de Jesus, em sua imensa misericórdia, permitiu que o desapego e desprendimento às coisas terrenas do humilde Sr. Francisco Cândido Xavier nos trouxesse a caridosa revelação deste que é um dos mais elevados espíritos que guiam a nossa santa terra: Públio Lêntulus, o Emmanuel. Irmão e conselheiro de Chico, esse terno ser nos conforta, ameniza nosso sofrimento, e nos traz a revelação do amor de Deus aos nossos imerecedores corações. Negá-lo é negar a sua epístola, que verdadeiramente revelou ao mundo como era o primogênito de Deus. Negá-lo é negar a verdade que nos é humildemente concedida pelo terno Cândido. Não é por acaso, que “cândido” significa “verdadeiro, honesto, real”. Pois a verdade para nós revelada por esses inesquecíveis e imprescindíveis seres é a prova cabal do amor de um pai (Deus), pelos seus filhos (nós). Que as bênçãos e o perdão misericordioso do Senhor venha a vós neste momento em que estão tão perdidos em suas ciências vazia. Abraços calorosos. Estarão em nossas orações, e o perdão de Deus virá, com certeza. Se não nessa vida, em outras. Muito amor para os senhores.
    .
    Resposta do espírita pensante, inquisitivo, inteligente e ponderado:
    .
    Dãã!

  2. Gilberto Diz:

    Desculpem a brincadeirinha… Foi mal. É que o texto é erudito demais pra minha cabecinha dura e seu diminuto cérebro num sábado à tarde… Abraços a todos.

  3. Carlos Diz:

    Caro JCFF
    .
    Inicialmente parabéns pelo estudo detalhado procurando, por um lado, sublinhar a autenticidade das cartas de Paulo e, por outro, sustentar que o evangelho de Tomé, em que pese sua tradição e antiguidade, não deve definitivamente pertencer ao cânon. Afinal, como disse Irineu (Contra as Heresias), “não pode haver nem mais nem menos do que quatro evangelhos…”.
    .
    O ponto central dos comentários, quer me parecer, é propor que os evangelhos e as cartas de Paulo devem ser considerados, guardando suas especificidades, como fontes históricas. Sua posição está sem dúvida embasada por estudos minuciosos tal qual o postado no blog. Porém, como deve ser de seu conhecimento, essa não é a opinião de muitos estudiosos dos textos evangélicos. Eu poderia citar aqui a escola alemã de “Crítica de Formas Literárias” que provavelmente teve em Rudolf Bultman um de seus mais destacados expoentes, e que afirmou textualmente “que é uma quimera pretender encontrar (nos textos evangélicos) um núcleo histórico”. Evidentemente o Sr. não deve concordar com isso; de minha parte, acho que que a escola alemã fez sim uma critica robusta e certeira e que, ainda hoje, não deveria ser ignorada.
    .
    Aqui também eu reclamaria um pouco de rigor de sua parte ao argumentar pela historicidade dos relatos evangélicos. Voltamos a Publio Lêntulo que, como descrito em “A dois mil anos”, não guarda traço nos documentos históricos disponíveis. Se não há evidências históricas de Públio Lêntulos, também não há evidências históricas, por exemplo, do “massacre dos inocentes” por Herodes descrito em Mateus. Se aceitamos que Publio Lêntulos membro do conselho de guerra de Tito não existiu, por que deveríamos aceitar o relato do evangelista como historicamente procedente? Quer me parecer que Mateus, nessa passagem, está muito mais interessado em vincular o nascimento de Jesus a um anuncio profético e, pior, não se preocupando em incluir no seu relato profecias não identificadas na bíblia, como “ele será chamado nazareno” (Mt, 2:23). Não me parece absurda, nesse caso, a interpretação dos que consideram o evangelho de Mateus afim os gentios sem muita familiaridade do a história dos Hebreus.
    .
    Evidentemente que, como o Sr reconhece, o blog não é a sala apropriada para a discussão detalhada desses temas. Devo confessar ainda que embora considere o assunto fascinante, não sou propriamente um estudioso; talvez mais um leitor atento e sem maiores pretensões, como frisei em comentários anteriores.

  4. Gilberto Diz:

    Resposta do espírita que ouviu falar de alguém que conhece um cara que tem um primo cuja esposa já foi vizinha de um sujeito parceiro de longa data de um colega que conheceu na escola em que estudou o sobrinho de um homem que já leu a Bíblia:
    .
    E em Êxodo, 21:29, dizem que se um boi matar alguém, o boi deve ser apedrejado e o dono dele morto. Como responde a isso? Heim? Não sabe, né? Te peguei! Te peguei! Paulo não existiu, Paulo não existi-iu. Lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá. Seus carolas espirofóbicos!!! Vão arder nos umbrais!!! Com capoeira no Posto 12 e tudo!!!!!!

  5. Biasetto Diz:

    Com tu és maluco, Gilberto!
    Eu gosto de gente maluca…

  6. Biasetto Diz:

    Gilberto,
    O Rafael acha que ser pobre é bom pra garantir um lugar no céu.
    Então, nós que somos fã da Met-Art, temos uma chance, porque somos pobres. Bem, eu pelo menos né? Você eu não sei.
    Se eu for pro Rio – só passei duas vezes aí – quero conhecer a turma da capoeira do posto 12 do Leblon. Vamos juntos. Enquanto o Vítor joga capoeira, eu e você ficamos comendo o churrasquinho do teu tio, ou de alguém que substituiu ele aí.

  7. José Carlos Ferreira Fernandes Diz:

    Prezado sr. Carlos:

    ### Comentando sua mensagem (meus comentários após “###”):

    Inicialmente parabéns pelo estudo detalhado…

    ### Muito grato.

    …procurando, por um lado, sublinhar a autenticidade das cartas de Paulo e, por outro, sustentar que o evangelho de Tomé, em que pese sua tradição e antiguidade, não deve definitivamente pertencer ao cânon. Afinal, como disse Irineu (Contra as Heresias), “não pode haver nem mais nem menos do que quatro evangelhos…”.

    ### O Evangelho de Tomé não tem “tradição” alguma; é um pastiche gnóstico de meados do séc. II dC (na melhor das hipóteses), feito a partir de retalhos dos Evangelhos canônicos. O texto de Maier, embora eu tenha citado dele apenas alguns trechos, já mostra isso. O mesmo se diga para todos os outros assim chamados “evangelhos alternativos”: foram ou pastiches dos evangelhos canônicos (convenientemente “modificados” a fim de defender uma “agenda” específica), ou então procuravam cobrir “lacunas” dos evangelhos canônicos (p.ex., o Evangelho de Pedro, ou todo o conjunto de textos do “ciclo de Pilatos”). E meu estudo não tem nada a ver com o cânon do Novo Testamento; essa é uma questão principalmente filosófico-teológica, embora, claro, baseie-se também em evidências históricas. Os Sinópticos são os Evangelhos mais antigos que sobreviveram, se é que não foram os primeiros; a tradição unanimemente os aponta como tendo sido escritos por Apóstolos (Mateus), ou por secretários de Apóstolos (Marcos, de Pedro; e Lucas, de Paulo); e o Evangelho de João, embora posterior, tem origem apostólica também unanimemente atestada pela tradição. Teria sido muito mais fácil para a Igreja (eliminando assim quaisquer “inconsistências internas”) quer escolher um só Evangelho, quer editar os Evangelhos, “apagando” as inconsistências, quer “harmonizar” os Evangelhos num só texto (como, aliás, Tatiano o Assírio fez com o seu “Diatessaron”); mas nada disso foi feito – com suas especificidades e, mesmo, inconsistências, foram esses quatro os Evangelhos acolhidos. Deve ter havido razões bastante sérias para isso, não?

    O ponto central dos comentários, quer me parecer, é propor que os evangelhos e as cartas de Paulo devem ser considerados, guardando suas especificidades, como fontes históricas.

    ### Correto. Como fontes históricas confiáveis. Guardando suas especificidades, e não esquecendo, em absoluto, as suas dificuldades – repito o que disse: os Evangelhos não são SÓ História, mas são TAMBÉM História.

    Sua posição está sem dúvida embasada por estudos minuciosos tal qual o postado no blog.

    ### Assim espero; é a minha obrigação.

    Porém, como deve ser de seu conhecimento, essa não é a opinião de muitos estudiosos dos textos evangélicos.

    ### Tudo bem. A questão é: baseados em quê? Em que tipo de estudos? E, principalmente, em que tipo de achados arqueológicos, documentais, manuscritos, etc.? Alguém já encontrou algum fragmento papiráceo do documento “Q”? Ou tudo não passa dum amontoado de hipóteses, sem confirmação?

    Eu poderia citar aqui a escola alemã de “Crítica de Formas Literárias” que provavelmente teve em Rudolf Bultman um de seus mais destacados expoentes, e que afirmou textualmente “que é uma quimera pretender encontrar (nos textos evangélicos) um núcleo histórico”.

    ### Por que é uma “quimera”? Que tipo de estudos o sr. Bultman fez? Estilísticos? “Formas literárias”? E as evidências documentais, arqueológicas, papirológicas, epigráficas, etc.? Onde estão? Novamente: mostrem-me um fragmento de “Q”, convenientemente datável em termos caligráficos! Eu creio que mostrei, em meu texto, as tremendas limitações que estudos baseados apenas, ou principalmente, em pressupostos de “crítica textual” e de “análise estilística” possuem…

    Evidentemente o Sr. não deve concordar com isso; de minha parte, acho que que a escola alemã fez sim uma critica robusta e certeira e que, ainda hoje, não deveria ser ignorada.

    ### Meu caro sr. Carlos, eu procuro sempre não ignorar opiniões divergentes; mas elas têm que estar minimamente embasadas para serem levadas a sério. Logo após minha primeira leitura da “psicografia” “Há Dois Mil Anos”, já lá se vão muitos anos, os erros lá presentes imediatamente me saltaram aos olhos (eu, na época, fiquei estupefato; e pensei: “mas então é ISSO que os espíritas lêem, e que consideram um grande livro, historicamente verdadeiro?!?’; eu poderia ter escrito, em poucas semanas, ou, na pior das hipóteses, em poucos meses, um texto apontando todos os erros e contradições; mas não o fiz. Continuei pesquisando por vários anos, não para “achar mais erros”, mas sim para ter certeza de que aqueles que havia encontrado eram, de fato, erros – pesquisei demoradamente, inclusive, em todas as fontes a que pude ter acesso, tentando encontrar um “Públio Lêntulo”. E nada… Mas, se o sr. crê que a escola alemã tem uma crítica robusta, sinta-se à vontade para desenvolver esse tema. De repente, eu perdi alguma coisa, mesmo. O fato é que não encontrei nenhuma substância (substância efetiva) nesse tipo de estudo. Todos me parecem, ora mais, ora menos, teorias mirabolantes construídas a partir de hipóteses de trabalho não demonstradas, ou pobremente demonstradas, dentro duma “agenda” nitidamente anti-eclesiástica, ou mesmo anti-religiosa…

    Aqui também eu reclamaria um pouco de rigor de sua parte ao argumentar pela historicidade dos relatos evangélicos. Voltamos a Publio Lêntulo que, como descrito em “Há dois mil anos”, não guarda traço nos documentos históricos disponíveis.

    ### Sim. E nem é mencionado, direta ou indiretamente, por NINGUÉM em quatorze ou quinze séculos. Bem ao contrário de Jesus, ou de Paulo…

    Se não há evidências históricas de Públio Lêntulo, também não há evidências históricas, por exemplo, do “massacre dos inocentes” por Herodes descrito em Mateus.

    ### Em termos. “Públio Lêntulo” teria sido um senador duma antiga e nobre casa da aristocracia patrícia, bisneto por linha paterna de Lêntulo Sura, o conspirador catilinário, contemporâneo de Cristo, partidário dos Flávios, e com destacado papel no “conselho de guerra” de Tito, por ocasião da guerra judaica. Não é pouca coisa; no entanto (nunca é demais repetir isso), não é citado por ninguém, direta ou indiretamente, mesmo “en passant”, por quatorze ou quinze séculos; e o seu pretenso “relatório” é uma fraude que apareceu pelos meados do séc. XIV dC, inicialmente sem nome, no “prólogo” das “Meditações sobre a Vida de Cristo”, do monge cartucho Ludolfo. Quanto ao “massacre dos inocentes”, teria ocorrido nos últimos tempos do governo de Herodes o Grande (c. 7-5 aC); não é citado por Flávio José, mas é citado por um dos evangelistas, Mateus, na sua “Narrativa da Infância”, que, provavelmente, foi um adendo aos “loghia” em aramaico que, primitivamente, constituíram o “núcleo” do Evangelho de Mateus. Essa “Narrativa da Infância” pode ter sido acrescentada depois, talvez pelo próprio Mateus, ou então pela “escola maetana”, provavelmente de Antióquia da Síria; talvez mesmo após o ano 70 dC, mas, de qualquer modo, antes do final do séc. I dC. O sr. nota a diferença? Num, quatorze a quinze séculos sem nada; noutro, um lapso de 60 a 90 anos. Isso já é uma boa diferença, não? Não estou aqui analisando a efetiva historicidade da Narrativa da Infância de Mateus – eu inclusive deixei claro que as duas Narrativas da infância de Jesus que possuímos nos Canônicos (a de Mateus e a de Lucas) são problemáticas, e virtualmente inconciliáveis. Mas, ainda assim, não há como comparar a “carta” de Lêntulo e a narrativa da “Matança dos Inocentes”. Uma é claramente uma fraude; a outra é plausível (inclusive tendo em vista o caráter de Herodes), embora, claro, haja uma boa dose de dificuldades, do ponto de vista estritamente da análise histórica, em a aceitar (assim como as duas Narrativas da infância) tal como está.

    Se aceitamos que Publio Lêntulo membro do conselho de guerra de Tito não existiu, por que deveríamos aceitar o relato do evangelista como historicamente procedente?

    ### Creio que já respondi a essa sua objeção no item anterior. Não se pode aceitar que Públio Lêntulo tenha participado do conselho de guerra de Tito simplesmente porque temos a composição COMPLETA do referido conselho, e lá não consta nenhum Lêntulo; e mais, temos como rastrear, historicamente, todos os membros desse conselho. Sobre o “Massacre dos Inocentes”, temos uma narrativa numa fonte de 60 a 90 anos posterior aos acontecimentos, dentro duma “Narrativa de Infância” aposta a uma coleção de “ditos” do Senhor; tal Narrativa da Infância pode perfeitamente ter conservado lembranças genuínas da época do nascimento de Jesus (incluindo a “matança dos inocentes”? Talvez…), mas foi, de qualquer modo, bastante “trabalhada”, teologicamente. Não tenho nenhum problema em admitir isso; lembre-se (novamente, é importante frisar), as duas Narrativas da infância (a de Mateus e a de Lucas) são textos colhidos (e bastante retrabalhados) de (poucas) fontes orais, já bem distanciadas dos fatos, quando se quis uma narrativa “completa” da vida terrestre de Jesus, que seria iniciada, claro, com o seu nascimento (nem Marcos, e nem João, e provavelmente nem o primeiro Mateus, se importaram com isso). Cada uma dessas Narrativas de Infância colheu “dados” de fontes distintas e, basicamente, a única coisa que têm em comum é assegurar que Jesus nasceu em Belém da Judéia, na época de Herodes o Grande, embora tenha sido criado em Nazaré da Galiléia. Novamente: não estou aqui me pronunciando acerca da historicidade da “Matança dos Inocentes”, mas apenas mostrando que há uma enorme distância, mesmo em termos de plausibilidade histórica, entre essa narrativa e a “carta” de Lêntulo…

    Quer me parecer que Mateus, nessa passagem, está muito mais interessado em vincular o nascimento de Jesus a um anuncio profético e, pior, não se preocupando em incluir no seu relato profecias não identificadas na bíblia, como “ele será chamado nazareno” (Mt, 2:23).

    ### É perfeitamente possível, embora não com a intenção que o sr. dá a entender. O autor dessa “Narrativa da Infância” (quer fosse o próprio Mateus, quer fosse a “escola mateana” de Antióquia) trabalhava com o que tinha, com os fiapos de informação de que dispunha acerca de acontecimentos já bastante antigos e virtualmente esquecidos (e, até então, não considerados importantes a ponto de compor o anúncio da “boa nova”); é óbvio que procurou entendê-los, e concatená-los, à luz das profecias messiânicas do Velho Testamento. Ele pode ter “inventado”, sim, as narrativas para “encaixá-las” nas profecias; mas também pode ter lido acontecimentos “reais” e, meditando sobre eles à luz das promessas messiânicas, ter “encontrado” as respectivas citações veterotestamentárias. Novamente: “A” gerou “B”, ou “B” gerou “A”? Ou “A” e “B” foram ambos gerados por “C”? O sr. começa a entender agora os becos sem saída aos quais somos levados a partir do uso indiscriminado da “crítica textual” e da “análise estilística”? Como, para essas duas Narrativas de infância (tanto a de Mateus quanto a de Lucas), os autores não dispunham praticamente quer de testemunhas, quer de grandes informações, o grau de “estofamento” que utilizaram (e totalmente dentro das convenções da historiografia antiga, como aliás eu já comentei neste “blog”) é tal que faz delas as menos “historicamente verificáveis”, mesmo “historicamente plausíveis”, das partes dos Evangelhos canônicos (daí meu “caveat”: dentro de suas especificidades…). Mas isso não lhes tira TOTALMENTE o valor histórico (ao contrário da “carta” de Lêntulo, que, como testemunho da pretensa “época” em que teria sido escrita, não tem valor histórico NENHUM. Zero. Nihil).

    Não me parece absurda, nesse caso, a interpretação dos que consideram o evangelho de Mateus afim os gentios sem muita familiaridade do a história dos Hebreus.

    ### Discordo. E tenho bons motivos para isso. Peço-lhe apenas que me permita não os expor por agora, já que tenho outras “dívidas” para com este “blog”, que devo quitar antes…

    Evidentemente que, como o Sr reconhece, o blog não é a sala apropriada para a discussão detalhada desses temas. Devo confessar ainda que embora considere o assunto fascinante, não sou propriamente um estudioso; talvez mais um leitor atento e sem maiores pretensões, como frisei em comentários anteriores.

    ### Nem eu sou um especialista nisso; sou apenas um pesquisador diletante, e “descanudado”. O Vítor já mostrou muita tolerância postando este meu texto aqui; mas ele destina-se, principalmente, a mostrar que não utilizo “dois pesos e duas medidas” quando se trata dos textos neotestamentários; e também a mostrar que há sólidas bases, sim, para se considerar tanto os Evangelhos (e os “Atos”) como peças históricas, e as cartas de Paulo (e as demais) como autênticas.

    ### Sds,

    JCFF.

  8. Gilberto Diz:

    Depois de ler os últimos comentários, o Tico morreu e o Teco tá se estribuchando…

  9. Carlos Diz:

    Caro JCFF,
    .
    Estamos de acordo ao considerar que não há evidência histórica de um Públio Lêntulus tal como narrado em “A dois mil anos”. Nesse aspecto, entendo que sua contribuição aqui tem sido decisiva. Temos visões diferentes, no entanto, quando o Sr afirma que os evangelhos são documentos históricos. De minha parte, considero fundamentados os estudos que mostram os evangelhos como textos tardios que anunciam uma “boa nova” destinada a salvação da humanidade; basicamente propaganda, concluem esses estudos. Entendo, e respeito, a opinião dos que vem no NT eventos históricos que narram a vida, morte e ressurreição de um salvador. Aqui possivelmente entram reflexões de natureza mais íntima que nos fazem pender uma um lado ou outro e, inevitavelmente, olhar para essa ou aquela informação como relevante, ou não.
    .
    Quanto a mostrar que o evangelho de Mateus não é bem aquilo comentei anteriormente, não há realmente necessidade de réplica de sua parte. Fiz um breve comentário apenas para realçar que fossemos aceitar unicamente os fatos que apresentem confirmação histórica independente, então teríamos que ser reticentes, a bem do rigor metodológico, no que narra Mateus (e Lucas) sobre o nascimento de Jesus.
    .
    Finalmente um último comentário (antes do xilique definitivo do Gilberto). O viés “anti-eclesiástico” a que o Sr se refere não difere do viés “pró-eclesiástico” encontrados nos estudos dessa natureza… Infelizmente não há como fugir disso.

  10. Marcelo Diz:

    Caro Sr. Jose Carlos.
    .
    Novamente somos presenteados pelos seus textos neste blog. (por favor não tome este comentário como uma ironia)
    .
    Ao citar Raymond Brown fiz apenas uma provocação diante de uma reação sua que considerei um tanto quanto visceral (ou como se diz “caiu na pilha”) à uma falácia argumentativa (falácia dos grandes números) do Sr. Pinheiro Martins ou do Bart Ehrman (cujo mentor possuia conclusões diferentes dele), pois no próprio livro citado (em outras páginas que não mencionei) R.E. Brown tece algumas considerações (não tão detalhadas)que são semelhantes às suas. E até outras que não foram mencionadas pelo sr.
    .
    O fato de um argumento ser defendido por um grande número de pessoas (falácia dos grandes números) sem ou com canudos (falácia da autoridade) é totalmente irrelevante. O que vale é o argumento em si e as suas evidências.
    .
    Creio que agora as falácias foram adequadamente respondidas.
    .
    Prometo que não vou mais perturbá-lo (pelo menos por enquanto rsrsrsrs).
    .
    Um abraço.
    .
    Marcelo

  11. Biasetto Diz:

    Tico e Teco entraram em coma…

  12. Gilberto Diz:

    Se o Carlos e o Biasetto procurassem ver o Catolicismo pela ótica pragmática e objetiva dos Jesuítas, acho que eles seriam fortes candidatos a se converterem. Eu já tô perdido mesmo. Ovelha desgarrada…

  13. Biasetto Diz:

    Gil,
    Tico e Teco síram do coma, e têm uma grande revelação a fazer: passaram por uma eqm!

  14. marcelo amari Diz:

    Tico e Teco estão se transformando em Comichão e Coçadinha!
    http://www.youtube.com/watch?v=fdjs1kWdhyY

  15. Biasetto Diz:

    Que maluquice esta aí, Marcelo!
    Oh! nesta linha de doideira aí, tem estes desenhos aqui:
    http://www.youtube.com/watch?v=RO7Q1tMGE7g
    .
    Um abração!

  16. marcelo amari Diz:

    Biasetto,
    Muito bom!
    Ren and Stimpy tambem e legal.
    Se tiver paciencia,assista:
    http://www.youtube.com/watch?v=6oula2tg3gQ&feature=related
    Um abraco!

  17. Rafael Maia Diz:

    Gilberto respondido a sua ultima questao

  18. Gilberto Diz:

    Beleza!!!

  19. Biasetto Diz:

    Vítor,
    Estou concluindo um artigo, vamos ver se você vai aprová-lo!
    Entra no face, preciso conversar contigo.
    .
    De uma colega espírita:
    – Estou feliz da vida! Eurípedes, o filho adotivo de Chico Xavier revelou ontem, no programa do SBT “Conexão Repórter” (Roberto Cabrini) que Chico Xavier revelou a ele, ser a reencarnação de Allan Kardec. Baseada em observações, escrevi isto em meu livro “Os Pecados dos Espíritas”.
    .
    Esta colega já participou aqui do blog, o Vítor, “adora” ela.
    Vocês se concluem.

  20. Biasetto Diz:

    * Vocês concluem.

  21. Gilberto Diz:

    Eu vi o programa, e o filho de Xavier disse que Chico revelou ter sido Platão, Santo Inácio, José Bonifácio e Allan Kardec!!!!

  22. Rafael Maia Diz:

    Revelou que era o Enéas tb, ops, o Enéas nao podia, porque viveram no mesmo tempo 🙂

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