Ana Benedita Milane: médium, candidata a vereadora e picareta

Esse artigo reproduz a (excelente!) investigação feita pela jornalista Paloma Oliveto em 2002 em Unaí (Minas Gerais) com uma senhora chamada Ana Benedita Milane que dizia encarnar três espíritos (doutor Fritz, Zé Arigó e Doutor Ricardo Last de Layla). Essa senhora fazia cirurgias nas pessoas enfiando tesoura e faca, não cobrava nada, mas conseguiu ficar “famosa” e respeitada nessa cidade pequena, que fica perto de Brasília, onde Paloma trabalha. Além isso, aceitava colaborações e vendia “remédios” (garrafadas) aos operados. São duas reportagens, a 1ª não está digitalizada com as fotos, mas a 2ª sim. Descobriu-se que ninguém que foi acompanhado pela reportagem sarou e, pelo contrário, todos pareciam estar pior, exceto uma menina muda, que estava igualzinha. Quando a segunda matéria saiu, Paloma informa que o Ministério Público resolveu investigar a denúncia (a segunda reportagem já tinha tom de denúncia), e nesse momento a médium fugiu da cidade. Mas a história não acaba aí! Em 2008 a médium se candidatou a vereadora para o município de Piracanjuba, no estado de Goiás, com o nome de urna de “Ana Benzedeira”. Então, dado o histórico de exercício ilegal da medicina dessa mulher, por favor, não votem nela nunca! Ela não tem ficha limpa!

A seguir, as reportagens.

ana benedita milane Ana Benedita Milane

1ª REPORTAGEM

(publicada no Correio Braziliense em 14/02/2002, caderno Coisas da Vida, capa e p. 3.)

Paloma Oliveto (textos)

Kleber Lima (fotos)

São dez e meia da manhã e a casinha azul de número 2.224 no Bairro Divinéia, em Unaí (MG), já está apinhada de gente. Faz muito calor – calor forte, grudento. Mas ninguém parece se importar. De um Santana branco, sai dona Ana. Vestida como médica, batom vermelho na boca, ela surge, sorridente. É uma correria: todos querem abraçá-la. Paciente, dona Ana dá boas-vindas aos que se aproximam. Afaga cabeças, aperta mãos. Uma hora depois, as mãos de dona Ana estão cravando tesouras e seringas nas pessoas – aquelas mesmas que formavam um aglomerado na casinha azul e pouco se importavam com o calor grudento. Mas as mãos não serão mais de Ana Benedita Milani, nascida há 51 anos na pequena Santa Cruz de Goiás. Serão de Ricardo Last de Layla, médico alemão que teria trabalhado na equipe do doutor Fritz, no início do século passado.

Horas antes de emprestar seu corpo ao médico, dona Ana reza o terço e canta uma música composta pelo doutor Ricardo. Já no hospital espiritual improvisado, ela reúne as pessoas em torno de um altar montado com imagens de santos católicos. Um Pai Nosso, duas Ave-Marias, dois Glórias. A médium e ialorixá canta, acompanhada pelo povo: – Meu Senhor, vem curar, vem curar meus irmãos com os poderes de Jesus Cristo, iluminai os meus irmãos. Amém, oh, Senhor, amém, oh, meu Deus, amém, oh, meu Senhor… A música é seguida por outra oração: “Glória a Nossa Senhora Aparecida, glória ao Divino Espírito Santo”. O ritual está por terminar. Vozes desafinadas, mas cheias de contrição, entoam Maria de Nazaré. Então dona Ana vai embora. O corpo fica.

Doutor Ricardo chega, falando com voz grossa um idioma incompreensível. Num portunhol com forte sotaque anglo-saxão, diz: “Que a paz abençoe a todos vocês”.  Logo depois pede que uma das pessoas limpe sua boca: “Homem não usa batom”, explica. Doutor Ricardo é brincalhão. Pede desculpas por não falar direito “a língua de vocês”. O suor escorre no rosto, mas ele diz que sente frio. Puxa uma mulher: “Você tem três filhos vivos e um morto. Está com um problema na bacia e por isso sua perna encurtou. Sente muitas dores, não é?”. Maria de Fátima de Deus, 44 anos (com aparência de 60) estava lá pela primeira vez. Olhava o médico com surpresa. E balançava a cabeça, como que confirmando o que ele dizia.

Doutor Ricardo segue fazendo os diagnósticos ali mesmo, de pé, perto do altar. Brinca com os pacientes. Quando alguém não entende o que diz, Walterson Rodrigues, 40 anos, namorado de dona Ana, faz as vezes de intérprete. Galanteador, o médico interrompe a consulta e “dá uma cantada” na repórter: “Muito bonita, muito bonita, você. Faz meu tipo”. Vira de costas e continua atendendo às mais de 60 pessoas que estão ali.

De novo, doutor Ricardo pára o que está fazendo e interpela a repórter: “Por que você está bebendo isso?” (Uma garrafa de Pepsi). “Porque estou com muita sede, respondo.” “Não pode beber isso.Você é muito magra, vai ficar mais. Não pode, vai ficar feia. E você é linda.” “Danke Danke sehr (muito obrigada)”, agradeço, em alemão. Doutor Ricardo, o médico que nasceu na Alemanha, parece não entender o que eu disse: “Gute, Gute”, diz, olhando para o alto. Ri e completa, em português: “Você pode falar em qualquer língua, que eu entendo. Vamos lá, começar as cirurgias.”

A sala é pequena e insuportavelmente quente. São dois metros quadrados, divididos por quatro auxiliares de enfermagem, Walterson, um ajudante, o fotógrafo e a repórter do Correio. E o doutor Ricardo, claro. Numa mesinha, os instrumentos cirúrgicos: três tesouras de ponta fina, álcool, gaze, luvas e esparadrapo. As tesouras foram trazidas pelos pacientes. Entra o primeiro. É o agricultor Juvenite Gonçalves Pereira, que não diz a idade, mas deve beirar os 60 anos. Ele é surdo do ouvido esquerdo, escuta pouco com o direito. Já fez cirurgia espiritual há três meses. Mas foi para tratar do coração, que doía muito. A mando de dona Ana, acendeu uma vela, colocou um copo d’água na cabeceira da cama. “Deu um relâmpago e senti uma coisa muito forte em mim. A dor passou”, relata. Agora, ele tenta se livrar da surdez. Antes das 9h, seu Juvenite, católico praticante, já estava na casinha azul. Ele não sabia como seria operado: “Não tenho medo, Deus ajuda. Meu ouvido está muito inchado, o canal fecha. Já gastei dinheiro com médico, fui a Brasília, e não adiantou.”

Seu Juvenite foi operado com uma tesoura. Bastante calmo, doutor Ricardo enfia o instrumento duas vezes no ouvido esquerdo e uma no direito. A tesoura sobe e desce. Não sai nenhuma gota de sangue. Em dois minutos, acaba a cirurgia. O médico brinca: “O senhor namora ainda?”. O paciente diz que não, balançando a cabeça. “O senhor usa aparelho para surdez, não é?”. “É, mas hoje eu não trouxe.” “Você não vai mais precisar  dele”. As auxiliares de enfermagem testam o resultado da cirurgia: “Como é seu nome?”. Seu Juvenite não escuta. Coloca a mão na orelha e pergunta: “Hã?”. Doutor Ricardo culpa os chumaços de algodão, colocados no ouvido do paciente.”Daqui a sete dias o senhor volta para eu ver como está”. Antes de sair, o agricultor fala com a repórter, que pergunta se ele sentiu dor. Seu Juvenite demora a ouvir, é preciso repetir duas vezes. “Ah, uma dorzinha muito pouca”.

A próxima paciente não vai sentir uma dorzinha pouca. Ela vai sofrer bastante. A mulher tem um tumor na via nasal e também é operada com tesoura. Doutor Ricardo enfia o instrumento com força nas duas narinas. A paciente chora de dor, está sufocando. O médico parece nervoso, grita alguma coisa (indecifrável) em outro idioma, pede uma tesoura maior, arranca a dentadura da mulher. Os ajudantes rezam com os olhos fechados. O sangue começa a jorrar por todos os cantos. Mancha a roupa e o sapato roto da paciente, suja o chão, respinga nas auxiliares. “Você está bem, só está com medo”, diz um doutor Ricardo mais calmo. “Você foi a mulher mais forte do Brasil”, elogia. A paciente levanta-se sem ajuda, com dois chumaços de algodão nas narinas. Diz não se sentir tonta, embora o rosto pareça feito de cera, tão branco que está.

O médico troca as luvas. Prepara-se para a próxima cirurgia, que vai durar menos de cinco minutos. “Você tem angina, vou fazer uma ponte-safena. Mas não se preocupe porque não vou cortar seu coração”, diz à paciente, que está muito calma. Doutor Ricardo levanta o seio esquerdo e começa a cortar a pele da mulher. Não sangrou. “Pronto?”, pergunta a paciente, espantada. Pronto. Ela não sentiu dor.

Antes de as cirurgias começarem, as pessoas são anestesiadas espiritualmente pelo doutor Fritz, contou dona Ana, quando ainda não estava incorporada. “Mas quem faz a anestesia é o Espírito Santo. O doutor Fritz é só um instrumento de Deus.” E por que tem gente que não sente nada, enquanto outros parecem sofrer tanto? “Depende da fé. Quem tem fé não tem dor”, ela explicou. Passam-se mais duas cirurgias. Coisas simples: bicho-do-pé e garganta inflamada. A próxima paciente tem úlcera. A doméstica Sandra Aparecida, 35 anos, sente o estômago queimar, já tomou vários remédios, mas não se livra da dor. Ela é católica, mas acredita na cirurgia espírita. “Se for fazer bem, Deus não se importa”.

Horas antes da operação, Sandra também não faz idéia do que vai encontrar na salinha de dois metros quadrados. Ela encontra duas seringas de agulha grossa, que o doutor Ricardo enfia na sua barriga. A operação dura pouco. Quarenta minutos depois, a paciente ainda está na casa, recuperando-se. “Na hora não senti nada, mas agora parece que minha barriga está repuxando”, contou. Na sala, entra um rapaz, acompanhado pela mãe. Na consulta que fez com dona Ana, na semana anterior, ele soube que estava com um ovo de solitária no cérebro. A cirurgia é feita em duas partes: na primeira, doutor Ricardo enfia uma tesoura na cabeça do rapaz. Na testa, ele injeta uma agulha. Até essa hora, o paciente não parece sentir dor. Não há sangue. A segunda fase da cirurgia é agonizante. É difícil segurar a ânsia de vômito. Doutor Ricardo coloca a mão inteira na goela do rapaz. Ele sufoca, caem lágrimas. Na gaze, uma bolinha amarela: “É o ovo”, explica o médico.

As quatro próximas cirurgias correm bem. Doutor Ricardo atende casos de hérnia, catarata, próstata (enfia uma seringa na glande do paciente. “Não doeu” ele disse, embora a expressão denunciasse o contrário) e, com a tesoura, tira esporão do pé de um homem.

O médico não está cansado. Brinca com todos, reclama das enfermeiras: “Vocês estão devagar demais” e chama os próximos da fila. São dois irmãos: Eliene e Márcio Mota Fernandes, 25 e 23 anos, respectivamente. Ambos são bóias-frias e receberam de dona Ana, na semana anterior, o mesmo diagnóstico: solitária. Os médicos dos hospitais dizem que Márcio tem epilepsia, há anos toma o remédio Gardenal. Mas agora ele acredita que as crises fortes que o fazem se debater no chão e enrolar a língua não são culpa da doença neurológica. “Eu tenho é solitária”, acredita. Tanto que parou de tomar o Gardenal.

Eliene é a primeira a ser operada. Doutor Ricardo tira os supostos ovos de solitária com a mão. A garota engasga, cospe, fica trêmula. Mas se levanta e assiste à cirurgia do irmão. “Eu opero você, mas você não põe mais maconha na boca”, avisa o médico a Márcio. O rapaz ri, constrangido, e promete não fumar mais. O procedimento é igual ao da irmã. Eles saem juntos e vão se recuperar no quarto dos fundos.

A penúltima paciente é filha de uma das assistentes de dona Ana. A garota é muda. Com um crucifixo no pescoço, ela entra, assustada. Doutor Ricardo corta um pedaço da sua língua. Ela começa a chorar e gritar desesperadamente. “Pronto, agora você pode falar”, diz sua mãe. Falta apenas uma cirurgia. O médico pede que a repórter e o fotógrafo do Correio saiam da sala. “O paciente está constrangido, não quer que vocês vejam”. Lá fora, muita gente ainda aguarda uma consulta com doutor Ricardo. Os que foram operados recuperam-se numa sala. Eles parecem bem, não sangram mais, apesar de parecerem assustados.

São 13h15. A última cirurgia termina. As pessoas começam a entrar na salinha para se consultar e marcar operações. Às 14h, doutor Ricardo recebe a repórter. Nos despedimos. Ele me pega pela cintura e me levanta do chão. “Volte aqui na semana que vem para eu curar sua miopia e seu astigmatismo”, ele diz. Eu não sou míope nem tenho astigmatismo. “I love you, vou estar sempre ao seu lado. Quando precisar de mim, é só me chamar. Vá com Deus, ele te ama, quer te ver feliz.”  Assim seja, doutor Ricardo.

Foi aos 6 anos que dona Ana descobriu que era médium. A mãe teve um derrame. Desesperado, o pai bradou aos céus: “Se existir esse Deus mesmo, que ele venha e cure minha mulher”. Dona Ana conta que ficou de pé e começou a passar instruções para o pai, a mãe sarou.

Desde então, a vida da médium tem sido atender aos doentes. “Não sou eu quem cura, é o Espírito Santo”, diz. Ela acredita que recebe três espíritos: o doutor Fritz (“Muito apegado comigo”), Zé Arigó (o primeiro médium brasileiro a incorporar o doutor Fritz) e o médico alemão Ricardo Last de Lyla (“Ele é bonitão, grisalho e com olhos azuis”, descreve).

Dona Ana conta que os três espíritos a acompanham 24 horas por dia. Mas há momentos em que ela pede privacidade. E eles obedecem. O lugar de atendimento é a cidade de Piracanjuba, em Goiás. Mas, a cada três meses, a médium vai para Unaí, onde passa um pequeno período. “Em 2000, eles me pediram para ficar cinco anos por aqui. Minha missão é expulsar os macumbeiros, que estavam se espalhando demais pela cidade”. Doutor Fritz odeia macumba e adivinhações. E também preocupa-se muito com as drogas.

Médium nasce médium, explica dona Ana, que nunca freqüentou centros espíritas nem leu nenhum livro kardecista. Os espíritos são amigos de quem escolhem para incorporar. Mas se enfurecem se o médium aproveita para enriquecer em cima do poder de cura. “O doutor Fritz leva todos os que usam o nome dele para tirar dinheiro do povo”, conta.

Dona Ana cobra R$ 15 por consulta. A cirurgia é de graça. Ela vive da pensão do ex-marido e garante que o que ganha com as consultas repassa para instituições de caridade. Para sustentar as 26 crianças que adotou, conta com a ajuda do namorado, o bancário Walterson Rodrigues.

Os maiores gastos dos pacientes são com os remédios, prescritos pelos espíritos. “Mas quando eles não têm como pagar, colocam na conta do doutor Ricardo”, conta Walterson, que assume as dívidas do espírito. O médico alemão incorpora dona Ana às quintas-feiras. No resto da semana, ela se divide entre Zé Arigó e doutor Fritz. Quando eles assumem seu corpo, dona Ana conta que sente um baque e se vê num lugar cheio de flores.

A missão está longe de acabar. A médium diz que doutor Ricardo só deixará de se manifestar em 2008. Zé Arigó, em 2009, e o doutor Fritz vai embora um ano depois. Até lá, dona Ana continuará operando com tesouras e seringas.

Quem é dona Ana? Quem é doutor Ricardo? Difícil dizer. Muitas coisas que o espírito falou sobre a vida pessoal da repórter e do fotógrafo do Correio estavam equivocadas. Ele também não compreendeu uma expressão alemã usual, e o primeiro paciente pareceu sair mais surdo do que era antes da operação. Quem presenciou a sessão de cirurgias espirituais naquela quinta-feira, 7 de fevereiro, viu coisas que fogem da normalidade. E que talvez possam ser explicadas pela fé de um povo sofrido, desenganado, cansado de peregrinar por médicos e hospitais. A eles, só resta uma pessoa em quem confiar e acreditar: Deus.

2ª REPORTAGEM

(publicada no Correio Braziliense em 17/02/2002, editoria de Brasil, p. 10.)

Paloma Oliveto (textos)

Kleber Lima (fotos)

FÉ CEGA 

Dezesseis dias depois de presenciar uma sessão de cirurgias espirituais em Unaí, o Correio voltou à cidade para verificar o estado de saúde dos operados. As melhoras foram pequenas. Muitos ainda acreditam que terão seus problemas resolvidos.

                                                      A cura que não veio 

Unaí (MG) Sexta-feira, 15 de fevereiro. A casinha azul de número 2.224 do bairro Divinéia está bem diferente daquela de duas semanas atrás. O calor é o mesmo, gruda na pele, dá preguiça na gente. Mas a varanda está quase vazia. Não é dia de cirurgia. Poucas pessoas esperam por dona Ana, a médium que comanda o hospital improvisado.O espírito do médico alemão Ricardo Last de Layla passou por lá apenas para dar algumas consultas. Ele não fincaria tesouras e agulhas nos doentes como fez na quinta-feira 7 de fevereiro, quando o Correio acompanhou uma sessão de operações espirituais. A reportagem, publicada na edição da última quinta-feira no caderno Coisas da Vida, mostrou o que se passa nas quase três horas de cirurgias, realizadas em uma salinha sufocante de dois metros quadrados. A médium e ialorixá goiana Ana Benedita Milani, 51 anos, que atende em Piracanjuba (GO) e Unaí (MG), diz incorporar três espíritos (doutor Fritz, Zé Arigó e doutor Ricardo) e, por intercessão deles, é capaz de curar.Dezesseis dias depois das operações, voltamos à cidade de Unaí para conferir o estado de saúde dos pacientes. 

Dois dedos na garganta 

Em uma casa no bairro Cidade Nova, estava Wendon Ricardo de Souza, 10 anos, o menino que chorou muito quando dona Ana colocou dois dedos em sua garganta para tratar de uma amigdalite. Os médicos dizem que o problema de Wendon é outro: reumatismo. Por isso, ele sentia tantas dores no corpo, febre diária, tosse e garganta inflamada freqüentes. Cansada de peregrinar por centros de saúde sem conseguir melhorar o estado de saúde de Wendon, a mãe, dona Conceição, entregou o filho nas mãos do doutor Ricardo, o alemão que incorpora na médium Ana Milani.

À primeira vista, Wendon parece bem. Estava brincando com o cachorro quando contou que a operação foi muito sofrida, sentiu uma dor aguda no pescoço até o dia seguinte. E agora? “Está ótimo, não tem mais febre e a garganta está boa”, responde a mãe. Mas Wendon a interrompe: “Ainda tusso muito”. “Tosse, não, menino!”, repreende dona Conceição. O garoto faz careta, mostra a língua para provar o quanto melhorou. Mas a garganta está avermelhada. “Culpa da gripe”, tenta justificar a mãe. Também no mesmo bairro, em uma casinha humilde – chão de barro batido, parede sem reboco –, encontramos Adenilde Fernandes Teixeira, 20 anos. Há duas semanas, sofreu um bocado para se curar da surdez que a acompanha desde o nascimento. Teve a base da língua cortada e, sete dias depois, dona Ana completou a cirurgia, enfiando tesouras nos dois ouvidos da garota. “Ela já consegue escutar”, empolga-se a mãe, Andrezelina, 37, que ajuda no centro espírita, fazendo curativos nos pacientes.

A língua de Adenilde está perfeita: nenhuma cicatriz ou sinal de mutilação. “Você está ouvindo direitinho?”, a repórter pergunta. Adenilde olha para a mãe, que movimenta a cabeça em sinal afirmativo. A garota repete o gesto. “Sua língua ainda dói?”. Mais uma vez Adenilde busca resposta nas expressões da mãe. A última tentativa de testar sua audição é feita longe de dona Andrezelina. “E aí, está feliz?”. Sem ter a quem socorrer, Adenilde olha para baixo e dá um sorriso tímido. Não esboça nenhuma palavra como havia prometido a médium Ana Milani.

O aposentado José Dionízio Cardoso, 55 anos, ou simplesmente “seu Zé”, não gosta nem de se lembrar do que passou há duas semanas. Para curar um problema na próstata, dona Ana, incorporada pelo doutor Ricardo, introduziu uma agulha grossa em sua glande. Há dois meses, seu Zé passou muito mal. “Faltava ar, sentia dor na boca do estômago”, conta. No hospital público, fez eletrocardiograma, radiografias e exame de sangue. O resultado: verminose. Ele tentou marcar novas consultas. A resposta era sempre a mesma: amanhã o senhor volta. Como o amanhã não chegava nunca, teve de procurar por dona Ana. Fez a operação espiritual, sofreu muito e não conseguiu resolver seu problema. “Continuo sentindo dor”, conta seu Zé.

Uma das enfermeiras da médium diz que o trabalhador rural aposentado não seguiu as recomendações do médico alemão. “Ele pegou peso”, ela emenda. “Peguei não”, ele garante. Para manter o tratamento, dona Ana (ou doutor Ricardo) receitou vários remédios. Um deles é Veramil, indicado para casos de isquemia, angina e hipertensão. Mas a pressão arterial de seu Zé é baixa, muito baixa: seis por quatro. O que pode provocar sérios risco à saúde de seu Zé.

Perna direita muito inchada 

Ainda assim, a mulher de seu Zé também resolveu submeter-se a uma cirurgia com a médium. Maria Ferreira Lopes, 51 anos, é dona de casa e está com a perna direita muito inchada. Os dedos das mãos são retorcidos. “O doutor Ricardo disse que tenho problemas no útero e no ovário. Fiz a operação ontem e hoje não sinto mais dores”, conta, sob os olhares da imagem do padre Marcelo Rossi, pregada na parede da casa de tijolinhos. Dona Maria agora também tem vários remédios para tomar. Entre eles, Voltaren, antiinflamatório que ameniza a dor.

Felizes da vida estão os irmãos Eliene e Márcio Mota Fernandes, 25 e 23 anos. Os dois foram operados no dia 7, para se livrarem do mesmo mal: solitária. “E também de doença de Chagas”, lembra Eliene. Eles são bóias-frias e tinham uma aparência péssima antes da cirurgia. Estavam magros, amarelados, mal conseguiam falar. Dona Ana tirou os ovos de solitária com a mão da boca dos pacientes. Agora estão bem dispostos, mais corados e até engordaram.  Márcio, que, segundo os médicos dos hospitais, é epiléptico, nunca mais teve crise, mesmo tendo suspendido o remédio Gardenal. E também parou de beber e de fumar maconha – condição que doutor Ricardo impôs antes de operá-lo. A mãe, Maria Rita, 60, só consegue dizer uma coisa: “Graças a Deus, graças a Deus”. Os outros pacientes que foram operados há duas semanas não foram encontrados. Da mulher que sufocou com o próprio sangue ao ter a tesoura introduzida na narina, uma única notícia: “O marido dela esteve aqui, veio comprar Valium, receitado pela dona Ana. Mas não tinha receita azul, não pôde levar”, contou um balconista da Drogaria Central, que fornece os remédios para quase todos os pacientes da médium. Valium é um tranqüilizante e relaxante muscular, que ameniza dores fortes, e só pode ser comprado com retenção de receita.

O agricultor Juvenite Gonçalves Pereira, que saiu da operação mais surdo do que estava quando chegou, também não foi encontrado.

Unaí é uma cidade com 70 mil habitantes. Faz parte da região do Entorno de Brasília. Lá existem três hospitais particulares e apenas um público.

Para baixar a 2ª reportagem em pdf, clique aqui.

Para contactar Paloma Oliveto, clique aqui.

12 respostas a “Ana Benedita Milane: médium, candidata a vereadora e picareta”

  1. Paulo-rs Diz:

    A única coisa que Ana benzedeira fez de certo nessa reportagem, foi dar uma “cantada” na bonita jornalista.
    Parabéns, matéria nota 10!

  2. Biasetto Diz:

    Muito boas as reportagens. Que bela surpresa a Paloma ter aparecido por aqui.
    Estas coisas são muito sérias. Não podem ficar esquecidas. Quantos crimes os picaretas religiosos estão cometendo neste país?

  3. Biasetto Diz:

    É Paulo, você tem razão. Além disso, ainda é palmeirense. Teu blog está melhorando hein Vítor?

  4. Paloma Diz:

    Meninos, dank pelos elogios, haha! Essa mulher é uma bandida, acho que vou até a cidade dela fazer uma matéria 10 anos depois! Quero muito investigar de perto o tal João de Deus, lá de Abadiânia. E estou interessadíssima na tal comunicação com espírito por ondas de rádio. Já encontrei alguns cientistas que topam falar (mal, claro) sobre o assunto pra uma reportagem. Falta um médium aceitar mostrar na minha frente e com um equipamento que não seja dele o diálogo…

  5. Vital Cruvinel Diz:

    Essas duas reportagens me fizeram lembrar das reportagens de O Cruzeiro sobre as materializações de Uberaba. Por sinal, bem escritas e com uma linguagem envolvente.

  6. Vitor Diz:

    E a investigação foi muito bem conduzida também 🙂

  7. Juliano Diz:

    Veja como as coisas são. Daqui, dos antigos, até onde eu sei sou o único que não venho do espiritismo, sinceramente, antes de conhecer o blog, não tinha interesse algum por CX e o espiritismo. Vim de outra “escola”, digamos assim, por alguns anos era o Waldo Vieira o cara e ele era o cara! Tanto que deixei muito trabalho como voluntário para o I
    IPC (Instituto Internacional de Projeciologia), o que não me arrependo, diga-se. Apesar de tudo, muita coisa lá é interessante e mereceria maiores aprofundamentos. E não aquela verborragia que a coisa virou.
    Como eu vim do pessoal do Waldo, o conheci pessoalmente, uma vez inclusive fui buscar ele no Aeroporto em Curitiba, naturalmente a projeção é algo que me interessa. Pois bem, tenho pra mim hoje que o meio mais fácil de provar uma possível dualidade corpo/espírito seria, é na verdade, através da chamada projeção consciente, viagem astral. Alguém que diz sair do corpo lúcido todos os dias, num experimento controlado sairia do corpo e iria numa sala com alguns objetos, palavras, números, o que for, que ele não teria como ter prévio conhecimento, e ao voltar ao corpo, este viajante astral descreveria o que viu. E isto feito por vários dias seria algo de fato interessante. Pois bem, estes dias, andei postando no blog do Moisés Esagui, um cara bacana até, não se furtou a me responder, ele tem até um “instituto de pesquisa da consciência em SP (CEC), e ele é um que diz sair lúcido do corpo praticamente todos os dias. Pois bem, e nas mensagens que enviei eu fui direto, se sai do corpo, por que não se prestar a ser um instrumento de prova da Viagem Astral? Num esperimento controlado, num instituto de pesquisa sério em São Paulo. Veja o que ele me respondeu:

    1. Olá Juliano. Entendo o que você quer dizer e, de verdade, eu sempre pensei que comprovar a experiência de projeção astral seria uma ótima forma de levar o conhecimento a um maior número de pessoas. Mas é importante entendermos que, no geral, as pessoas querem tudo “pronto”, algo que possa ser facilmente provado, sem que haja a necessidade do esforço individual. Eu realmente vejo que isso é o mais importante, que cada um possa se esforçar ao máximo para ter as próprias experiências de projeção astral. Dessa forma, acredito que a comprovação para mais e mais pessoas será mera consequência.
    Um forte abraço,

    Típico da conversa “sabonete”, com todo respeito a uma possível boa intenção do Moisés. O que uma coisa tem a ver com outra? O que a prova científica da projeção consciente tem a ver com querer se projetar de forma pronta? Como ele disse. Pelo contrário, uma prova robusta só incentivaria as pessoas a se esforçarem e treinarem para sair do corpo. Inclusive céticos.
    Aí mandei uma mensagem para ele, muito educada, dizendo que entendia a visão dele, mas entendendo que seria interessante uma pesquisa controlada; e também perguntando o que ele achava do Waldo Vieira. Veja o que ele me respondeu.

    Olá Juliano. O caminho é esse mesmo, que cada um possa ter a comprovação das próprias experiências, exatamente como tem acontecido com você. Estamos realizando algumas pesquisas no CEC e em breve teremos mais material para compartilhar.
    Pessoalmente, vejo que há um bom trabalho sendo realizado por várias pessoas, incluindo o Waldo Vieira, e o mais importante é que cada um de nós tenha força de vontade suficiente para buscar conhecimento e colocar esse conhecimento em prática, sempre com continuidade. Só assim alcançaremos os melhores resultados e seguiremos fazendo um caminho de crescimento e libertação.

    Um forte abraço,

    Quer dizer, mais conversa “sabonete”. Aí você vai dizer o quê em casa? É isto.

  8. Paloma Diz:

    Juliano, já fiz esse questionamento várias vezes a um colega que dizia sair do corpo: por que não tentar “viajar” até um cômodo com objetos colocados lá por outra pessoa e sem o conhecimento prévio de quem vai sair do corpo? Nunca obtive resposta. Mas encontrei na ciência a resposta para o fato de pessoas PENSAREM que conseguiram sair do corpo. Se quiser, te passo algumas pesquisas de neurocientistas, muito interessantes!

  9. Juliano Diz:

    Paloma

    Ótimo Paloma. Anota o meu e-mail: julianokpedroso@yahoo.com.br

    É exatamente isto, o pessoal fala, fala e fala, mas quando questionado a provar o que dizem, o discurso muda e o que se tem são justificativas e mais justificativas, quando justificam. E aí eu volto a pergunta que fiz dias atrás aqui que se relacionava ao CX. Como deve ser o dia a dia desta gente que falam, dão palestras, cursos o dia inteiro, muitos vivem dos cursos e palestras, onde ética e respeito ao outro é a tônica, de algo que eles não vivenciam? Que ética há nisto? Que respeito ao outro há nisto? Como o cérebro humano se trai fácil? Será que este povo todo dorme tranquilo? Se forem pessoas boas, eu só posso supor que não.

  10. Juliano Diz:

    Corrigindo: Como o cérebro humano se trai fácil!

  11. Franciele Diz:

    Olá, eu gostaria saber informações sobre o Centro espirita de Piracanjuba, quem atende lá hoje em dia é essa mulher? E não consigo abrir o link da segunda reportagem para baixar. Quem puder me ajudar eu agradeço.

  12. Marcela Diz:

    Franciele, basta vc ir p lah. Desce na rodoviaria e pergunta onde eh? A cidade eh pequena, e o centro fica bem perto. O tel de lah eh (64)34053257.

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