Livro “Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental” – CAPÍTULO 10

Neste capítulo, Woods mostra que foi no direito canônico da Igreja que o Ocidente viu o primeiro exemplo de um sistema legal moderno, à luz do qual ganhou forma a moderna tradição legal do Ocidente. De igual modo, a lei penal ocidental foi profundamente influenciada, não só pelos princípios legais da lei canônica, mas também pelas idéias teológicas, particularmente pela doutrina da reparação desenvolvida por Santo Anselmo. E, por último, a própria idéia dos direitos naturais, que durante muito tempo se considerou ter surgido e alcançado a sua plena formulação por obra dos pensadores liberais dos séculos XVII e XVIII, teve a sua origem no trabalho dos canonistas, papas, professores universitários e filósofos católicos.

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Atenção: Isso não é uma defesa da Doutrina Católica. Não acredito que Maria pariu virgem muito menos que continuou assim após o parto; que Jesus multiplicou pães e peixes, etc. Também abomino a discriminação que é feita contra homossexuais (ao dizer que homossexualismo é pecado)  bem como a propaganda feita contra o aborto, o incentivo ao não uso de camisinha e afins.

X.

A IGREJA E O DIREITO OCIDENTAL 

Na maioria dos países ocidentais, quando uma pessoa é condenada por assassinato e sentenciada à morte, mas perde a razão no intervalo entre a sentença e a execução, é  mantida viva até que recupere a saúde mental e só então é executada. O motivo para essa medida de exceção é totalmente teológica: só se um homem estiver no seu perfeito juízo poderá fazer uma boa confissão, receber o perdão dos seus pecados e ter a esperança de salvar a sua alma. Casos como esse levaram o professor de direito Harold Berman a observar que o moderno sistema legal ocidental “é um resíduo secular de atitudes e pressupostos religiosos que, historicamente, tiveram a sua primeira expressão na liturgia, rituais e doutrina da Igreja e, mais tarde, nas instituições, conceitos e valores do Direito. Se não se compreendem essas raízes históricas, muitos aspectos do Direito podem parecer desprovidos de fundamento”[1].

Os trabalhos do professor Berman, particularmente o seu Law and Revolution: The Formation of the Western Legal Tradition, documentaram a influencia da Igreja no desenvolvimento do direito no Ocidente. “Os conceitos ocidentais do direito – argumenta ele – estão nas suas origens, e, conseqüentemente, na sua natureza em íntima relação com conceitos caracteristicamente teológicos e litúrgicos, como são a expiação e os sacramentos”[2].

A nossa história começa nos primeiros séculos da Igreja. O milênio que se seguiu ao Edito de Milão, promulgado pelo imperador Constantino em 313 (que estendia a tolerância ao cristianismo), assistiu a freqüentes conflitos de competência entre a Igreja e o Estado, muitas vezes em detrimento da primeira. É verdade que Santo Ambrósio, o grande bispo de Milão do século IV, chegou a proclamar que “os palácios pertencem ao imperador, as igrejas aos sacerdotes”, e que o papa Gelásio fixou a doutrina que mais tarde seria designada pela fórmula das “duas espadas”, de acordo com a qual o mundo estava submetido a dois poderes, um espiritual e outro temporal. Na prática, porém, essa linha era freqüentemente ignorada e o poder civil exercia uma autoridade cada vez maior sobre questões sagradas.

Já em 325, Constantino convocava uma assembléia que viria a ser o Concílio de Nicéia, o primeiro concílio ecumênico da história da Igreja, a fim de tratar do controvertido tema do arianismo, uma heresia que negava a divindade de Cristo. Os séculos seguintes presenciaram interferências ainda maiores dos governantes em assuntos da Igreja. Os reis (e, mais tarde, imperadores) dos francos designavam as pessoas que deviam ocupar cargos na Igreja e até as instruíam em matérias de doutrina sagrada. O mesmo se daria mais tarde com os monarcas da França e da Inglaterra, assim como com outros governantes do Norte e do Leste europeu. Em 794, o próprio Carlos Magno convocou e presidiu a um concílio da Igreja, em Frankfurt. Durante o século XI, os reis-imperadores das terras germânicas designavam não apenas os bispos, mas também os papas.

Nos séculos IX e X, o problema do controle das instituições da Igreja pelo Estado tornou-se particularmente agudo. O colapso da autoridade central na Europa Ocidental durante esses séculos – uma vez que os monarcas se viram incapazes de conter as ondas invasoras vikings, magiares e muçulmanas – ofereceu aos poderosos proprietários de terras a oportunidade de estenderem a sua autoridade sobre igrejas, mosteiros e até mesmo dioceses. Desse modo, os abades dos mosteiros, os párocos e os próprios bispos eram indicados por leigos, em vez de o serem pela Igreja.

Hildebrando, nome com que o papa São Gregório VII era conhecido antes de ascender ao sumo pontificado, pertencia ao setor de reformadores radicais que procuravam não apenas persuadir os governantes a designar homens bons, mas, fundamentalmente, a excluir por completo os leigos da provisão dos cargos na Igreja. A reforma gregoriana, que começou várias décadas antes desse pontificado (ao qual deve o seu nome), teve por origem o propósito de elevar o nível moral do clero pela observância do celibato clerical e pela abolição da prática da simonia (compra e venda de cargos eclesiásticos). As dificuldades que surgiram na consecução desse objetivo levaram o partido gregoriano a ter de enfrentar o verdadeiro problema: a intromissão do poder civil na vida da Igreja. O papa Gregório teria pouco sucesso no esforço por reverter a decadência interna da Igreja se lhe faltasse o poder de nomear os bispos, um poder que vinha sendo exercido no século XI por diversos monarcas europeus. Por outro lado, enquanto os poderes leigos continuassem a designar os párocos e os abades, só poderiam multiplicar-se os candidatos espiritualmente incapacitados para esses ofícios.

A SEPARAÇÃO ENTRE A IGREJA E O ESTADO 

O papa Gregório deu um passo decisivo quando definiu o rei como um simples fiel, sem nenhuma função religiosa além das que tinha qualquer outro cristão. No passado, até mesmo os reformadores da Igreja haviam admitido que, embora fosse um erro reconhecer aos governantes civis o direito de preencher os cargos da Igreja, o rei era uma exceção. Considerava-se que o rei era uma figura sagrada, com direitos e responsabilidades religiosas; e havia quem fosse mais longe e sustentasse que a sagração de um rei era um sacramento (um ritual que, como o Batismo e a Sagrada Comunhão, conferia a graça santificante à alma de quem o recebia). Porém, ao declarar o rei um simples fiel, que não tinha recebido as ordens sagradas, o papa negava-lhe o direito de intervir nos assuntos da Igreja. E, por extensão, negava esse mesmo direito ao Estado que o rei governava.

Com a reforma gregoriana, clarificaram-se, pois, os limites que deviam separar a Igreja e o Estado, de modo que a Igreja gozasse da liberdade necessária para desempenhar a sua missão. Pouco tempo depois, começaram a elaborar-se códigos, tanto no âmbito da Igreja como no do Estado, nos quais se estabeleciam e se explicitavam os poderes e as responsabilidades de cada um na Europa posterior a Hildebrando. E o primeiro corpo de leis sistemático da Europa medieval, o direito canônico (isto é, o direito da Igreja), tornou-se o modelo dos diversos sistemas jurídicos civis que foram aparecendo nos séculos sucessivos.

Antes de se ter compilado o direito canônico, entre os séculos XII e XIII, não havia em nenhum lugar da Europa Ocidental qualquer sistema de leis parecido com os atuais. Desde a fragmentação do Império Romano do Ocidente com o advento dos reinos bárbaros, o direito tinha estado intimamente ligado aos costumes e aos laços de sangue, e não era considerado nem estudado independentemente dessas realidades ou julgado apto para estabelecer regras gerais que obrigassem as pessoas. O direito da Igreja também havia estado nessa situação até fins do século XI. Nunca fora codificado sistematicamente e estava disperso por entre as observações dos concílios ecumênicos, dos livros penitenciais (que determinavam penitências para os pecados), dos papas, de alguns bispos, da Bíblia e dos Padres da Igreja. Muito desse direito era de natureza regional e, por conseguinte, não se aplicava ao conjunto da Cristandade.

O século XII começou a mudar tudo isso. O tratado-chave do direito canônico foi obra do monge Graciano e intitulou-se Uma concordância de cânones discordantes (também conhecido como Decretum Gratiani ou, simplesmente, Decretum), redigido por volta de 1140. É uma obra gigantesca, tanto em volume como em alcance, e constituiu também um marco histórico. De acordo com Berman, foi “o primeiro tratado legal abrangente e sistemático na história do Ocidente e, talvez, na história da humanidade – se por «abrangente» se entende a tentativa de abarcar virtualmente lodo o direito de um sistema de governo, e por «sistemático» o esforço por apresentar esse direito como um corpo único, cujas partes se relacionam entre si de modo a formarem um todo”[3].

Em um mundo regido pelo costume, e não por um conjunto de normas obrigatórias, Graciano e outros canonistas desenvolveram critérios, baseados na razão e na consciência, destinados a determinar a validade dos costumes estabelecidos e a introduzir a idéia de uma lei natural anterior à política, com a qual todo o costume legítimo devia conformar-se. Os estudiosos do direito canônico ensinaram ao Ocidente barbarizado de que modo tomar uma colcha de retalhos de costumes, estatutos legais e outras inúmeras fontes, e produzir a partir dela uma ordem jurídica coerente, com uma estrutura internamente consistente, em que se resolvessem as eventuais contradições anteriores. Esses estudiosos do direito “debruçaram-se sobre uma variedade de textos – o Antigo Testamento, o Evangelho, «o filósofo» Aristóteles, «o jurista» Justiniano, os Padres da Igreja, Santo Agostinho, os Concílios da Igreja – e, valendo-se do método escolástico e da teoria da lei natural, conseguiram criar a partir dessas fontes tão díspares, assim como dos costumes existentes nas sociedades eclesiástica e civil da época, uma ciência jurídica coerente e racional”[4]. Esse trabalho daria importantes frutos não só no campo do direito da Igreja, mas no dos sistemas legais civis, que viriam a ser codificados no rasto da obra de Graciano.

Tão importante como o processo de unificação foi o conteúdo do direito canônico, cuja abrangência foi tão vasta que contribuiu para o desenvolvimento do direito ocidental em matérias como o matrimônio, a propriedade, a herança, as provas racionais em juízo[5].

Quanto às provas em juízo, os canonistas e os juristas católicos das universidades medievais viram-se diante de uma situação desastrosa: até fins do século XI, os povos da Europa continuavam a viver em um regime bárbaro, em que “a lei que prevalecia era a lei da vendeta do sangue, dos julgamentos decididos por meio de combates, pelos ordálios do fogo e da água, pelo depoimento de testemunhas arroladas pelo acusado em sua defesa”[6].

Sabemos o que representava na prática o julgamento por meio do ordálio: era submeter a pessoa acusada de um crime a provas de fogo e água destituídas da menor evidência racional. Os procedimentos racionais estabelecidos pela lei canônica apressaram o fim desse e de outros métodos igualmente primitivos, em que a inocência e a culpa eram determinadas com demasiada freqüência por meios supersticiosos.

A lei canônica sobre o matrimônio considerou que, para a validade de um casamento, era necessário o livre consentimento tanto do homem como da mulher, e que o ato poderia ser anulado se tivesse sido celebrado sob coação ou se uma das partes estivesse em erro a respeito da identidade ou de alguma condição importante da outra pessoa. “Aqui estão – escreve Berman – os fundamentos não apenas do moderno direito matrimonial, mas também de certos elementos básicos do moderno direito contratual, principalmente o conceito de livre manifestação da vontade e de ausência de erro. coação e fraude”[7]. Foi pela implementação desses importantes princípios legais que se pode finalmente pôr termo à prática comum do casamento de crianças, que tinha as suas origens em costumes bárbaros[8].

E assim as práticas bárbaras foram cedendo o lugar aos princípios católicos, que, pela codificação e promulgação de um corpo legal sistemático, puderam introduzir-se nas práticas quotidianas dos povos europeus que haviam adotado o catolicismo. São esses princípios que permanecem como núcleo dos modernos ordenamentos legais que regem a vida dos ocidentais e, cada vez mais, dos não ocidentais.

Quando examinamos as regras pelas quais o direito canônico procurou determinar a criminalidade de um ato, descobrimos princípios legais que se tornaram norma em todos os modernos sistemas legais do Ocidente. Os canonistas estavam preocupados com a intencionalidade do ato, com os vários tipos de intenções e com as implicações morais das diferentes conexões causais. Com relação a este último ponto, consideravam exemplos como o que se segue. Alguém atira uma pedra para assustar determinada pessoa. Para esquivar-se a ela, essa pessoa choca-se contra uma rocha e fere-se gravemente. Procura um médico, mas este, por negligência, causa-lhe a morte. Até que ponto quem atirou a pedra foi o causador dessa morte? Este era o sofisticado tipo de questões legais para as quais os canonistas procuravam respostas[9].

Esses mesmos canonistas introduziram também o princípio moderno de que pode haver circunstâncias que atenuem ou mesmo isentem uma pessoa de responsabilidade por um crime. Se essa pessoa estava fora de si, adormecida, confusa ou intoxicada, não podia ser responsabilizada em juízo pelo seu ato à primeira vista criminoso. Tratava-se de fatores que, no entanto, só podiam escusar alguém de responsabilidade perante a lei se, como resultado deles, o acusado não tinha consciência de que fazia uma coisa errada, e se além disso não tivesse provocado uma ou mais dessas condições, como seria o caso de alguém que se embriagasse propositadamente[10].

A bem dizer, o antigo direito romano já tinha feito a distinção entre atos deliberados e atos acidenlais, contribuindo assim para introduzir na lei a idéia da intencionalidade. E os canonistas dos séculos XI e XII – bem como os seus coetâneos que edificaram os emergentes sistemas legais dos Estados da Europa Ocidental – utilizaram elementos desse direito, que lhes chegaram ao conhecimento através do recém-descoberto código redigido sob o reinado do imperador Justiniano, no século VI. Porém, deram o seu próprio contributo, introduzindo distinções importantes que as sociedades européias, dominadas por muitos séculos de influência dos bárbaros, desconheciam. 

A DOUTRINA DA EXPIAÇÃO 

Chegados a este ponto, devemos examinar a obra de Santo Anselmo de Cantuária (1033-1109), porque imprimiu a clara marca de teologia católica nas legislações civis, uma vez que a sua obra Cur Deus homo teve profunda influência sobre a tradição jurídica ocidental. Nesse livro, Anselmo propôs-se demonstrar, com base na razão humana, por que era conveniente que Deus se fizesse homem na pessoa de Jesus Cristo e por que a crucifixão de Cristo – em vez de qualquer outro meio – foi indispensável à redenção da humanidade, após a queda e a expulsão de Adão e Eva do paraíso. Especificamente, o autor quis dar resposta a uma objeção bastante natural: Por que Deus muito simplesmente não perdoou a raça humana pelo pecado original? Por que não reabriu as portas do céu aos descendentes de Adão por meio de uma simples declaração perdão, por um ato gratuito da graça? Por que, em outras palavras, a crucifixão foi necessária? [11]

A resposta de Anselmo foi a que expomos sucintamente a seguir[12]. Deus criou originalmente o homem para que pudesse gozar da felicidade eterna. O homem, de certo modo, frustrou essa intenção de Deus ao rebelar-se contra Ele, introduzindo o pecado no mundo. Para que se satisfizessem as exigências da justiça, o homem devia ser punido pelo seu pecado. Mas a sua ofensa a Deus, suma bondade, era tão grande que nenhuma punição que o homem pudesse sofrer seria capaz de oferecer a Deus uma compensação adequada. Qualquer punição que sofresse teria de ser tão severa que acabaria por anular a sua própria felicidade eterna; e como o plano de Deus para o homem era acima de tudo conceder-lhe a felicidade eterna, essa punição frustraria novamente a intenção de Deus.

Eis por que – em face da necessidade de reparação devida a Deus e a incapacidade do ser humano de poder oferecê-la – o único caminho para expiar o pecado original era por meio da mediação de um Deus-Homem: só o próprio Deus, assumindo a condição de homem, podia oferecer uma reparação condigna em nome e no lugar do homem. Foi assim que Santo Anselmo justificou racionalmente a necessidade da morte expiatória de Jesus Cristo.

Pois bem, o direito penal surgiu na civilização ocidental no seio de um ambiente profundamente influenciado por essa explicação de Santo Anselmo sobre a doutrina da expiação. Essa explicação apoiava-se fundamentalmente na idéia de que a violação da lei era uma ofensa contra a justiça e contra a ordem moral do universo: que essa violação requeria uma punição que reparasse a ordem moral, e que a punição deveria adequar-se à natureza e à extensão da violação.

Efetivamente, com a passagem do tempo, tomou-se comum pensar que a explicação de Santo Anselmo sobre a reparação do pecado original se aplicava não somente a Adão e Eva, mas igualmente a todo aquele cometesse um crime no reino temporal: tendo violado a justiça em si [em abstrato], a pessoa devia submeter-se a alguma punição, a fim de que a justiça fosse restabelecida. Em grande parte, o crime tornou-se “despersonalizado”, na medida em que as ações criminosas começaram a ser encaradas menos como ofensas a pessoas concretas e mais como violações ao princípio abstrato da justiça[13].

Os delitos, portanto, devem ser remediados por penas proporcionadas aos males causados. E o direilo de propriedade, quando violado, deve ser restabelecido por quem o violou. Esses princípios e similares ficaram tão profundamente impregnados na consciência – e, naturalmente, nos valores sagrados – da sociedade ocidental, que nos é difícil imaginar um ordenamento legal fundado em outros princípios e valores[14].

A influência da Igreja nos sistemas legais e no pensamento jurídico do Ocidente estendeu-se também à concepção do direito natural.

Por muito tempo, os estudiosos pensaram que a idéia dos direitos naturais – como direitos morais universais possuídos por todos os indivíduos – surgiu mais ou menos espontaneamente no século XVII. Graças ao trabalho de Brian Tierncy, uma das maiores autoridades mundiais sobre o pensamento medieval, essa tese não poderá continuar a sustentar-se. Quando os filósofos do século XVII formularam as suas teorias sobre os direitos naturais, o que fizeram foi construir sobre uma tradição que já vinha dos mestres católicos do século XII[15]. Antes do trabalho de Tierney, eram muito poucos, mesmo entre os professores, os que sabiam que a idéia dos direitos naturais se achava nos comentários ao Decretum, o famoso compêndio da lei canônica da Igreja Católica elaborado por Graciano, como vimos atrás. Foi com esses estudiosos, conhecidos como decretistas, que a tradição realmente começou.

O século XII manifestou um grande interesse e preocupação pelos direitos de certas instituições e de certas classes de pessoas. A partir da controvérsia das investiduras, no século XI, em que reis e papas se envolveram em acesos debates sobre os seus respectivos direitos, travou-se uma discussão que, dois séculos depois, ainda estava bastante viva, como se vê pela guerra de panfletos que irrompeu entre os partidários do papa Bonifácio VIII e os do rei Filipe o Belo, da França, na seminal batalha entre a Igreja e o Estado. Por outra lado, as relações entre os senhores e os vassalos da Europa feudal traduziam-se em um feixe de direitos e obrigações recíprocos. E os municípios e as cidades – que, com a renovação da vida urbana no século XI, começaram a pontilhar a paisagem européia – insistiam nos seus direitos em face das demais autoridades políticas[16].

A bem dizer, todos esses embates não giravam em torno do que poderíamos chamar propriamente direitos naturais, visto que envolviam direitos de grupos particulares, mais do que direitos inerentes, por natureza, a todos os seres humanos. Mas foi nesse contexto que os canonistas e outros pensadores jurídicos do século XII começaram a afirmar o conceito de direitos, do qual vieram a extrair o vocabulário e o corpo de doutrina que hoje associamos às modernas teorias do direito natural. Isso aconteceu do modo que relatamos a seguir.

As diversas fontes que eram citadas nos primeiros capítulos do Decretum de Graciano faziam freqüentes referências ao termo ius naturale ou lei natural. Essas fontes, no entanto, definiam esse termo de formas muito diferentes, que às vezes pareciam contradizer-se umas às outras. Os comentaristas tiveram, pois, de procurar elucidar os diversos significados que a expressão podia ter. De acordo com Tierney:

“O ponto importante para nós é que, ao explicarem os vários sentidos possíveis do termo ius naturale, os juristas descobriram um novo significado, que não estava realmente presente nos textos antigos. Lendo-os com a mente formada na sua nova cultura, mais personalista e baseada em direitos, esses juristas chegaram a uma nova definição. Aqui e acolá, esses textos definiam por vezes o direito natural em um sentido subjetivo, como poder, força, capacidade ou faculdade inerentes à pessoa humana […]. Assim que se captou esse sentido, foi fácil chegar às normas de conduta prescritas pela lei natural ou às licitas reivindicações e poderes inerentes aos indivíduos que hoje chamamos direitos naturais[17].

Os canonistas, argumenta Tierney, “começaram a ver que um adequado conceito de justiça natural devia incluir o conceito de direitos individuais”[18].

Nao tardaram a identificar exemplos específicos de direitos naturais. Um deles foi o de a pessoa comparecer perante um tribunal para se defender das acusações que pesassem sobre ele. Os juristas medievais negaram que esse direito fosse uma mera concessão do governo aos cidadãos, e insistiram em que se tratava de um direito natural de todos os indivíduos, derivado da lei moral universal. Pouco a pouco, foi assim ganhando peso a idéia de que os indivíduos possuíam certos poderes subjetivos ou direitos naturais, pelo simples fato de serem humanos. Nenhum governante os podia limitar.

No período compreendido entre 1150 e 1300 – diz o historiador Kenneth Pennington –, “foram definidos os direitos de propriedade, de legítima defesa, do matrimônio e de processo civil com base na lei natural e não na lei positiva, assim como os direitos dos não cristãos. E ao situarem esses e outros direitos justamente dentro da estrutura da lei natural, os juristas puderam sustentar – e assim o fizeram efetivamente – que nenhum príncipe humano podia suprimi-los ou restringi-los. O príncipe não tinha jurisdição sobre os direitos baseados na lei natural; conseqüentemente, esses direitos eram inalienáveis”[19]. Todos esses princípios parecem-nos conquistas dos tempos modernos, mas a verdade é que chegaram até nós graças aos pensadores católicos medievais, que, também neste caso, estabeleceram os fundamentos da civilização ocidental tal como a conhecemos.

O papa Inocente IV debruçou-se sobre a questão de saber se os direitos fundamentais – concretamente em relação à propriedade e à legitimidade dos governos – pertenciam unicamente aos cristãos ou cabiam em justiça a todos os homens. Naquele tempo, determinados círculos manifestavam uma opinião exagerada mente pró-papista, já que o Papa, como representante de Deus na terra, era senhor do mundo inteiro e, por essa razão, o direito de propriedade e o da autoridade legítima só podiam ser reivindicados pelos que reconhecessem a autoridade pontifícia. Inocêncio IV rejeitou essa posição e afirmou que “a posse, a propriedade e a jurisdição podem pertencer licitamente aos infiéis […], porque essas coisas não foram feitas apenas para os fiéis, mas para todas as criaturas racionais”[20]. Esse texto seria citado com grande repercussão pelos posteriores teóricos do direito.

A linguagem e a filosofia dos direitos continuaram a desenvolver-se com o passar do tempo. Particularmente significativo foi o debate ocorrido no início do século XIV em torno dos franciscanos, uma ordem de frades mendicantes, fundada no início do século XIII. que se afastava dos bens terrenos e abraçava uma vida de pobreza. Com a morte de São Francisco, em 1226. e a contínua expansão da sua ordem, alguns eram favoráveis a moderar a tradicional insistência na pobreza absoluta, muitas vezes considerada pouco razoável para uma ordem tão grande e espalhada. A ala extremista desses frades, conhecidos como “espirituais”, rejeitou qualquer tipo de concessão, insistindo em que as suas vidas de absoluta pobreza eram réplicas fiéis da vida de Cristo e dos Apóstolos, e por conseguinte, a mais alta e perfeita forma de vida cristã. Porém, aquilo que começou como uma controvérsia sobre a pobreza de Cristo e dos Apóstolos – se ela chegara ou não a repudiar qualquer gênero de propriedade – evoluiu para um importante e fecundo debate sobre a natureza da propriedade, e suscitou em torno dela uma das questões centrais que dominariam os tratados dos teóricos do direito no século XVII[21].

Mas o que realmente consolidou a tradição dos direitos naturais no Ocidente foi a descoberta européia da América e as questões que os teólogos escolásticos espanhóis levantaram acerca dos direitos dos habitantes dessas novas terras, unia história que já expusemos atrás. (Esses teólogos citaram freqüentemente a declaração de Inocêncio IV acima transcrita). Ao desenvolverem a idéia de que os nativos da América possuíam direitos naturais que os europeus tinham a obrigação de respeitar, esses teólogos do século XVI lançaram os fundamentos doutrinários de uma tradição que vinha das obras dos canonistas do século XII.

Resumamos. Foi no direito canônico da Igreja que o Ocidente viu o primeiro exemplo de um sistema legal moderno, à luz do qual ganhou forma a moderna tradição legal do Ocidente. De igual modo, a lei penal ocidental foi profundamente influenciada, não só pelos princípios legais da lei canônica, mas também pelas idéias teológicas, particularmente pela doutrina da reparação desenvolvida por Santo Anselmo. E, por último, a própria idéia dos direitos naturais, que durante muito tempo se considerou ter surgido e alcançado a sua plena formulação por obra dos pensadores liberais dos séculos XVII e XVIII, teve a sua origem no trabalho dos canonistas, papas, professores universitários e filósofos católicos. Quanto mais os estudiosos pesquisam o direito ocidental, mais nítida se apresenta a marca que a Igreja Católica imprimiu à nossa civilização e mais nos convencemos de que foi ela a sua arquiteta.



[1] Harold J. Berman, Law and Revolution: The Formation of the Western Legal Tradition, Harvard University Press, Cambridge, 1983, pág. 166.

[2] Ibid., pág. 195.

[3] Ibid., pág. 143.

[4] Berman, Harold J., “The Influence of Christianity Upon the Development of Law”, em Oklahoma Law Review,12 (fev. 1959), pág. 93.

[5] Harold J. Berman, Faith and Order: The Reconciliation of Law and Religion, Scholars Press, Atlanta, 1993, pág. 44.

[6] Harold J. Berman, “The Influence of Christianity Upon the Development of Law”, pág. 93.

[7] Harold J. Berman, Law and Revolution, pág. 228.

[8] Harold J. Berman, “The Influence of Christianity Upon the Development of Law”, pág. 93.

[9] Harold J. Berman, Law and Revolution, pág. 188.

[10] Ibid., pág. 189.

[11] Cfr. ibid., pág. 179.

[12] Uma condensação pode ser encontrada em Harold J. Berman, Law and Revolution, págs. 177 e segs.

[13] Essa linha de pensamento, embora nos seja familiar, contém o perigo potencial de que o direito penal, na sua ânsia de reparar a justiça em abstrato por meio de uma punição retributiva, degenere até o ponto de olhar apenas para o castigo, abandonando qualquer propósito de restituição, de um tipo ou de outro. É por isso que, hoje em dia, nos encontramos com a perversa situação de que um criminoso violento, em vez de ao menos tentar indenizar de algum modo a sua vítima ou os seus herdeiros, é ele próprio sustentado pelos impostos pagos pela vítima e seus familiares. Portanto, a insistência em que o criminoso ofendeu a justiça em si mesma e, por isso, merece punição, deve estar completamente subordinada ao senso anterior de que o criminoso ofendeu a sua vítima, e que deve indenizar qualquer pessoa que tenha prejudicado.

[14] Harold J. Berman, Law and Revolution, págs. 194-5.

[15] Brian Tierney, The Idea of natural Rights: Studies on Natural Rights, NaturalLaw, and Church Law; veja-se também Annabel S. Brett, Liberty, Right and Nature: Individual Rights in Later Scholastic Thought, Cambridge University Press, Cambridge, 1997; Charles J. Reid, Jr., “The Canonistic Contribution to the Western Rights Tradition: A Historical Inquiry”, em Boston College Law Review 33 (1991), págs. 37-92; Kennneth Pennington, “The History of Rights in Western Thought”, em Emory Law Journal 47 (1998), págs. 237-52.

[16] Brian Tierney, “The Idea of Natural Rights; Origins and Persistence”, em Northwestern University Journal of International Human Rights 2 (abr 2004), pág. 5.

[17] Brian Tierney, “The Idea of Natural Rights; Origins and Persistence”, pág. 6. Grifos nossos.

[18] Ibid.

[19] Kenneth Pennington, “The History of Rights in Western Thought”.

[20] Brian Tierney, “The Idea of Natural Rights: Origins and Persistence”, pág. 7.

[21] Ibid., pág. 8.

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