LÊNTULO, O SUFETA – RESPOSTA A NAGIPE ASSUNÇÃO (APÊNDICE 1 – FIGURAS DE CRISTO, PARTE 3 DE 3)
Não há nenhuma narrativa evangélica, ou testemunho apostólico, ou dos Padres Apostólicos, acerca do aspecto físico de Jesus. Quando mencionavam tal assunto, os escritores cristãos da época pré-constantiniana utilizavam-se de duas passagens bíblicas para defender quer um aspecto físico “feio”, quer um aspecto físico “belo” para Cristo, sendo que a hipótese da feiúra (fealdade) foi a mais antiga. Em nenhum momento foi citada uma “carta de Lêntulo” para justificar tais concepções, e essa personagem, bem como sua “carta”, permaneceram completamente desconhecidas.
Quando, além das considerações literárias, passam a se considerar as representações artísticas de Jesus nas catacumbas, entre os meados do séc. III dC e os inícios do séc. IV dC, vê-se que Cristo é invariavelmente representado como um jovem imberbe, de cabelos curtos, ou não muito longos, em flagrante contraste, aliás, com a descrição constante na “carta de Lêntulo”.
O Triunfo da “Imagem Canônica” no Ocidente I – A Fase Iconoclasta:
Ao contrário do Oriente, onde, durante a Querela das Imagens (726-843 dC), praticamente toda a arte figurativa presente nas igrejas foi destruída (escapando apenas algumas regiões periféricas, que não estavam sob o controle do Imperador bizantino, como, p.ex., o Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai), no Ocidente os testemunhos da antiga arte permaneceram. Desse modo, assiste-se, nessa época, tanto à continuação do avanço da interpretação “canônica” (Jesus sendo representado como um adulto barbado e de cabelos longos) quanto à persistência, nalguns nichos, da imagética pré-canônica. Esse último caso, contudo, restringe-se, mais e mais, a ilustrações em manuscritos encomendados pela corte carolíngia, num estilo classicizante.
Evangeliário de Godescalc, 781-783 dC, fólio 3 recto (31 x
Códice Áureo (Codex Aureus), também conhecido como Evangeliário de Lorsch, c.810 dC, fólio 72 verso (36,5 x
Igreja de Santa Maria a Antiga, Fórum Romano, Roma, afresco da Crucifixão na Capela de Teódoto, meados do séc. VIII dC. Santa Maria a Antiga foi estabelecida durante a administração bizantina de Roma, provavelmente sob o Imperador Justino II (reinou 565-578 dC), no vestíbulo do palácio imperial, ao sopé do Palatino, ladeando o Fórum, aproveitando as estruturas existentes. Ao longo do tempo, foi sendo decorada com afrescos que representam o maior testemunho existente da arte religiosa cristã pré-carolíngia. Trabalhos efetuados sob Martinho I (papa 649-653), João VII (705-707), Zacarias (741-752), Paulo I (757-767) e Adriano I (772-795) são discerníveis. O prédio foi abandonado após um terremoto, em 847 dC, fazer desmoronar muitas partes do antigo palácio imperial, obstruindo e danificando a igreja; uma nova igreja foi construída nas imediações, Santa Maria a Nova (atual Santa Francisca Romana), utilizando parte da estrutura do antigo templo de Vênus e Roma. Apenas o átrio da antiga igreja permaneceu em uso, sendo, contudo, seriamente danificado por ocasião da tomada de Roma pelos normandos (1084), e então abandonado. Sobre suas ruínas foi erguida, em
Mosaico da calota da abside da basílica de Santa Praxedes, no Esquilino, Roma. A basílica de Santa Praxedes foi construída c.780 dC sob o pontificado de Adriano I (772-795), tendo sido ampliada e decorada pelo papa Pascoal I (817-824) em c.822 dC. Tem-se Cristo em Majestade, ladeado pelos Apóstolos Pedro e Paulo, que apresentam ao Salvador as irmãs Pudenciana e Praxedes, filhas do senador Pudente (segundo a tradição, um convertido de São Pedro em Roma); nos extremos, próximos às palmeiras, o mártir São Zeno e (com um nimbo quadrado, indicando que o retrato havia sido executado em vida) o próprio papa Pascoal, oferecendo a Cristo uma maquete da basílica. Ao passo que, nos manuscritos imperiais carolíngios, Cristo era retratado imberbe, na decoração das igrejas e das basílicas romanas Jesus já aparecia invariavelmente como o adulto barbado e de longos cabelos (veja-se a Crucifixão da capela de Teódoto, na ilustração anterior). Notar a semelhança entre essa cena na abside de Santa Praxedes e a da abside da igreja dos Santos Cosme e Damião, executada quase 300 anos antes, e mostrada anteriormente neste Apêndice (inclusive o Jordão místico e o friso de cordeiros). Outras representações da mesma época, e ligadas à munificência do mesmo pontífice, podem ser observadas na Capela de São Zeno, anexa à basílica de Santa Praxedes (Cristo em Majestade num medalhão sustentado por quatro Arcanjos), bem como na basílica de Santa Cecília do Trastevere (Cristo em Majestade na calota da abside, ladeado igualmente pelos Santos Pedro e Paulo, que apresentam ao Salvador Santa Cecília e seu esposo São Valeriano, estando nos extremos do mosaico Santa Águeda [Ágata] e, novamente, o pontífice, mais uma vez com um nimbo quadrado).
O Triunfo da “Imagem Canônica” no Ocidente II – Rotas de Penetração:
Após o final da Querela das Imagens (843 dC), a representação canônica do Salvador dominou inconteste o Oriente, como visto, e também acelerou sua penetração no Ocidente. Ao passo que no Oriente as imagens (“ícones”) representando Cristo, a Virgem e os Santos seguiram uma série de modelos mais ou menos rígidos e estereotipados, nos quais o talento individual do artista mostrava-se secundário (embora de modo algum inexistente, ou desprezível, conforme testemunham as várias escolas ortodoxas orientais de arte sacra), no Ocidente, que não havia passado pela traumática crise iconoclasta, a liberdade de tratar os modelos herdados (quer da época carolíngia, quer da nova arte bizantina pós-iconoclasta) mostrou-se sempre bem maior.
Basicamente, houve três vias de penetração da agora representação “canônica” de Cristo no Ocidente: Veneza, Sicília e Roma – as duas primeiras bastante conectadas à tradição bizantina, a última herdeira duma tradição mais antiga e ininterrupta, como visto, embora também influenciada pela nova iconografia bizantina pós-iconoclasta. Os modelos iniciais passaram progressivamente a merecer interpretações locais variadas (as quais, não obstante, mantiveram a essência da representação “canônica”, de modo que a imagem de Cristo podia ser reconhecida por qualquer um, em qualquer igreja).
Calota da abside sul da Catedral de Santa Maria Assunta, na ilha de Torcello, Veneza, Itália. Cristo Pantocrátor, entronizado e em Majestade, ladeado pelos Arcanjos Miguel e Gabriel; figura de Jesus com cabelo e barba longos, e agora também claros, quase louros; nimbo crucífero, mão direita em bênção, Evangelhos na esquerda. Fins do séc. XI ou inícios do séc. XII dC; decoração executada em estilo bizantino, mas provavelmente por artistas locais, ou com o trabalho auxiliar de artistas locais.
Cristo no Monte das Oliveiras – duas cenas num único painel: Jesus (cabelos claros, barba negra) orando, com os discípulos adormecidos, vencidos pelo sono (esquerda), e instando os discípulos a se manterem vigilantes (direita). Ala sul da basílica de São Marcos, Veneza, mosaico, c. 1215-1220. Embora ainda mantendo inegável ligação com o estilo bizantino, notam-se diferenciações tanto no tratamento e arranjo do tema (fora das cenas fixas e estereotipadas da arte bizantina) quanto na própria representação das figuras (que apresentam semelhanças com o estilo gótico francês – influenciador ou influenciado?).
Catedral de Monreale,
Basílica de Santa Maria do Trastevere, Roma, mosaico da calota da abside, c.1140-1143, mostrando Cristo e a Virgem, entronizados e
Basílica de Santa Maria Maior, Roma, Coroação da Virgem, mosaico circunscrito num medalhão no centro da calota da abside. A nova decoração da abside e do coro dessa importante basílica romana foi comissionada pelo papa Nicolau IV (1288-1292). Os trabalhos na abside ficaram a cargo do mosaicista Tiago (Jacopo) Torriti; iniciaram-se em 1291, tendo sido terminados em 1296, já depois da morte do pontífice. Essa foi a primeira vez em que, na calota da abside, não aparecia o costumeiro friso com cordeiros, simbolizando Cristo (Aguns Dei) e os Apóstolos. Cristo, na Sua representação canônica já consagrada (mas, note-se, com cabelos castanho-claros, quase dourados, e barba castanha), coroa a Virgem com a mão direita, segurando na esquerda um códice aberto com o início da liturgia da festa da Anunciação (Veni, electa mea, et ponam in te thronum meum, “vem, ó Minha eleita, e compartilha de Meu trono”, cf. ilustração anterior). Ambas as personagens, compartilhando dum mesmo trono, apresentam-se em ricas vestes douradas, com a Virgem erguendo os braços na direção de Cristo, em atitude de interseção pela Humanidade. Circundando o trono, o Céu estrelado, com o Sol e a Lua na parte inferior do medalhão, e hostes de Anjos adoradores. Já se nota aqui uma arte plenamente madura e individualizada, fundindo elementos clássicos e bizantinos numa composição original.
O Triunfo da “Imagem Canônica” no Ocidente III – A Recepção:
A partir, basicamente, das três rotas de penetração anteriormente mencionadas (Roma, Veneza, Sicília), a representação agora “canônica” e virtualmente exclusiva de Jesus difundiu-se para o restante da Europa Ocidental, inicialmente em direção ao norte da Itália e da Lombardia, da França e da Alemanha; e, daí, para a Espanha, as Ilhas Britânicas, a Escandinávia e o restante da Europa Norte-Oriental. Tratou-se dum processo lento, relativamente complexo, com várias influências recíprocas entre todas essas regiões, mas de constante avanço, ao longo dos séculos X, XI e XII dC, na esteira de peregrinos (nas visitas a Roma, as “romarias”, vindas principalmente da França e da Alemanha), de comerciantes (nas rotas terrestres partindo de Veneza para a Lombardia e a Alemanha, e nas marítimas da Sicília para toda a região que se estendia da Ligúria à Catalunha), de artistas e mesmo de objetos de uso litúrgico, especialmente ícones e crucifixos (das oficinas bizantinas, e de suas congêneres romanas, venezianas ou sicilianas, para o norte da Itália, e daí um pouco para toda a parte).
Esse processo coincidiu com o estabelecimento de importantes rotas de peregrinação, ligando, principalmente, o norte e o centro da França, os Países Baixos, a Renânia e o sul da Alemanha aos pólos de Roma, ao sul, e de Santiago de Compostela, no extremo oeste (com a progressiva Reconquista da Península Ibérica aos muçulmanos); e também ao vigoroso processo de crescimento econômico verificado na Europa Ocidental (com destaque para o norte da França, os Países Baixos, a Renânia e o sul da Alemanha, o “miolo” da Europa, mas que também ocorreu em todo o restante da Cristandade Ocidental) entre, aproximadamente, os meados do séc. X e os finais do séc. XIII (c.950 a c.1300 dC, grosso modo). E teve como conseqüência, entre outras coisas, um florescimento artístico notável, inicialmente sob o estilo dito “românico”, depois (a partir dos finais do séc. XII dC e ao longo do séc. XIII dC) sob o “gótico”.
Os temas recebidos de Roma, de Veneza e da Sicília, quer ainda impregnados de influência bizantina (caso dos dois últimos lugares), quer já representando uma tradição própria, embora também influenciada pela arte bizantina pós-iconoclasta (caso de Roma), ao longo desse processo, foram sendo sucessivamente repensados e retrabalhados, afastando-se dos modelos iniciais e gerando novos temas e novos estilos, originais e ao mesmo tempo vigorosos.
Cristo, antes tratado como o Pantocrátor triunfante, começa a ganhar contornos mais humanos; começa, a pouco e pouco, a ser enfatizada a Sua compaixão para com os pecadores e, cada vez mais, o Seu sofrimento na Cruz. A “imagem” de Cristo apresenta-se diante do fiel como um instrumento de interiorização, como um convite à meditação, um voltar-se para dentro de si mesmo, a partir da reflexão sobre a vida, os exemplos, a bondade e o Sacrifício Salvífico de Jesus – completa-se, assim, a partir do séc. XIII, o caminho da imagem (o ícone, o baixo relevo) à descrição (que desaguaria nas obras meditativas e, enfim, entre outros documentos, na “carta de Lêntulo”).
Crucifixo de Fernando e Sancha (c.1065 dC), oferta de Fernando I o Grande (conde de Castela 1029-1037; rei de Leão e Castela 1037-1065) e de sua esposa Sancha (condessa de Castela 1032-1037; rainha de Leão e Castela 1037-1067) à basílica de Santo Isidoro de Leão, e atualmente no Museu Arqueológico Nacional,
Tímpano do portal oeste da igreja abacial de Santa Fé (Sainte Foy), em Conques, sul da França, esculpido entre 1107 e 1125 dC. A cidade de Conques situava-se numa das quatro grandes rotas francesas para Santiago de Compostela, a assim denominada Via Podiensis (“Caminho de Le Puy”), que, partindo de Le Puy, seguia por Estaing, Conques, Cahors, Moissac e região de Agen,
Detalhe do Cristo Triunfante do tímpano do portal oeste da igreja abacial de Santa Fé, Conques, mostrado na ilustração anterior. Trata-se da imagem canônica; Jesus apresenta-se com cabelos e barba longos e nimbo crucífero; encontra-se sentado num trono, a mão direita em bênção, mas a esquerda como que mostrando toda a cena do Juízo Final – e, principalmente, apontando para o Inferno e a condenação dos pecadores. Cristo encontra-se envolvido por uma mandorla, ladeado, acima e abaixo, por quatro Anjos. Os dois Anjos na parte inferior carregam candelabros com velas; os dois da parte superior carregam rolos abertos, com textos alusivos aos Justos e aos Condenados. O Anjo à direita de Cristo (à esquerda de quem olha) ostenta, em forma abreviada, a citação de Mateus, cap. 25, vers. 34, Venite, benedicti Patris mei, possidete paratum vobis regnum (“Vinde, ó benditos de Meu Pai, tomai posse do Reino para vós preparado”); o Anjo à esquerda de Cristo (à direita de quem olha) exibe em seu rolo a inscrição Discedite a me, seguida por fragmentos de letras irreconhecíveis, mas que deveriam apresentar, de forma abreviada, a expressão maledicti in ignem aeternum, cf. Mateus, cap. 25, vers. 41: “Afastai-vos de Mim, ó condenados, ide para o fogo eterno”. Nota-se já um alto grau de reelaboração dos temas tradicionais.
Maiestas Domini, afresco de São Clemente de Taull, Espanha, c. 1123 dC. Originariamente na calota da abside central da basílica de São Clemente de Taull, Catalunha (uma igreja de três naves e três absides), o afresco original foi removido (e restaurado), encontrando-se agora no Museu Nacional de Arte da Catalunha,
Crucifixo de Sarzana, têmpera sobre madeira de nogueira, 1138 dC (280 x 210 x
Detalhe do tímpano do portal oeste da Catedral de São Trófimo (Saint Trophîme), Arles, Provença, sul da França, c.1170-1178. A catedral, dedicada a São Trófimo, por tradição o primeiro bispo de Arles, começou a ser construída pelos finais do séc. XI ou inícios do séc. XII, no local duma antiga igreja dedicada a Santo Estêvão; nos meados do século XII o edifício em si já estava substancialmente concluído, já que em 1152 o arcebispo de Arles, Raimundo de Mondredon, transferiu as relíquias de São Trófimo da basílica de Santo Estêvão, em Alyscamps (a antiga necrópole de Arles, na entrada sudeste da cidade), para a nova Catedral. Não obstante, o tímpano somente foi terminado nalguma data entre c.1170 e 1178 (estando já concluído nesse último ano, quando o imperador germânico Frederico I Barba Ruiva foi solenemente coroado nessa igreja pelo arcebispo de Arles, Raimundo de Bollène). Até aos fins do séc. XII Arles era um ativo porto, uma próspera cidade, e centro político e cultural da Provença. Cristo apresenta-se sereno e em Majestade, numa mandorla, na representação canônica usual (barba e cabelos longos), mas aqui coroado, como Rei do Universo; Sua mão direita ergue-se em bênção, e a esquerda segura os Evangelhos. Cristo está cercado pelos Quatro Animais, simbolizando os Quatro Evangelistas.
O assim denominado “Saltério Westminster”, c.1200, pergaminho, fólio 14 recto (23 x
Sacramentário de Bertoldo (c.1215-1217), pergaminho, fólio 10 verso (29,2 x
O famoso “Crucifixo do Mestre Bizantino de Pisa”, c.1210. Têmpera sobre madeira, croce dipinta, 297 x 234 x
Crucifixo de Bolonha (c.1240-1250), de Junta (Giunta) Pisano (ativo c.1229-c.1254), têmpera e folhas de ouro sobre madeira, 316 x 285 x
Crucifixo de Cimabue na igreja da Santa Cruz (Santa Croce), Florença, 1287-1288, têmpera e folhas de ouro sobre madeira, 448 x 390 x
Crucifixão, Capela Scrovegni (também chamada Capela Arena), Pádua, Itália, da autoria de Giotto, 1304-1306; afresco, 200 x
Juízo Final (detalhe), Capela Scrovegni (também chamada Capela Arena), Pádua, Itália, da autoria de Giotto, 1304-1306. Ocupando toda a parede do fundo da capela encontra-se um enorme afresco (1000 x
Crucifixão, painel do retábulo da Virgem em Majestade (Maestà), originariamente no altar-mor da Catedral de Siena. Têmpera e folhas de ouro sobre madeira, 100 x
Algumas Pequenas Observações, à Guisa de Conclusão:
É conveniente parar por aqui, nos inícios do séc. XIV, algumas décadas antes da aparição, pela primeira vez (e ainda anônima) da “carta de Lêntulo”, no prefácio das “Meditações Sobre a Vida de Cristo”, a mais famosa obra de Ludolfo da Saxônia, monge cartuxo (c.1295 – 1378), terminada por volta de 1374.
Acompanhou-se, ainda que, forçosamente, de modo resumido (e, de longe, não exaustivo), desde as primeiras manifestações artísticas cristãs até ao início do séc. XIV, dois temas presentes na “carta de Lêntulo”, e que, de fato, tornaram possível a confecção desse documento, do modo como foi feito, e na época em que foi feito:
· A imagem “canônica” de Cristo, como o adulto barbado e de cabelos longos;
· As considerações sobre o aspecto humano de Cristo, Seus sentimentos, Sua solidariedade para com a Humanidade e, enfim, Seu sofrimento na Cruz, o qual, ao mesmo tempo em que garantiu a Salvação do gênero humano, mostrou o Filho de Deus próximo de nós, e como que compartilhando nossas dores e angústias.
Como se espera ter ficado claro ao longo da exposição deste Apêndice, a “carta de Lêntulo” (documento espúrio, tanto no seu conteúdo quanto no seu pretenso autor) não contribuiu em absoluto para o desenvolvimento de nenhuma das duas tendências acima mencionadas – ao contrário, sua confecção tornou-se possível a partir do desenvolvimento, e da maturação, dessas duas tendências.
A “carta de Lêntulo” não foi causa de nada; ao contrário, ela foi uma das consequências do desenvolvimento dos dois processos citados anteriormente.
A Imagem Canônica de Cristo (Physiognomia Christi):
Não há nenhuma narrativa evangélica, ou testemunho apostólico, ou dos Padres Apostólicos, acerca do aspecto físico de Jesus. Quando mencionavam tal assunto, os escritores cristãos da época pré-constantiniana utilizavam-se de duas passagens bíblicas para defender quer um aspecto físico “feio”, quer um aspecto físico “belo” para Cristo, sendo que a hipótese da feiúra (fealdade) foi a mais antiga. Em nenhum momento foi citada uma “carta de Lêntulo” para justificar tais concepções, e essa personagem, bem como sua “carta”, permaneceram completamente desconhecidas.
Quando, além das considerações literárias, passam a se considerar as representações artísticas de Jesus nas catacumbas, entre os meados do séc. III dC e os inícios do séc. IV dC, vê-se que Cristo é invariavelmente representado como um jovem imberbe, de cabelos curtos, ou não muito longos, em flagrante contraste, aliás, com a descrição constante na “carta de Lêntulo”. Tal representação da physiognomia Christi não se baseava em nenhuma tradição conhecida, sendo apenas uma idealização – Jesus era representado de modo semelhante a Apolo, ou a Orfeu, a juventude simbolizando a eternidade, a divindade, enfim, a vitória sobre a Morte.
Não tem nenhuma validade a hipótese (aliás indemonstrável) de que os cristãos teriam o conhecimento “secreto” do verdadeiro aspecto físico de Jesus, e apenas após a cessação das perseguições passaram a representa-Lo de tal modo, não o tendo feito antes por motivos de segurança, porque:
· O Cristianismo começou a ganhar tolerância a partir do Edito de Milão (311 dC), e viu-se totalmente livre de ameaças com a vitória final de Constantino sobre Licínio (324 dC), mas os mais antigos exemplos do uso da “representação canônica” de Jesus encontram-se em Roma no último quartel do séc. IV dC e nos inícios do séc. V dC, ou seja, mais de 50 anos após a Paz da Igreja – e não há nenhum indício de que a mencionada “representação canônica” fosse utilizada na arte oficial cristã patrocinada por Constantino e seus filhos de c.310 a c.360 dC;
· A representação tradicional na arte das catacumbas (Cristo jovem, imberbe, com cabelos curtos, ou não muito longos) permaneceu em uso ao longo dos sécs. IV, V e VI dC, e mesmo além;
· Da mesma forma que o “Cristo Jovem” podia passar por Apolo ou Orfeu (e, assim, “enganar” os perseguidores), um “Cristo Barbado e de Longos Cabelos” podia passar por Júpiter ou Serápis, e, da mesma forma, também “enganar” os perseguidores; o fato de isso não ter ocorrido mostra convincentemente que não se cogitava, antes do último quartel do séc. IV dC (mais de 50 anos após a Paz da Igreja),
A “representação canônica” de Jesus, tanto quanto se pode julgar a partir do que restou, surgiu, assim, em Roma, no último quartel do séc. IV dC; os mais antigos testemunhos são o Cristo de Óstia, de marchetaria de mármore, o mosaico do Cristo Triunfante da abside de Santa Pudenciana e o afresco do Cristo do teto do cubiculum Leonis, nas catacumbas de Comodila. De origem obscura, pode ter surgido a partir do desejo de ligar a representação de Cristo a uma figura que representasse o poder patriarcal.
A partir daí, a “representação canônica” iniciou um longo processo de difusão e de aceitação, quer no Oriente, quer no Ocidente. No Oriente, o triunfo dessa nova representação mostrou-se absoluto a partir do final da crise iconoclasta (843 dC); no Ocidente, quer pela tendência local já discernível, quer pela própria influência da arte bizantina pós-iconoclasta, esse triunfo também acabou por se dar, entre os sécs. IX e X dC, mantendo-se a partir de então.
Note-se que, em todo esse processo, não há nem uma única menção à “carta de Lêntulo”, e muito menos ao seu fantasmagórico autor. Ora, se tal documento fosse conhecido por ocasião da Querela das Imagens (726-843 dC), com certeza teria sido utilizado como arma ideológica na polêmica de então, como muitos outros escritos o foram; no entanto, o silêncio que cerca a “carta de Lêntulo” (e o seu autor) é completo – um indício seguro de que o documento não era do conhecimento de ninguém, de absolutamente ninguém, na época; ou seja, que, simplesmente, não existia.
Por conseguinte, a “carta de Lêntulo” não foi a geradora da “imagem canônica” de Cristo; ao contrário, ela foi escrita numa época em que tal “imagem canônica” (o Cristo adulto, barbado, de cabelos longos) já estava estabelecida de modo inconteste, sendo considerada por qualquer fiel, fosse ou não culto, como “a” representação de Cristo – ou seja, no mínimo, após o séc. X dC.
A Humanidade de Cristo (Christus Patiens):
A “carta de Lêntulo” não é um relatório das atividades dum suposto “subversivo”, mandado ao Imperador, em Roma (ou, pior ainda, ao Senado…), por um oficial romano presente na Judéia procuratoriana (quem quer que tenha sido, e qualquer que tenha sido o seu cargo ou “status”), e isso, basicamente, por duas razões:
· Porque tal tipo de documento não existia. Autoridades locais serviam justamente para manter a ordem, recolher os impostos devidos e também para resolver distúrbios locais, sem a necessidade de se fazer perder o tempo do Imperador, ou das autoridades centrais, em Roma; apenas casos muito especiais (e muito graves), envolvendo cidadãos romanos, ou maiorais locais, eram, eventualmente, objeto de consulta (não de “descrições”…) ao Imperador, acerca do que deveria ser feito; administrativamente, a “carta de Lêntulo” não faz sentido algum;
· Porque a (pretensa) “carta” não passa duma descrição meditativa frente a um ícone, frente a uma imagem (mental) de Cristo. Descreve-se uma “imagem de Cristo” (com ênfase, claro,
Ora, esse tipo de “aproximação” com a imagem de Cristo ocorreu ao longo do séc. XIII dC, culminando nas várias obras meditativas do séc. XIV dC – justamente a época em que a “carta” originariamente surgiu. Anteriormente, Cristo era visto como o Impassível Juiz, que, triunfando sobre a Morte, julgaria o Universo. Daí a preferência, na arte cristã pós-constantiniana, na arte bizantina pós-iconoclasta, e mesmo na arte ocidental pré-gótica, em representa-Lo entronizado e em Majestade (o Pantocrátor; a Maiestas Domini). Mesmo quando a representação do Cristo Crucificado começou a se tornar mais comum (e isso ocorreu por uma lenta influência dum dos temas da arte bizantina pós-iconoclasta, a Staurôsis, vejam-se os mosaicos do mosteiro do Bem-Aventurado Lucas, na Grécia, mostrados neste Apêndice), Ele ainda se apresentava, no geral, sereno, impassível, com o controle total da situação. Mesmo na arte bizantina, que, na Crucifixão, representava já o corpo de Jesus arqueado, Seus olhos fechados e Seu semblante triste, esse pathos tinha um limite – e essa não era, sequer, a cena mais representada, nem aquela posta nos lugares mais proeminentes das igrejas. E, no Ocidente, demorou-se mais, até aos fins do séc. XII dC, a se chegar a esse nível de “sofrimento controlado” já presente na arte bizantina pós-iconoclasta, quando ela se dignava a representar a cena da Crucifixão.
Ou seja, mesmo quando crucificado, Jesus era o Cristo Triunfante (Christus triumphans); foi somente a pouco e pouco, a partir dos fins do séc. XII e princípios do séc. XIII dC, que, impulsionada pelas novas ordens mendicantes e pregadoras, os Franciscanos e os Dominicanos, uma visão mais “humana” de Cristo, não como Juiz inatingível e impassível, mas como o Servo Sofredor que Se deu em sacrifício para salvar a Humanidade, tornou-se mais e mais comum – Jesus estava agora próximo de cada um, podia entender o sofrimento de cada um, já que Ele próprio também sofrera, e sofrera por todos – era o Cristo Padecente (Christus patiens). Junto com as pregações das novas ordens, os grandes crucifixos de madeira, de três metros ou mais de altura, bem como os grandes retábulos, postos nos altares das igrejas, levaram a toda a Europa não apenas uma nova imagem, mas também uma nova “devoção”.
Tratava-se duma devoção mais íntima, mais individualizada. Cristo não era mais o Juiz de todos os Povos, mas o Sofredor que Se havia sacrificado por cada fiel; e cada fiel era convidado a “ver” e a “sentir” isso nas imagens – em suma, a “penetrar” nelas, a vivenciar as cenas e os sentimentos mostrados. E, desde os fins do séc. XIII, e ao longo da primeira metade do séc. XIV, à medida que aumentava também o público leigo leitor nas várias e florescentes cidades (quer em latim, quer, principalmente, nas línguas vernáculas, que então fazem a sua aparição), não apenas as imagens, mas também os textos meditativos (antes circunscritos aos mosteiros) espalham essa nova devoção intimista.
É dentro dessa atmosfera que o “novo estilo” de arte, mais “realista” (para poder melhor captar as situações e os sentimentos e, assim, auxiliar na meditação), faz sentido; e é também dentro dessa mesma atmosfera que se podem compreender as várias obras meditativas sobre a “vida de Cristo”, dos meados do séc. XIII aos meados do séc. XIV. Essas “vidas” (muitas vezes atribuídas, quer pelos seus próprios autores, quer pela piedade popular, a figuras proeminentes no campo da Teologia), não pretendiam ser “biografias” no sentido moderno do termo, mas sim guias de meditação, verdadeiras “galerias escritas” de cenas, de situações, de pessoas, que fornecessem aos leitores “modelos de introspecção”:
· O Dialogus Beatae Mariae et Anselmi de Passione Domini (c.1240), falsamente atribuído a Santo Anselmo (c.1033 – 1109), arcebispo da Cantuária (1093 –1109);
· O De Meditatione Passionis Christi per Septem Diei Horas Libellus (fins do séc. XIII), falsamente atribuído a São Beda o Venerável (672/73 – 735 dC);
· As Meditationes de Vita Christi (fins do séc. XIII ou inícios do séc. XIV), atribuídas falsamente a São Boaventura (1221 – 1274);
· Enfim, as próprias Meditationes de Vita Christi de Ludolfo o Cartuxo, terminadas c.1374, onde, pela primeira vez, aparece (ainda anônima…) a “carta de Lêntulo”.
Esse “entrar dentro da cena”, esse “capturá-la” para si, quer pela visão, quer pela leitura, e de modo a “compadecer-se” (compassio, “sentir junto”, i.e., “sofrer em solidariedade”) torna-se evidente, p.ex., num trecho da obra do pseudo-Beda:
Non enim decet, qui vult Christi dolorem sentire, verbis et rebus lusoriis et in gaudio vano se inutiliter occupare, ut breviter dicam, a sollicitudine temporali et delectatione carnali seu consolatione. Etiam oportet cum multa diligentia cogitare, quod non convenit consolatio carnalis et contemplatio Dominicae Passionis. Necessarium etiam esse, ut aliquando ista cogites in contemplatione tua, ac si praesens tum temporis fuisses, quando passus fuit. Et ita te habeas in dolendo, ac si Dominum tuum coram oculis tuis haberes patientem, et ita ipse Dominus praesens erit, et accipiet tua vota.
(De Meditatione Passionis Christi per Septem Diei Horas Libellus, Praefatio) |
Aquele que deseja partilhar da dor de Cristo [meditando (Pequeno Livro [ou: Opúsculo] Sobre a Meditação da Paixão de Cristo, ao longo das Sete Horas [Canônicas] do Dia, Prefácio) |
Assim sendo, o conteúdo da “carta de Lêntulo” (que não é uma “carta”, muito menos um “relatório” dum burocrata, repita-se, mas sim um “ícone escrito” para fins contemplativos) não poderia ter sido confeccionado antes que esse processo de “humanização” do sofrimento salvífico de Cristo se efetuasse – ou seja, antes dos fins do séc. XIII ou dos inícios do séc. XIV. Do mesmo modo que a descrição física que faz de Jesus é a consequência dum processo, dum longo processo iniciado nos fins do séc. IV dC e concluído, ao menos nas linhas gerais, apenas nos sécs. IX-X dC, o seu conteúdo é, também ele, a consequência dum outro processo, em parte paralelo ao anterior, que transcorreu ao longo dos sécs. XIII e XIV dC, e que colocou diante dos fiéis Jesus não mais como o Christus triumphans, mas sim como o Christus patiens.
julho 8th, 2014 às 7:28 PM
DEUTCHSLAND ÜBER ALLES!
Entschuldigung, ich konnte nicht widerstehen.