LÊNTULO, O SUFETA – RESPOSTA A NAGIPE ASSUNÇÃO (APÊNDICE 1 – FIGURAS DE CRISTO, PARTE 3 DE 3)

Não há nenhuma narrativa evangélica, ou testemunho apostólico, ou dos Padres Apostólicos, acerca do aspecto físico de Jesus. Quando mencionavam tal assunto, os escritores cristãos da época pré-constantiniana utilizavam-se de duas passagens bíblicas para defender quer um aspecto físico “feio”, quer um aspecto físico “belo” para Cristo, sendo que a hipótese da feiúra (fealdade) foi a mais antiga. Em nenhum momento foi citada uma “carta de Lêntulo” para justificar tais concepções, e essa personagem, bem como sua “carta”, permaneceram completamente desconhecidas.

Quando, além das considerações literárias, passam a se considerar as representações artísticas de Jesus nas catacumbas, entre os meados do séc. III dC e os inícios do séc. IV dC, vê-se que Cristo é invariavelmente representado como um jovem imberbe, de cabelos curtos, ou não muito longos, em flagrante contraste, aliás, com a descrição constante na “carta de Lêntulo”.

O Triunfo da “Imagem Canônica” no Ocidente I – A Fase Iconoclasta: 

Ao contrário do Oriente, onde, durante a Querela das Imagens (726-843 dC), praticamente toda a arte figurativa presente nas igrejas foi destruída (escapando apenas algumas regiões periféricas, que não estavam sob o controle do Imperador bizantino, como, p.ex., o Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai), no Ocidente os testemunhos da antiga arte permaneceram.  Desse modo, assiste-se, nessa época, tanto à continuação do avanço da interpretação “canônica” (Jesus sendo representado como um adulto barbado e de cabelos longos) quanto à persistência, nalguns nichos, da imagética pré-canônica.  Esse último caso, contudo, restringe-se, mais e mais, a ilustrações em manuscritos encomendados pela corte carolíngia, num estilo classicizante.

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Evangeliário de Godescalc, 781-783 dC, fólio 3 recto (31 x 21 cm), pergaminho, atualmente em Paris.  Confeccionado em Aquisgrana (Aix-la-Chapelle; Aachen), capital imperial, para a própria corte de Carlos Magno, depois de 781, porque o colofão refere-se ao batismo dos herdeiros de Carlos Magno pelo Papa Adriano I nesse ano, e antes de 783, porque o mesmo colofão menciona a rainha Hildegarda como ainda viva (tendo ela morrido em 783).  Trata-se do mais antigo exemplo do assim denominado “renascimento carolíngio”.  Cristo é mostrado entronizado e em Majestade, com os Evangelhos na mão esquerda e a direita em bênção.  Legenda “IHS XPS” (“Jesus Cristo”), nimbo crucífero, figura de Jesus com cabelos longos (e claros), mas sem barba, mostrando a persistência ainda, no Ocidente, da tradição pré-canônica.

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Códice Áureo (Codex Aureus), também conhecido como Evangeliário de Lorsch, c.810 dC, fólio 72 verso (36,5 x 26,5 cm), pergaminho.  A Abadia de Lorsch, na Alemanha, era uma das mais ricas dentre as da época carolíngia, e encomendou vários manuscritos cerimoniais luxuosos, dentre os quais este Evangeliário, iluminado em Aquisgrana (Aix-la-Chapelle; Aachen), capital imperial, antes da morte de Carlos Magno (814 dC).  Pouco antes da dissolução da Abadia (1563), esse Evangeliário seguiu para Heidelberg, de onde foi roubado em 1622, durante a Guerra dos Trinta Anos.  A fim de facilitar sua venda, o texto foi dividido em duas metades, e a capa e a contracapa de marfim foram arrancadas, e comercializadas à parte.  A dedicatória, as tábuas canônicas e os Evangelhos de Mateus e de Marcos encontram-se na Romênia; os Evangelhos de Lucas e de João, bem como as placas de marfim da contracapa, estão no Vaticano; e as placas de marfim da capa encontram-se em Londres; o fólio aqui apresentado encontra-se no Vaticano.  Mostra Cristo, cabelos longos, mas sem barba, em Majestade (Maiestas Domini), entronizado, com os Evangelhos na mão esquerda e a direita em bênção, cercado pelos Quatro Animais (simbolizando os Quatro Evangelistas) num medalhão.  Mais um exemplo da continuidade da imagética pré-canônica.  A legenda reza: Quattuor ergo viros animalia s[an]c[t]a figurant / Sacra salut fieri narrantes munera Chr[ist]i (“Os Sagrados Animais representam os Quatro Homens [i.e., os Quatro Evangelistas] que narraram os feitos de Cristo”). 

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Igreja de Santa Maria a Antiga, Fórum Romano, Roma, afresco da Crucifixão na Capela de Teódoto, meados do séc. VIII dC.  Santa Maria a Antiga foi estabelecida durante a administração bizantina de Roma, provavelmente sob o Imperador Justino II (reinou 565-578 dC), no vestíbulo do palácio imperial, ao sopé do Palatino, ladeando o Fórum, aproveitando as estruturas existentes.  Ao longo do tempo, foi sendo decorada com afrescos que representam o maior testemunho existente da arte religiosa cristã pré-carolíngia.  Trabalhos efetuados sob Martinho I (papa 649-653), João VII (705-707), Zacarias (741-752), Paulo I (757-767) e Adriano I (772-795) são discerníveis.  O prédio foi abandonado após um terremoto, em 847 dC, fazer desmoronar muitas partes do antigo palácio imperial, obstruindo e danificando a igreja; uma nova igreja foi construída nas imediações, Santa Maria a Nova (atual Santa Francisca Romana), utilizando parte da estrutura do antigo templo de Vênus e Roma.  Apenas o átrio da antiga igreja permaneceu em uso, sendo, contudo, seriamente danificado por ocasião da tomada de Roma pelos normandos (1084), e então abandonado.  Sobre suas ruínas foi erguida, em 1617, a igreja de Santa Maria Libertadora, demolida em 1900, quando se iniciaram os trabalhos de escavação e restauração de Santa Maria a Antiga.  A capela de Teódoto, à esquerda da abside, foi decorada por essa importante personagem, que atuou como embaixador do papa Zacarias (741-752) diante dos francos.  A Crucifixão é retratada em consonância com a tradição oriental então vigente (ver o Evangeliário de Rabula): Cristo (barbado) vestindo o colobium, ladeado por Dimas e Estéfato, e pela Virgem e por João Evangelista. 

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Mosaico da calota da abside da basílica de Santa Praxedes, no Esquilino, Roma.  A basílica de Santa Praxedes foi construída c.780 dC sob o pontificado de Adriano I (772-795), tendo sido ampliada e decorada pelo papa Pascoal I (817-824) em c.822 dC.  Tem-se Cristo em Majestade, ladeado pelos Apóstolos Pedro e Paulo, que apresentam ao Salvador as irmãs Pudenciana e Praxedes, filhas do senador Pudente (segundo a tradição, um convertido de São Pedro em Roma); nos extremos, próximos às palmeiras, o mártir São Zeno e (com um nimbo quadrado, indicando que o retrato havia sido executado em vida) o próprio papa Pascoal, oferecendo a Cristo uma maquete da basílica.  Ao passo que, nos manuscritos imperiais carolíngios, Cristo era retratado imberbe, na decoração das igrejas e das basílicas romanas Jesus já aparecia invariavelmente como o adulto barbado e de longos cabelos (veja-se a Crucifixão da capela de Teódoto, na ilustração anterior).  Notar a semelhança entre essa cena na abside de Santa Praxedes e a da abside da igreja dos Santos Cosme e Damião, executada quase 300 anos antes, e mostrada anteriormente neste Apêndice (inclusive o Jordão místico e o friso de cordeiros).  Outras representações da mesma época, e ligadas à munificência do mesmo pontífice, podem ser observadas na Capela de São Zeno, anexa à basílica de Santa Praxedes (Cristo em Majestade num medalhão sustentado por quatro Arcanjos), bem como na basílica de Santa Cecília do Trastevere (Cristo em Majestade na calota da abside, ladeado igualmente pelos Santos Pedro e Paulo, que apresentam ao Salvador Santa Cecília e seu esposo São Valeriano, estando nos extremos do mosaico Santa Águeda [Ágata] e, novamente, o pontífice, mais uma vez com um nimbo quadrado).

O Triunfo da “Imagem Canônica” no Ocidente II – Rotas de Penetração:

Após o final da Querela das Imagens (843 dC), a representação canônica do Salvador dominou inconteste o Oriente, como visto, e também acelerou sua penetração no Ocidente.  Ao passo que no Oriente as imagens (“ícones”) representando Cristo, a Virgem e os Santos seguiram uma série de modelos mais ou menos rígidos e estereotipados, nos quais o talento individual do artista mostrava-se secundário (embora de modo algum inexistente, ou desprezível, conforme testemunham as várias escolas ortodoxas orientais de arte sacra), no Ocidente, que não havia passado pela traumática crise iconoclasta, a liberdade de tratar os modelos herdados (quer da época carolíngia, quer da nova arte bizantina pós-iconoclasta) mostrou-se sempre bem maior. 

Basicamente, houve três vias de penetração da agora representação “canônica” de Cristo no Ocidente: Veneza, Sicília e Roma – as duas primeiras bastante conectadas à tradição bizantina, a última herdeira duma tradição mais antiga e ininterrupta, como visto, embora também influenciada pela nova iconografia bizantina pós-iconoclasta.  Os modelos iniciais passaram progressivamente a merecer interpretações locais variadas (as quais, não obstante, mantiveram a essência da representação “canônica”, de modo que a imagem de Cristo podia ser reconhecida por qualquer um, em qualquer igreja). 

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Calota da abside sul da Catedral de Santa Maria Assunta, na ilha de Torcello, Veneza, Itália.  Cristo Pantocrátor, entronizado e em Majestade, ladeado pelos Arcanjos Miguel e Gabriel; figura de Jesus com cabelo e barba longos, e agora também claros, quase louros; nimbo crucífero, mão direita em bênção, Evangelhos na esquerda.  Fins do séc. XI ou inícios do séc. XII dC; decoração executada em estilo bizantino, mas provavelmente por artistas locais, ou com o trabalho auxiliar de artistas locais.

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Cristo no Monte das Oliveiras – duas cenas num único painel: Jesus (cabelos claros, barba negra) orando, com os discípulos adormecidos, vencidos pelo sono (esquerda), e instando os discípulos a se manterem vigilantes (direita).  Ala sul da basílica de São Marcos, Veneza, mosaico, c. 1215-1220.  Embora ainda mantendo inegável ligação com o estilo bizantino, notam-se diferenciações tanto no tratamento e arranjo do tema (fora das cenas fixas e estereotipadas da arte bizantina) quanto na própria representação das figuras (que apresentam semelhanças com o estilo gótico francês – influenciador ou influenciado?).

clip_image014 Catedral de Monreale, 15 km ao sul de Palermo, Sicília.  Mosaico do Cristo Pantocrátor na calota da abside.  Jesus é apresentado com cabelo e barba longos (cabelo castanho-claro, barba negra, levemente bifurcada), nimbo crucífero, mão direita em bênção, segurando os Evangelhos abertos com a esquerda, onde se lê a usual passagem de João 8:12 tanto em grego (Egô eimi to Phôs tou Kosmou…) quanto em latim (Ego sum Lux Mundi…).  Os mosaicos de Monreale foram confeccionados por artistas bizantinos, a mando do normando Guilherme II, rei da Sicília (1166-1189), entre 1174 e 1185.

clip_image016Basílica de Santa Maria do Trastevere, Roma, mosaico da calota da abside, c.1140-1143, mostrando Cristo e a Virgem, entronizados e em Majestade.  Nessa composição, pela primeira vez, Maria é representada entronizada junto a Seu Filho.  Ambas as figuras, suntuosamente vestidas, encontram-se sentadas num trono luxuoso, ornamentado à profusão com esmaltes, marchetaria de madeiras nobres e gemas.  Cristo veste uma túnica com bordas decoradas e um manto (pallium) dourado; a Virgem usa uma coroa de ouro, pedras preciosas e pérolas, e roupas ricamente bordadas.  Cristo, com cabelo e barba longos e nimbo crucífero, ampara com Sua mão direita o ombro direito da Mãe de Deus, e segura, com a esquerda, um códice aberto, onde se lê o início da liturgia da festa da Anunciação (Veni, electa mea, et ponam in te thronum meum, “vem, ó Minha eleita, e compartilha de Meu trono”).  Maria, apontando para Cristo, mostra um rolo com o texto do Cântico dos Cânticos, cap. 2º, vers. 6º, Leva eius sub capite meo et dextera illius amplexabitur me (“Sua mão esquerda está sob a minha cabeça, e Sua direita me abraça”).  A basílica de Santa Maria do Trastevere foi construída sob o pontificado de Inocêncio II (1130-1143), que também encomendou sua decoração.  Embora a construção tenha terminado apenas em 1148, o mosaico da calota da abside já se encontrava terminado antes da morte do pontífice.

clip_image018Basílica de Santa Maria Maior, Roma, Coroação da Virgem, mosaico circunscrito num medalhão no centro da calota da abside.  A nova decoração da abside e do coro dessa importante basílica romana foi comissionada pelo papa Nicolau IV (1288-1292).  Os trabalhos na abside ficaram a cargo do mosaicista Tiago (Jacopo) Torriti; iniciaram-se em 1291, tendo sido terminados em 1296, já depois da morte do pontífice.  Essa foi a primeira vez em que, na calota da abside, não aparecia o costumeiro friso com cordeiros, simbolizando Cristo (Aguns Dei) e os Apóstolos.  Cristo, na Sua representação canônica já consagrada (mas, note-se, com cabelos castanho-claros, quase dourados, e barba castanha), coroa a Virgem com a mão direita, segurando na esquerda um códice aberto com o início da liturgia da festa da Anunciação (Veni, electa mea, et ponam in te thronum meum, “vem, ó Minha eleita, e compartilha de Meu trono”, cf. ilustração anterior).  Ambas as personagens, compartilhando dum mesmo trono, apresentam-se em ricas vestes douradas, com a Virgem erguendo os braços na direção de Cristo, em atitude de interseção pela Humanidade.  Circundando o trono, o Céu estrelado, com o Sol e a Lua na parte inferior do medalhão, e hostes de Anjos adoradores.  Já se nota aqui uma arte plenamente madura e individualizada, fundindo elementos clássicos e bizantinos numa composição original.

O Triunfo da “Imagem Canônica” no Ocidente III – A Recepção: 

A partir, basicamente, das três rotas de penetração anteriormente mencionadas (Roma, Veneza, Sicília), a representação agora “canônica” e virtualmente exclusiva de Jesus difundiu-se para o restante da Europa Ocidental, inicialmente em direção ao norte da Itália e da Lombardia, da França e da Alemanha; e, daí, para a Espanha, as Ilhas Britânicas, a Escandinávia e o restante da Europa Norte-Oriental.  Tratou-se dum processo lento, relativamente complexo, com várias influências recíprocas entre todas essas regiões, mas de constante avanço, ao longo dos séculos X, XI e XII dC, na esteira de peregrinos (nas visitas a Roma, as “romarias”, vindas principalmente da França e da Alemanha), de comerciantes (nas rotas terrestres partindo de Veneza para a Lombardia e a Alemanha, e nas marítimas da Sicília para toda a região que se estendia da Ligúria à Catalunha), de artistas e mesmo de objetos de uso litúrgico, especialmente ícones e crucifixos (das oficinas bizantinas, e de suas congêneres romanas, venezianas ou sicilianas, para o norte da Itália, e daí um pouco para toda a parte).

Esse processo coincidiu com o estabelecimento de importantes rotas de peregrinação, ligando, principalmente, o norte e o centro da França, os Países Baixos, a Renânia e o sul da Alemanha aos pólos de Roma, ao sul, e de Santiago de Compostela, no extremo oeste (com a progressiva Reconquista da Península Ibérica aos muçulmanos); e também ao vigoroso processo de crescimento econômico verificado na Europa Ocidental (com destaque para o norte da França, os Países Baixos, a Renânia e o sul da Alemanha, o “miolo” da Europa, mas que também ocorreu em todo o restante da Cristandade Ocidental) entre, aproximadamente, os meados do séc. X e os finais do séc. XIII (c.950 a c.1300 dC, grosso modo).  E teve como conseqüência, entre outras coisas, um florescimento artístico notável, inicialmente sob o estilo dito “românico”, depois (a partir dos finais do séc. XII dC e ao longo do séc. XIII dC) sob o “gótico”.

Os temas recebidos de Roma, de Veneza e da Sicília, quer ainda impregnados de influência bizantina (caso dos dois últimos lugares), quer já representando uma tradição própria, embora também influenciada pela arte bizantina pós-iconoclasta (caso de Roma), ao longo desse processo, foram sendo sucessivamente repensados e retrabalhados, afastando-se dos modelos iniciais e gerando novos temas e novos estilos, originais e ao mesmo tempo vigorosos.

Cristo, antes tratado como o Pantocrátor triunfante, começa a ganhar contornos mais humanos; começa, a pouco e pouco, a ser enfatizada a Sua compaixão para com os pecadores e, cada vez mais, o Seu sofrimento na Cruz.  A “imagem” de Cristo apresenta-se diante do fiel como um instrumento de interiorização, como um convite à meditação, um voltar-se para dentro de si mesmo, a partir da reflexão sobre a vida, os exemplos, a bondade e o Sacrifício Salvífico de Jesus – completa-se, assim, a partir do séc. XIII, o caminho da imagem (o ícone, o baixo relevo) à descrição (que desaguaria nas obras meditativas e, enfim, entre outros documentos, na “carta de Lêntulo”).

 

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Crucifixo de Fernando e Sancha (c.1065 dC), oferta de Fernando I o Grande (conde de Castela 1029-1037; rei de Leão e Castela 1037-1065) e de sua esposa Sancha (condessa de Castela 1032-1037; rainha de Leão e Castela 1037-1067) à basílica de Santo Isidoro de Leão, e atualmente no Museu Arqueológico Nacional, em Madri.  Marfim, larg. 7 cm, espessura 1 cm, haste vertical 52 cm, haste horizontal 34,5 cm.  Cristo (barbado, e de cabelos longos) é representado vestindo um saiote com nó frontal, os pés pregados separadamente num suppedaneum.  Apesar de se notarem algumas influências da arte bizantina pós-iconoclasta (a cabeça inclinada, a cessação do uso do colobium), a imagem de Cristo mostra muito mais serenidade do que sofrimento – o torso e as pernas, p.ex., mantêm-se em perfeita verticalidade, sem nenhum indício de dor.  Jesus é ainda o Christus gloriosus, ou Christus triumphans (“Cristo Triunfante”), que, mesmo na Cruz, mostra o Seu poder e a Sua dignidade de Filho de Deus.  Sobre a imagem de Cristo, o titulus crucis IHS(us) NAZARENVS REX IVD(a)EORV(m), “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”; acima da inscrição, uma miniatura de Cristo Ressuscitado.  Ao pé da cruz, uma figura de Adão, e, abaixo, a dedicatória FREDINANDVS REX / SANCIA REGINA.  Nas bordas, representações de almas humanas (figurinhas nuas), subindo aos Céus ou despencando para o Inferno. 

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Tímpano do portal oeste da igreja abacial de Santa Fé (Sainte Foy), em Conques, sul da França, esculpido entre 1107 e 1125 dC.  A cidade de Conques situava-se numa das quatro grandes rotas francesas para Santiago de Compostela, a assim denominada Via Podiensis (“Caminho de Le Puy”), que, partindo de Le Puy, seguia por Estaing, Conques, Cahors, Moissac e região de Agen, La Romieu, Eauze e enfim Saint-Jean Pied-de-Port, daí ultrapassando os Pireneus, alcançando Roncesvales (Roncevaux) e seguindo então o Caminho Francês, por Pamplona, Logronho, Burgos, Leão, Astorga e Ponferrada, até Compostela.  Além disso, Conques possuía atrativos próprios para os peregrinos – as famosas relíquias de Santa Fé (Sainte Foy), jovem virgem e mártir da época da Grande Perseguição de Diocleciano (fins do séc. III e inícios do séc. IV dC).  A prosperidade de Conques e arredores, quer pelo desenvolvimento da agricultura na região, quer pelo papel da cidade na rota de Santiago (e também como centro de peregrinação de pleno direito, tendo em vista as relíquias de Santa Fé), levaram à necessidade de expansão da igreja abacial.  As obras iniciaram-se sob o governo do Abade Odorico (1031-1065 dC), tendo sido as estruturas (mas não toda a decoração) enfim terminadas por volta de 1120 dC.  O tímpano (que ainda mostra traços de sua pintura policrômica) encontra-se entre os mais representativos, e também mais bem conservados, da época românica, e tem como tema o Juízo Final.  No centro, dominando a composição, o Cristo Triunfante, numa mandorla (auréola ovalada, em forma de amêndoa, ou de folha).  À Sua direita (à esquerda de quem olha), os Justos e (abaixo) o Paraíso; à Sua esquerda (à direita de quem olha), os Condenados e (abaixo) o Inferno.  O Céu e o Inferno são retratados (no friso inferior) como duas habitações, ambas com portas de entrada.  No Inferno (à direita de quem olha), as almas condenadas são empurradas goela abaixo dum monstro, a personificação do próprio Inferno, sofrendo, dentro da habitação infernal, terríveis castigos.  No Paraíso (à esquerda de quem olha), as almas salvas são recebidas à entrada por Anjos, que gentilmente as conduzem para o interior da habitação celestial; no centro, Abraão abraça duas almas; é flanqueado, nas várias arcadas, por Profetas à direita e por Santos à esquerda, representados por pares de homens e mulheres.

clip_image023 Detalhe do Cristo Triunfante do tímpano do portal oeste da igreja abacial de Santa Fé, Conques, mostrado na ilustração anterior.  Trata-se da imagem canônica; Jesus apresenta-se com cabelos e barba longos e nimbo crucífero; encontra-se sentado num trono, a mão direita em bênção, mas a esquerda como que mostrando toda a cena do Juízo Final – e, principalmente, apontando para o Inferno e a condenação dos pecadores.  Cristo encontra-se envolvido por uma mandorla, ladeado, acima e abaixo, por quatro Anjos.  Os dois Anjos na parte inferior carregam candelabros com velas; os dois da parte superior carregam rolos abertos, com textos alusivos aos Justos e aos Condenados.  O Anjo à direita de Cristo (à esquerda de quem olha) ostenta, em forma abreviada, a citação de Mateus, cap. 25, vers. 34, Venite, benedicti Patris mei, possidete paratum vobis regnum (“Vinde, ó benditos de Meu Pai, tomai posse do Reino para vós preparado”); o Anjo à esquerda de Cristo (à direita de quem olha) exibe em seu rolo a inscrição Discedite a me, seguida por fragmentos de letras irreconhecíveis, mas que deveriam apresentar, de forma abreviada, a expressão maledicti in ignem aeternum, cf. Mateus, cap. 25, vers. 41: “Afastai-vos de Mim, ó condenados, ide para o fogo eterno”.  Nota-se já um alto grau de reelaboração dos temas tradicionais.

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Maiestas Domini, afresco de São Clemente de Taull, Espanha, c. 1123 dC.  Originariamente na calota da abside central da basílica de São Clemente de Taull, Catalunha (uma igreja de três naves e três absides), o afresco original foi removido (e restaurado), encontrando-se agora no Museu Nacional de Arte da Catalunha, em Barcelona.  Cristo em Majestade (Maiestas Domini), na Sua representação canônica, com cabelos e barba longos, nimbo crucífero, letras gregas alfa e ômega (o Princípio e o Fim, simbolizando a plenitude do poder de Deus), túnica e manto (pallium), mão direita em bênção, Evangelhos abertos na esquerda, com a inscrição Ego sum Lux Mundi (“Eu sou a Luz do Mundo”), apresenta-se para executar o Juízo Final.  A figura de Jesus mostra-se envolvida por uma mandorla, em cujas bordas se representa o arco-íris, estando Jesus sentado na abóbada celeste e com os pés repousando sobre a Terra, ladeado por dois Arcanjos e dois Querubins e (na parte inferior da mandorla) por dois Anjos e pelos Quatro Animais, representando os Quatro Evangelistas, em medalhões.  Abaixo da calota, um friso com Santos.  A igreja de São Clemente de Taull foi consagrada em 1123 pelo bispo Raimundo, antigo abade de São Sernino, em Toulouse.  Novamente, notam-se as variações regionais sobre um tema já tradicional, diretamente derivado da antiga representação do Pantocrátor.  A figura do Salvador, em Glória, é reconhecível em toda a parte, e segue o padrão canônico agora já estabelecido, mas o estilo e o arranjo obedecem, com uma liberdade desconhecida no Oriente, a tendências e preferências locais.

clip_image026 Crucifixo de Sarzana, têmpera sobre madeira de nogueira, 1138 dC (280 x 210 x 8 cm), Catedral de Sarzana, Ligúria, norte da Itália.  Os grandes crucifixos pintados sobre madeira, cortada no formato da cruz (croce dipinta), estão entre os mais antigos gêneros de pintura que se desenvolveram na Itália.  O assim denominado “Crucifixo de Sarzana” é o mais antigo da espécie até agora conhecido, e pode ser datado a partir duma inscrição em versos latinos (hexâmetros leoninos) na própria obra (abaixo do titulus da Cruz), que informa ter sido a mesma confeccionada por um certo mestre Guilherme, no ano de 1138: ANNO MILLENO CENTENO TER QVOQVE DENO OCTAVO PINXIT GVILIELMVS ET HEC METRA FINXIT (cf. “The Crucifix of Guilielmus at Sarzana”, Georg Martin Richter, “The Burlington Magazine for Connoisseurs”, vol. 51, no 295, outubro/1927, pág. 162); um artista, assim, versado em poesia latina e, portanto, pessoa de cultura ímpar para a época, quase certamente um clérigo.  Como visto, a Crucifixão estava ausente da arte cristã primitiva pré-constantiniana, e era raríssima até à época iconoclasta; mesmo após o fim do Iconoclasmo, o tema da Crucifixão permaneceu relativamente raro (embora não ausente) na arte bizantina, onde se preferia representar Cristo como o Pantocrátor.  Também no Ocidente, preferia-se retratar Cristo sob a Majestade do Juízo Final (Maiestas Domini), e mesmo as representações da Crucifixão procuravam enfatizar não a Sua dor, mas sim o Seu triunfo sobre a morte – o Christus triumphans, como neste caso, que mostra um Jesus (seguindo a representação canônica e ladeado pela Virgem e por São João Evangelista) sereno, digno, no controle da situação.  Contudo, notam-se já indícios (ainda que silenciosos e sutis) duma revolução – testemunhados pela própria encomenda desses grandes crucifixos, de c.3 m de altura, destinados à exposição nos altares ou capelas, e, assim, a serem vistos pelos fiéis, para quem o sofrimento de Cristo tornava-se mais próximo.

clip_image027 Detalhe do tímpano do portal oeste da Catedral de São Trófimo (Saint Trophîme), Arles, Provença, sul da França, c.1170-1178.  A catedral, dedicada a São Trófimo, por tradição o primeiro bispo de Arles, começou a ser construída pelos finais do séc. XI ou inícios do séc. XII, no local duma antiga igreja dedicada a Santo Estêvão; nos meados do século XII o edifício em si já estava substancialmente concluído, já que em 1152 o arcebispo de Arles, Raimundo de Mondredon, transferiu as relíquias de São Trófimo da basílica de Santo Estêvão, em Alyscamps (a antiga necrópole de Arles, na entrada sudeste da cidade), para a nova Catedral.  Não obstante, o tímpano somente foi terminado nalguma data entre c.1170 e 1178 (estando já concluído nesse último ano, quando o imperador germânico Frederico I Barba Ruiva foi solenemente coroado nessa igreja pelo arcebispo de Arles, Raimundo de Bollène).  Até aos fins do séc. XII Arles era um ativo porto, uma próspera cidade, e centro político e cultural da Provença.  Cristo apresenta-se sereno e em Majestade, numa mandorla, na representação canônica usual (barba e cabelos longos), mas aqui coroado, como Rei do Universo; Sua mão direita ergue-se em bênção, e a esquerda segura os Evangelhos.  Cristo está cercado pelos Quatro Animais, simbolizando os Quatro Evangelistas.

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O assim denominado “Saltério Westminster”, c.1200, pergaminho, fólio 14 recto (23 x 15,5 cm).  Cristo em Majestade (Maiestas Domini), em Sua representação canônica, cabelos longos e barba, rosto sereno, voltado diretamente para o espectador.  Envolvido numa mandorla, Jesus assenta-Se sobre os Céus, com os pés pousando na Terra; nimbo crucífero, mão direita em bênção, a esquerda segurando um códice aberto, no qual se lê “Iesus” (Jesus) e as letras alfa e ômega, primeira e última do alfabeto grego, simbolizando o Princípio e o Fim, e, dessarte, a plenitude do poder de Deus, que tudo abarca.  Ladeando a mandorla, os Quatro Animais, simbolizando os Quatro Evangelistas: o Homem, ou Anjo (Mateus), a Águia (João), o Leão (Marcos) e o Touro (Lucas).  Executado para a Abadia de Westminster c. 1200 dC, este Saltério (Royal MS 2 A XXII) encontra-se atualmente na Biblioteca Britânica (British Library), em Londres.  Testemunha a persistência da imagem do Cristo Triunfante, herdada do Pantocrátor bizantino, no Ocidente. 

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Sacramentário de Bertoldo (c.1215-1217), pergaminho, fólio 10 verso (29,2 x 20,3 cm), Crucifixão.  Um sacramentário era (na época pré-tridentina) um elenco de todas as orações e de todos os responsos proferidos por um celebrante (usualmente um bispo, mas também abades e sacerdotes) em várias ocasiões – missas, ordenações, bênçãos, exorcismos, consagração de altares ou de igrejas, etc.  O sacramentário aqui mencionado foi encomendado c.1215-1217 por Bertoldo de Hainburg, abade do mosteiro beneditino de Weingarten, na Suábia (1200-1232); encontra-se atualmente no Museu e Biblioteca Pierpoint Morgan, em Nova York (M 710).  Cristo, na Sua representação canônica (barbado e de cabelos longos – e castanho-claros), com nimbo crucífero, vestindo um saiote com nó frontal e pés pregados separadamente (mas sem suppedaneum), encontra-Se ladeado pela Virgem e por São João Evangelista; nos cantos da ilustração, quatro medalhões, com os Quatro Animais (simbolizando os Quatro Evangelistas).  Nota-se na cena um aumento do pathos em todas as figuras: a Virgem e São João desolados, Cristo morto, de olhos fechados, feições tristes, cabeça pendente, corpo, com os músculos tensos e bem delineados, ligeiramente arqueado à esquerda (de quem olha) – mais do que no triunfo, a ênfase recai no sofrimento de Jesus.  Ele já não Se apresenta como uma figura distante, inalcançável, o terrível Juiz que julgará o Mundo, mas sim como o Filho de Deus que Se sacrificou para redimir a Humanidade – como logo iriam pregar as novas ordens mendicantes, os Dominicanos de São Domingos de Gusmão (1170-1221) desde 1216-17 e os Franciscanos de São Francisco de Assis (1181/82-1226) desde 1210. 

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O famoso “Crucifixo do Mestre Bizantino de Pisa”, c.1210.  Têmpera sobre madeira, croce dipinta, 297 x 234 x 8 cm, atualmente no Museu Nacional de São Mateus, Pisa.  Executado por um artista desconhecido, mas íntimo da tradição bizantina (conhecida na república marítima de Pisa por seus laços comerciais com o Oriente, intensificados a partir da conquista de Constantinopla pelos cruzados em 1204), esse crucifixo, apesar do tratamento “convencional”, anuncia a passagem, nos grandes crucifixos expostos nas igrejas, do Christus triumphans (“Cristo Triunfante”) para o Christus patiens (“Cristo Padecente”).  Cristo (na representação canônica) encontra-Se com a cabeça pendente, olhos fechados, fisionomia triste, braços dobrados, corpo levemente arqueado; vestido com um saiote com nó frontal, tem os dois pés pregados separadamente (aparentemente sem suppedaneum).  Envolvem o Crucifixo uma série de temas, alguns retirados diretamente da tradição bizantina.  Ao alto, num pequeno medalhão, um Pantocrátor; numa pequena trave horizontal, quatro Arcanjos e dois Querubins; logo abaixo, o titulus crucis (“Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”); nos extremos da haste horizontal, as Mulheres de Jerusalém se lamentam; aos pés da Cruz, a Ressurreição e a Descida ao Limbo.  Nas laterais, à esquerda (de quem olha) a Deposição da Cruz, o Preparo do Corpo de Jesus e Seu Sepultamento; à direita (de quem olha), o Anúncio do Anjo às Piedosas Mulheres de que Jesus havia ressuscitado, a Aparição aos Discípulos de Emaús e a Ascensão.

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Crucifixo de Bolonha (c.1240-1250), de Junta (Giunta) Pisano (ativo c.1229-c.1254), têmpera e folhas de ouro sobre madeira, 316 x 285 x 8 cm.  Elaborando a tradição bizantino-pisana (ver ilustração anterior), Junta Pisano representou, em seus crucifixos, a passagem definitiva do Cristo Triunfante (Christus triumphans) para o Cristo Padecente, ou Sofredor (Christus patiens) – tanto pelo seu estilo apurado quanto pela importância de seus comissionadores.  Sua primeira grande obra foi um crucifixo no “novo estilo” confeccionado em 1236 para a Basílica de São Francisco, em Assis (a igreja-sede dos Franciscanos); essa obra se perdeu, mas, por uma gravura do séc. XVIII, sabe-se que era bastante semelhante ao crucifixo aqui apresentado, feito entre c.1240-1250 para a Basílica de São Domingos, em Bolonha (a igreja-sede dos Dominicanos).  Cristo, na representação canônica, nimbo crucífero, pés pregados separadamente, apresenta-Se de cabeça pendente à esquerda (de quem olha), olhos fechados, fisionomia triste; os braços encontram-se levemente encurvados, as mãos abertas, numa atitude que lembra uma súplica; o corpo mostra-se arqueado para a esquerda, com músculos bem delineados.  Nenhuma cena lateral, que pudesse desviar o olhar do fiel do próprio Cristo; a Virgem e São João Evangelista aparecem em pequenos painéis nos extremos da haste horizontal.  Aos pés da Cruz, a dedicatória CVIVS DOCTA MANVS ME PINXIT IVNTA PISANVS (“Junta Pisano me pintou, com sua hábil mão”).  Os dois grandes crucifixos de Junta Pisano, no altar central das duas grandes basílicas das ordens mendicantes (Franciscanos e Dominicanos), tornariam tanto a representação canônica de Cristo quanto Seu sofrimento na Cruz pela Salvação da Humanidade rapidamente conhecidos em toda a Europa.

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Crucifixo de Cimabue na igreja da Santa Cruz (Santa Croce), Florença, 1287-1288, têmpera e folhas de ouro sobre madeira, 448 x 390 x 8 cm.  Bencivieni de Pepo (c.1240 – c.1302), conhecido como Cimabue, florentino de nascimento, não apenas continuou a tradição de Junta Pisano, mas levou-a um passo mais adiante, no sentido duma representação mais acurada do corpo e do rosto humanos.  Tal evolução pode ser notada nesse crucifixo, encomendado para a igreja franciscana da Santa Cruz, em Florença.  Segue a agora comum tradição do Cristo Padecente (Christus patiens): Jesus, na Sua representação canônica, com nimbo crucífero, tem a cabeça pendendo à esquerda de quem olha, olhos fechados, feições tristes; pés pregados separadamente, mas sem suppedaneum; o saiote segue a disposição tradicional, com um nó frontal, mas como que adere ao corpo do Crucificado, que, arqueado à esquerda (de quem olha), é pintado com grande perícia – os músculos não mais se destacam com linhas, mas seguem num continuum de claro e escuro (compare-se com a ilustração anterior).  A decoração da Cruz é sóbria, a fim de concentrar a atenção do espectador na figura de Cristo; apenas a Virgem e São João Evangelista aparecem, em pequenas imagens, nos extremos da haste horizontal.

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Crucifixão, Capela Scrovegni (também chamada Capela Arena), Pádua, Itália, da autoria de Giotto, 1304-1306; afresco, 200 x 185 cm.  Com Giotto de Bondone (1267-1337), sucessor de Cimabue, a pintura italiana atinge sua plena maturidade, libertando-se das últimas influências bizantinas e já se deslocando decisivamente em direção à Renascença.  A Capela Scrovegni, dedicada a Nossa Senhora da Anunciação, foi encomendada a Giotto c.1301 por Henrique Scrovegni, filho de Reginaldo Scrovegni, um rico banqueiro de Pádua.  Giotto, que era arquiteto, além de pintor, projetou e construiu a Capela (que foi terminada por volta de 1304), e também a decorou (1304-1306).  O pai de Henrique Scrovegni, Reginaldo, havia morrido sem enterro cristão, por suspeita de usura (de fato, Dante o colocou, entre os usurários, no sétimo círculo do Inferno, cf. Canto 17, versos 43-75, especialmente 64-66); diante disso, seus bens estavam bloqueados, e, ao que parece, a construção e a decoração da Capela da Anunciação, em “grande estilo”, às expensas da família, fazia parte dum acordo entre os Scrovegni e o bispo de Pádua, como contrapartida à liberação dos bens do finado Reginaldo a seu filho Henrique.  O tratamento dado ao corpo de Cristo (com nimbo crucífero e pés pregados separadamente num suppedaneum) já é anatomicamente realista, e também em consonância com a idéia do Christus patiens.  A cena, embora incorpore temas tradicionais, é tratada com grande liberdade artística e alta perícia técnica.  Anjos lamentam a morte do Salvador; à Sua direita (à esquerda de quem olha), a Virgem, de azul, agoniada, desmaia, e é amparada por São João Evangelista e por outro discípulo; à Sua esquerda (à direita de quem olha), os soldados disputam o manto de Cristo, mas o centurião (com um nimbo) aponta para Jesus, e o reconhece como Filho de Deus (cf. Mateus 27:54 e Lucas 23:47).  Aos pés da Cruz, e de Cristo, vê-se Maria Madalena, ajoelhada e em prantos, mostrando seus longuíssimos cabelos. 

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Juízo Final (detalhe), Capela Scrovegni (também chamada Capela Arena), Pádua, Itália, da autoria de Giotto, 1304-1306.  Ocupando toda a parede do fundo da capela encontra-se um enorme afresco (1000 x 840 cm) do Juízo Final; mostra-se aqui um detalhe do mesmo, com o Cristo Triunfante, na Sua representação canônica, sentado nos Céus, com os pés sobre a Terra, envolvido numa oval, de onde saem coros angélicos – tratamento inovador, e cheio do novo “realismo”, dado a temas tradicionais.  As paredes laterais da Capela Scrovegni exibem três níveis de afrescos.  O mais alto retrata cenas da vida de São Joaquim e Sant’Ana (pais da Virgem), bem como da própria Virgem (as cenas são tomadas principalmente do apócrifo Protoevangelho de Tiago, do modo como fixados na “Narrativa Áurea” de Tiago de Voragine); o afresco da Anunciação, no arco sobre o altar, celebra a padroeira da capela, Nossa Senhora da Anunciação, mostrando-se também como um elo de ligação entre esse primeiro nível de afrescos e os dois que lhe seguem.  As duas outras faixas de afrescos, abaixo desse primeiro nível, exibem diversas cenas da vida de Cristo, do Nascimento até à Ascensão e Pentecostes (Natividade, Adoração dos Magos, Apresentação no Templo, Fuga para o Egito, Massacre dos Inocentes, Cristo entre os Doutores do Templo, Batismo de Jesus, Bodas de Caná, Ressurreição de Lázaro, Entrada em Jerusalém, Expulsão dos Vendilhões do Templo, Traição de Judas, Última Ceia, Lava-Pés, Prisão de Cristo, com o Beijo de Judas, Jesus diante de Caifás, Soldados Zombando de Jesus, Caminho ao Calvário, Crucifixão, Enterro de Cristo, Ressurreição, Ascensão e Pentecostes).

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Crucifixão, painel do retábulo da Virgem em Majestade (Maestà), originariamente no altar-mor da Catedral de Siena.  Têmpera e folhas de ouro sobre madeira, 100 x 76 cm, 1308-1311, executado por Duccio, atualmente no Museu das Obras da Catedral (Museo dell’Opera del Duomo), Siena, Itália.  O retábulo da Virgem em Majestade é considerado a obra-prima de Duccio de Buoninsegna (c.1255/60 – c.1318/19); trata-se dum políptico (i.e., uma composição em vários painéis) com um grande quadro de Santa Maria Rainha do Céu e vários painéis, em ambos os lados, com cenas da vida da Virgem e de Cristo.  Todo o conjunto, quando completo, possuía 4,5 m de altura e 4,8 m de comprimento.  A composição é altamente realista e denota grande perícia técnica, quer no tratamento do corpo humano (vestido ou não), quer no drapeado das vestes, quer nos sentimentos exibidos pelas expressões faciais, tratadas como que individualmente.  Em destaque, dominando a cena, Cristo, na representação canônica, pende dramaticamente da Cruz, os olhos fechados, a cabeça inclinada, o corpo vergado pelo peso e pelo sofrimento, as pernas dobradas, os pés pregados por um único cravo num suppedaneum; no alto, os Anjos lamentam a morte do Salvador.  À direita de Cristo (à esquerda de quem olha), o Bom Ladrão e os partidários de Jesus, ordenadamente distribuídos, com expressões de tristeza e de melancolia – a Virgem, toda de azul, desmaia de aflição, e é amparada pelas Piedosas Mulheres e por São João Evangelista; à esquerda de Cristo (à direita de quem olha), o Mau Ladrão e os inimigos de Jesus – uma multidão amorfa de soldados e de judeus, que d’Ele zombam, o escárnio e o ódio estampados nos rostos. 

Algumas Pequenas Observações, à Guisa de Conclusão: 

É conveniente parar por aqui, nos inícios do séc. XIV, algumas décadas antes da aparição, pela primeira vez (e ainda anônima) da “carta de Lêntulo”, no prefácio das “Meditações Sobre a Vida de Cristo”, a mais famosa obra de Ludolfo da Saxônia, monge cartuxo (c.1295 – 1378), terminada por volta de 1374. 

Acompanhou-se, ainda que, forçosamente, de modo resumido (e, de longe, não exaustivo), desde as primeiras manifestações artísticas cristãs até ao início do séc. XIV, dois temas presentes na “carta de Lêntulo”, e que, de fato, tornaram possível a confecção desse documento, do modo como foi feito, e na época em que foi feito: 

·        A imagem “canônica” de Cristo, como o adulto barbado e de cabelos longos;

·        As considerações sobre o aspecto humano de Cristo, Seus sentimentos, Sua solidariedade para com a Humanidade e, enfim, Seu sofrimento na Cruz, o qual, ao mesmo tempo em que garantiu a Salvação do gênero humano, mostrou o Filho de Deus próximo de nós, e como que compartilhando nossas dores e angústias. 

Como se espera ter ficado claro ao longo da exposição deste Apêndice, a “carta de Lêntulo” (documento espúrio, tanto no seu conteúdo quanto no seu pretenso autor) não contribuiu em absoluto para o desenvolvimento de nenhuma das duas tendências acima mencionadas – ao contrário, sua confecção tornou-se possível a partir do desenvolvimento, e da maturação, dessas duas tendências. 

A “carta de Lêntulo” não foi causa de nada; ao contrário, ela foi uma das consequências do desenvolvimento dos dois processos citados anteriormente. 

A Imagem Canônica de Cristo (Physiognomia Christi): 

Não há nenhuma narrativa evangélica, ou testemunho apostólico, ou dos Padres Apostólicos, acerca do aspecto físico de Jesus.  Quando mencionavam tal assunto, os escritores cristãos da época pré-constantiniana utilizavam-se de duas passagens bíblicas para defender quer um aspecto físico “feio”, quer um aspecto físico “belo” para Cristo, sendo que a hipótese da feiúra (fealdade) foi a mais antiga.  Em nenhum momento foi citada uma “carta de Lêntulo” para justificar tais concepções, e essa personagem, bem como sua “carta”, permaneceram completamente desconhecidas. 

Quando, além das considerações literárias, passam a se considerar as representações artísticas de Jesus nas catacumbas, entre os meados do séc. III dC e os inícios do séc. IV dC, vê-se que Cristo é invariavelmente representado como um jovem imberbe, de cabelos curtos, ou não muito longos, em flagrante contraste, aliás, com a descrição constante na “carta de Lêntulo”.  Tal representação da physiognomia Christi não se baseava em nenhuma tradição conhecida, sendo apenas uma idealização – Jesus era representado de modo semelhante a Apolo, ou a Orfeu, a juventude simbolizando a eternidade, a divindade, enfim, a vitória sobre a Morte. 

Não tem nenhuma validade a hipótese (aliás indemonstrável) de que os cristãos teriam o conhecimento “secreto” do verdadeiro aspecto físico de Jesus, e apenas após a cessação das perseguições passaram a representa-Lo de tal modo, não o tendo feito antes por motivos de segurança, porque: 

·        O Cristianismo começou a ganhar tolerância a partir do Edito de Milão (311 dC), e viu-se totalmente livre de ameaças com a vitória final de Constantino sobre Licínio (324 dC), mas os mais antigos exemplos do uso da “representação canônica” de Jesus encontram-se em Roma no último quartel do séc. IV dC e nos inícios do séc. V dC, ou seja, mais de 50 anos após a Paz da Igreja – e não há nenhum indício de que a mencionada “representação canônica” fosse utilizada na arte oficial cristã patrocinada por Constantino e seus filhos de c.310 a c.360 dC;

·        A representação tradicional na arte das catacumbas (Cristo jovem, imberbe, com cabelos curtos, ou não muito longos) permaneceu em uso ao longo dos sécs. IV, V e VI dC, e mesmo além;

·        Da mesma forma que o “Cristo Jovem” podia passar por Apolo ou Orfeu (e, assim, “enganar” os perseguidores), um “Cristo Barbado e de Longos Cabelos” podia passar por Júpiter ou Serápis, e, da mesma forma, também “enganar” os perseguidores; o fato de isso não ter ocorrido mostra convincentemente que não se cogitava, antes do último quartel do séc. IV dC (mais de 50 anos após a Paz da Igreja), em representar Cristo dessa maneira – ou seja, desautoriza por completo a existência de qualquer tradição sólida e segura a esse respeito, e, por conseguinte, demonstra a inexistência duma “carta de Lêntulo”, ou mesmo dum “núcleo” autêntico duma “carta de Lêntulo”, à época. 

A “representação canônica” de Jesus, tanto quanto se pode julgar a partir do que restou, surgiu, assim, em Roma, no último quartel do séc. IV dC; os mais antigos testemunhos são o Cristo de Óstia, de marchetaria de mármore, o mosaico do Cristo Triunfante da abside de Santa Pudenciana e o afresco do Cristo do teto do cubiculum Leonis, nas catacumbas de Comodila.  De origem obscura, pode ter surgido a partir do desejo de ligar a representação de Cristo a uma figura que representasse o poder patriarcal. 

A partir daí, a “representação canônica” iniciou um longo processo de difusão e de aceitação, quer no Oriente, quer no Ocidente.  No Oriente, o triunfo dessa nova representação mostrou-se absoluto a partir do final da crise iconoclasta (843 dC); no Ocidente, quer pela tendência local já discernível, quer pela própria influência da arte bizantina pós-iconoclasta, esse triunfo também acabou por se dar, entre os sécs. IX e X dC, mantendo-se a partir de então. 

Note-se que, em todo esse processo, não há nem uma única menção à “carta de Lêntulo”, e muito menos ao seu fantasmagórico autor.  Ora, se tal documento fosse conhecido por ocasião da Querela das Imagens (726-843 dC), com certeza teria sido utilizado como arma ideológica na polêmica de então, como muitos outros escritos o foram; no entanto, o silêncio que cerca a “carta de Lêntulo” (e o seu autor) é completo – um indício seguro de que o documento não era do conhecimento de ninguém, de absolutamente ninguém, na época; ou seja, que, simplesmente, não existia. 

Por conseguinte, a “carta de Lêntulo” não foi a geradora da “imagem canônica” de Cristo; ao contrário, ela foi escrita numa época em que tal “imagem canônica” (o Cristo adulto, barbado, de cabelos longos) já estava estabelecida de modo inconteste, sendo considerada por qualquer fiel, fosse ou não culto, como “a” representação de Cristo – ou seja, no mínimo, após o séc. X dC. 

A Humanidade de Cristo (Christus Patiens): 

A “carta de Lêntulo” não é um relatório das atividades dum suposto “subversivo”, mandado ao Imperador, em Roma (ou, pior ainda, ao Senado…), por um oficial romano presente na Judéia procuratoriana (quem quer que tenha sido, e qualquer que tenha sido o seu cargo ou “status”), e isso, basicamente, por duas razões: 

·        Porque tal tipo de documento não existia.  Autoridades locais serviam justamente para manter a ordem, recolher os impostos devidos e também para resolver distúrbios locais, sem a necessidade de se fazer perder o tempo do Imperador, ou das autoridades centrais, em Roma; apenas casos muito especiais (e muito graves), envolvendo cidadãos romanos, ou maiorais locais, eram, eventualmente, objeto de consulta (não de “descrições”…) ao Imperador, acerca do que deveria ser feito; administrativamente, a “carta de Lêntulo” não faz sentido algum;

·        Porque a (pretensa) “carta” não passa duma descrição meditativa frente a um ícone, frente a uma imagem (mental) de Cristo.  Descreve-se uma “imagem de Cristo” (com ênfase, claro, em Sua Face – a mesma Santa Face da lenda de Abgar, e, depois, de Verônica…) e convida-se, sutilmente, o leitor a “penetrar” nessa imagem, como se estivesse observando o próprio Cristo diante de si, e mais, não apenas a “visualizar” a imagem do Salvador, mas também a “meditar” sobre o Cristo Homem, sobre Suas atitudes, Sua compaixão, Seu poder.  Experimente o leitor ler a “carta de Lêntulo”, na versão mais primitiva, ou seja, na constante do “Prefácio” das “Meditações Sobre a Vida de Cristo”, de Ludolfo o Cartuxo, e verá que está diante dum quadro meditativo, dum “ícone escrito”, que tem como objetivo levá-lo a compreender melhor o Mistério da Misericórdia do Homem-Deus e de Seu sofrimento, tão próximo do nosso.  Não é um relatório – é um convite à meditação. 

Ora, esse tipo de “aproximação” com a imagem de Cristo ocorreu ao longo do séc. XIII dC, culminando nas várias obras meditativas do séc. XIV dC – justamente a época em que a “carta” originariamente surgiu.  Anteriormente, Cristo era visto como o Impassível Juiz, que, triunfando sobre a Morte, julgaria o Universo.  Daí a preferência, na arte cristã pós-constantiniana, na arte bizantina pós-iconoclasta, e mesmo na arte ocidental pré-gótica, em representa-Lo entronizado e em Majestade (o Pantocrátor; a Maiestas Domini).  Mesmo quando a representação do Cristo Crucificado começou a se tornar mais comum (e isso ocorreu por uma lenta influência dum dos temas da arte bizantina pós-iconoclasta, a Staurôsis, vejam-se os mosaicos do mosteiro do Bem-Aventurado Lucas, na Grécia, mostrados neste Apêndice), Ele ainda se apresentava, no geral, sereno, impassível, com o controle total da situação.  Mesmo na arte bizantina, que, na Crucifixão, representava já o corpo de Jesus arqueado, Seus olhos fechados e Seu semblante triste, esse pathos tinha um limite – e essa não era, sequer, a cena mais representada, nem aquela posta nos lugares mais proeminentes das igrejas.  E, no Ocidente, demorou-se mais, até aos fins do séc. XII dC, a se chegar a esse nível de “sofrimento controlado” já presente na arte bizantina pós-iconoclasta, quando ela se dignava a representar a cena da Crucifixão. 

Ou seja, mesmo quando crucificado, Jesus era o Cristo Triunfante (Christus triumphans); foi somente a pouco e pouco, a partir dos fins do séc. XII e princípios do séc. XIII dC, que, impulsionada pelas novas ordens mendicantes e pregadoras, os Franciscanos e os Dominicanos, uma visão mais “humana” de Cristo, não como Juiz inatingível e impassível, mas como o Servo Sofredor que Se deu em sacrifício para salvar a Humanidade, tornou-se mais e mais comum – Jesus estava agora próximo de cada um, podia entender o sofrimento de cada um, já que Ele próprio também sofrera, e sofrera por todos – era o Cristo Padecente (Christus patiens).  Junto com as pregações das novas ordens, os grandes crucifixos de madeira, de três metros ou mais de altura, bem como os grandes retábulos, postos nos altares das igrejas, levaram a toda a Europa não apenas uma nova imagem, mas também uma nova “devoção”. 

Tratava-se duma devoção mais íntima, mais individualizada.  Cristo não era mais o Juiz de todos os Povos, mas o Sofredor que Se havia sacrificado por cada fiel; e cada fiel era convidado a “ver” e a “sentir” isso nas imagens – em suma, a “penetrar” nelas, a vivenciar as cenas e os sentimentos mostrados.  E, desde os fins do séc. XIII, e ao longo da primeira metade do séc. XIV, à medida que aumentava também o público leigo leitor nas várias e florescentes cidades (quer em latim, quer, principalmente, nas línguas vernáculas, que então fazem a sua aparição), não apenas as imagens, mas também os textos meditativos (antes circunscritos aos mosteiros) espalham essa nova devoção intimista. 

É dentro dessa atmosfera que o “novo estilo” de arte, mais “realista” (para poder melhor captar as situações e os sentimentos e, assim, auxiliar na meditação), faz sentido; e é também dentro dessa mesma atmosfera que se podem compreender as várias obras meditativas sobre a “vida de Cristo”, dos meados do séc. XIII aos meados do séc. XIV.  Essas “vidas” (muitas vezes atribuídas, quer pelos seus próprios autores, quer pela piedade popular, a figuras proeminentes no campo da Teologia), não pretendiam ser “biografias” no sentido moderno do termo, mas sim guias de meditação, verdadeiras “galerias escritas” de cenas, de situações, de pessoas, que fornecessem aos leitores “modelos de introspecção”: 

·        O Dialogus Beatae Mariae et Anselmi de Passione Domini (c.1240), falsamente atribuído a Santo Anselmo (c.1033 – 1109), arcebispo da Cantuária (1093 –1109);

·        O De Meditatione Passionis Christi per Septem Diei Horas Libellus (fins do séc. XIII), falsamente atribuído a São Beda o Venerável (672/73 – 735 dC);

·        As Meditationes de Vita Christi (fins do séc. XIII ou inícios do séc. XIV), atribuídas falsamente a São Boaventura (1221 – 1274);

·        Enfim, as próprias Meditationes de Vita Christi de Ludolfo o Cartuxo, terminadas c.1374, onde, pela primeira vez, aparece (ainda anônima…) a “carta de Lêntulo”. 

Esse “entrar dentro da cena”, esse “capturá-la” para si, quer pela visão, quer pela leitura, e de modo a “compadecer-se” (compassio, “sentir junto”, i.e., “sofrer em solidariedade”) torna-se evidente, p.ex., num trecho da obra do pseudo-Beda: 

Non enim decet, qui vult Christi dolorem sentire, verbis et rebus lusoriis et in gaudio vano se inutiliter occupare, ut breviter dicam, a sollicitudine temporali et delectatione carnali seu consolatione.  Etiam oportet cum multa diligentia cogitare, quod non convenit consolatio carnalis et contemplatio Dominicae Passionis.  Necessarium etiam esse, ut aliquando ista cogites in contemplatione tua, ac si praesens tum temporis fuisses, quando passus fuit.  Et ita te habeas in dolendo, ac si Dominum tuum coram oculis tuis haberes patientem, et ita ipse Dominus praesens erit, et accipiet tua vota.

 

 

 

(De Meditatione Passionis Christi per Septem Diei Horas Libellus, Praefatio)

Aquele que deseja partilhar da dor de Cristo [meditando em Sua Paixão] não deve inutilmente se ocupar [ou: se distrair] com palavras ou coisas ilusórias, ou com alegrias vãs, ou, em suma, com [quaisquer tipos de] consolos temporais ou deleites da carne; deve opor-se a [tudo] isso com muita diligência, pois não convém, em absoluto, [a presença d’] o conforto material na contemplação da Paixão do Senhor.  E é também necessário, quando estiveres em tua meditação, que te faças estar presente naquela ocasião, quando ocorreu a própria Paixão.  Desse modo, sofrerás igualmente como Ele, sendo também tu padecente, diante dos [próprios] olhos do Senhor; e esse Senhor, por Sua vez, também estará igualmente presente diante de ti, e aceitará tuas orações. 

(Pequeno Livro [ou: Opúsculo] Sobre a Meditação da Paixão de Cristo, ao longo das Sete Horas [Canônicas] do Dia, Prefácio)

 

Assim sendo, o conteúdo da “carta de Lêntulo” (que não é uma “carta”, muito menos um “relatório” dum burocrata, repita-se, mas sim um “ícone escrito” para fins contemplativos) não poderia ter sido confeccionado antes que esse processo de “humanização” do sofrimento salvífico de Cristo se efetuasse – ou seja, antes dos fins do séc. XIII ou dos inícios do séc. XIV.  Do mesmo modo que a descrição física que faz de Jesus é a consequência dum processo, dum longo processo iniciado nos fins do séc. IV dC e concluído, ao menos nas linhas gerais, apenas nos sécs. IX-X dC, o seu conteúdo é, também ele, a consequência dum outro processo, em parte paralelo ao anterior, que transcorreu ao longo dos sécs. XIII e XIV dC, e que colocou diante dos fiéis Jesus não mais como o Christus triumphans, mas sim como o Christus patiens. 

Uma resposta a “LÊNTULO, O SUFETA – RESPOSTA A NAGIPE ASSUNÇÃO (APÊNDICE 1 – FIGURAS DE CRISTO, PARTE 3 DE 3)”

  1. Marciano Diz:

    DEUTCHSLAND ÜBER ALLES!

    Entschuldigung, ich konnte nicht widerstehen.

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