LÊNTULO, O SUFETA – RESPOSTA A NAGIPE ASSUNÇÃO (PARTE 2: Uma Noite nos Fasti – Caçando Públio Lêntulo)

O sr. Carlos Henrique Nagipe Assunção, segundo sua própria informação Bacharel em História, tornou pública, em portal eletrônico, pesquisa segundo a qual teria havido confirmação, nos Fastos Consulares, para a existência histórica dum “Públio Lêntulo” na época de Tibério, cônsul sufeta 27 dC, o qual seria justamente a encarnação pretérita do espírito “Emmanuel”, e personagem da psicografia “Há Dois Mil Anos”, de Francisco Cândido Xavier.  O texto encontra-se neste endereço: http://www.portalsaber.org/2014/06/amigos-do-portal-saber-com-muita.html. 

Não obstante, uma série de reparos podem ser feitos em relação às pesquisas do sr. Carlos Henrique Nagipe Assunção, os quais, a nosso ver, inviabilizam sua tentativa de dar à personagem fictícia “Públio Lêntulo” alguma substância histórica real.

Algumas (poucas) considerações acerca da Carta de Lêntulo, uma falsificação medieval tardia: 

Inicialmente, algumas considerações podem ser tecidas acerca da “carta” de Lêntulo – que é o primeiro documento, cronologicamente falando (e, fora a psicografia de Xavier, o único), que faz referência a essa personagem.  A assim chamada “carta de Lêntulo” (epistula Lentuli) surgiu aproximadamente nos meados do séc. XIV dC, de início anonimamente (tal como consta na “Introdução” às “Meditações sobre a Vida de Cristo”, do monge cartucho Ludolfo da Saxônia), ou seja, sem lhe ser ligado nenhum nome, e sequer o formato de carta (ou de correspondência) entre um romano contemporâneo de Jesus presente na Palestina e o Imperador (ou o Senado).  Apenas depois, e paulatinamente, desde o primeiro quartel do séc. XV, o documento em epígrafe passou a ser ligado a um “Públio Lêntulo”, do qual, aliás, nunca antes se tinha ouvido falar.  Isso já está de há muito firmemente estabelecido pelo consenso histórico, e além de qualquer dúvida.  No portal “Obras Psicografadas” há, inclusive, um texto, com o título “Testemunhos Lentulianos” (http://obraspsicografadas.org/2012/testemunhos-lentulianos/), no qual se elencam os manuscritos sobreviventes de tal carta.  Tal elenco dos mais representativos manuscritos (não os únicos) segue, em linhas gerais, com algumas simplificações, o cuidadoso estudo de von Dobschütz, ainda fundamental[1]. 

E deve-se notar que, mesmo ao longo do séc. XV dC, a atribuição da “carta” a Lêntulo era ainda um processo em construção (e ainda longe de concluído); prova-o o fato de que, ainda por volta de 1470, quando verteu uma das versões da “carta” para o italiano (dialeto toscano), o sábio florentino Sebastião Salvini a atribuiu não a “Lêntulo”, mas sim a… “Herodes, rei dos judeus”, presumivelmente Herodes Antipas, o tetrarca da Galiléia e da Peréia, talvez por influência indireta da “correspondência entre Pilatos e Herodes” constante do (também apócrifo) “ciclo de Pilatos”[2]. 

Portanto, não se trata, em absoluto, de “documento antigo”, como quer fazer crer o sr. Nagipe Assunção em sua pesquisa, mas sim, consoante o consenso histórico, de falsificação patente, e mais, relativamente recente (medieval tardia).  Quanto a isso, seria interessante que o sr. Nagipe Assunção (ou qualquer um que venha a comungar de suas idéias): 

·        Elencasse testemunhos documentais mais antigos para a “Epistula Lentuli”, além daqueles citados em “Testemunhos Lentulianos”, se são de seu conhecimento; e, mesmo em não havendo testemunhos documentais diretos, que enumerasse então citações de autores anteriores a Ludolfo que tenham não apenas mencionado a “carta” e seu conteúdo, mas a tenham atribuído, especificamente, a um “Públio Lêntulo” contemporâneo de Cristo presente na Judéia; 

·        Informasse exatamente em quê se baseia para afirmar que a referida carta pudesse ser datada “dos tempos de Diocleciano” (não basta mencionar que “alguns assim consideram” – faz-se necessário mostrar quem assim considera, e, mais importante, em quê, efetivamente, se baseia para considerar); 

·        Do mesmo modo, informasse exatamente onde, no conjunto de sua obra, Tertuliano citou a carta de Lêntulo. 

Parece-nos, ao menos à primeira vista, que o sr. Nagipe Assunção confundiu o “ciclo de Lêntulo” (séc. XIV dC e depois) com algumas obras do assim denominado “ciclo de Pilatos” (outro conjunto de apócrifos, mas, de qualquer modo, bem mais antigos que as falsificações lentulianas, já que seu núcleo inicial pode rastrear-se, com alguma boa-vontade, a São Justino o Mártir, nos meados do séc. II dC).  Como quer que seja, esperamos seus oportunos esclarecimentos. 

O Aspecto Físico de Cristo constante na Carta de Lêntulo: 

Note-se, adicionalmente, que a physiognomia Christi descrita na carta de Lêntulo não segue as mais antigas suposições cristãs acerca da aparência física de Jesus, quer em termos literários (a “hipótese da fealdade”), quer no que diz respeito às representações usuais (de resto, simbólicas) presentes nas catacumbas, as quais mostravam quase invariavelmente, até aos fins do séc. III dC, um Jesus jovem e imberbe.  Acerca da evolução do modo como era considerado o aspecto físico de Jesus, ou seja, sua aparência (a physiognomia Christi), há, no já mencionado portal “Obras Psicografadas”, uma série de artigos, intitulados “Estudo da Aparência Física de Jesus”, em 4 (quatro) partes, que muito podem esclarecer a situação.  É importante ter em mente que nenhum escritor cristão faz menção a “Lêntulo”, quando discorre acerca do aspecto físico de Jesus. 

Pois a descrição da face de Jesus, tal como consta na carta de Lêntulo, mostra a imagem canônica de Cristo (barbado, de cabelos longos), que surgiu por volta de meados do séc. IV dC (o “Cristo Pantocrátor” de marchetaria de mármore, de Óstia; a imagem de Cristo no mosaico da abside de Santa Pudenciana, em Roma; a imagem de Cristo no afresco no teto do cubiculum Leonis nas catacumbas de Comodila, também em Roma, etc. – todas essas representações, as mais antigas do “Cristo canônico”, i.e., barbado e de cabelos longos, são posteriores aos meados do séc. IV dC…).  Tal imagem canônica somente se tornou mais comum por volta do séc. VI dC (embora sem deslocar as representações tipológicas anteriores), e somente se consolidou, no Oriente e no Ocidente, a partir de 843 dC, com o fim da Querela das Imagens em Bizâncio, quando então passou a ser “a” imagem universalmente reconhecível de Cristo, e utilizada nos trabalhos artísticos.  Portanto, na melhor das hipóteses, a carta de Lêntulo teria de ser posterior aos meados do séc. IX dC – mas, como visto, surgiu (de início anonimamente) no séc. XIV dC.  Não foi a (pretensa) “carta” que gerou a descrição canônica, como querem fazer crer os defensores da existência histórica de Lêntulo (p.ex., o sr. Pedro de Campos, em seus dois livros) – foi a imagem canônica, estabelecida por volta de meados do séc. IV dC, cada vez mais comum entre essa época e o séc. VI dC, e triunfante a partir dos meados do séc. IX dC, que foi utilizada para a confecção da “carta”, no séc. XIV dC, de início um documento devocional anônimo, e, logo depois (séc. XV dC), uma “descrição” pretensamente atribuída a um “Públio Lêntulo” que, sempre é bom insistir nesse ponto, jamais foi citado por ninguém antes disso. 

No Anexo I mostra-se uma pequena coletânea de imagens que testemunham a evolução da physiognomia Christi entre os séculos III e XIV dC.  Se a “carta de Lêntulo” fosse conhecida, as mais antigas representações da face de Jesus fatalmente teriam seguido a descrição nela constante, o que, em absoluto, não ocorreu.  O que o sr. Nagipe Assunção, ou qualquer outra pessoa que queira defender a autenticidade histórica de “Públio Lêntulo”, deve fazer, quanto a esse aspecto da questão, seria mostrar representações artísticas de Jesus (afrescos, baixos relevos, estátuas) dos séculos II e III dC, e em número razoável, que adotem o cânon fixado na referida carta. 

O cônsul sufeta de 27 dC – I – Descoberta e Assunções: 

Isso tudo, até aqui, quanto à carta de Lêntulo, e quanto à descrição do aspecto físico de Jesus que nela se encontra.  A partir de agora, serão tecidas algumas considerações acerca da (pretensa) descoberta dum “Públio Cornélio Lêntulo” cônsul “sufeta” (i.e., substituto) em 27 dC. 

O sr. Nagipe Assunção, pesquisando os fastos consulares para a época de Tibério, pôde obter, num fragmento duma lista de cônsules (i.e., de fasti consulares), referente à Irmandade Arval[3], a indicação de dois sufetas para o ano 27 dC, basicamente um Salústio e um Lêntulo. 

A parte da inscrição (fragmentária) que aqui interessa, tal como apresentada no texto do sr. Nagipe Assunção, é a seguinte (os colchetes indicam partes fragmentadas e/ou incompletas, que foram reconstituídas): 

P. [Cornelius] Le[ntulus?]

C. Sall[ustius?] 

Sendo os nomes desses sufetas, reconstituídos, os seguintes (tais como aparecem no texto do sr. Nagipe Assunção): 

Publius Cornelius Lentulus

Sallustius Crispus Passienus                        

Esse “Lêntulo”, sufeta em 27 dC, seria compatível com o “Públio Lêntulo” de “Há Dois Mil Anos”, inclusive levando-se em conta a sua idade, tanto quanto informada pela psicografia, podendo (segundo assevera o sr. Nagipe Assunção) exercer “legações” (inclusive as tais “legações honoríficas”).  Uma “legação honorífica” na Judéia seria (ainda segundo o sr. Nagipe Assunção) conveniente para esse Lêntulo, tendo em vista a condenação à morte dum parente seu, Gneu Cornélio Lêntulo Getúlico, sob Calígula. 

No entender do sr. Nagipe Assunção, o Lêntulo sufeta em 27 dC encaixar-se-ia, assim,  perfeitamente no “Lêntulo” citado em “Há Dois Mil Anos”.  Será? 

O cônsul sufeta de 27 dC – II – Supondo certa sua Identidade, o que isso significa em termos da prova da existência do “Públio Lêntulo” de “Há Dois Mil Anos”: 

Tomando-se em pleno valor as afirmações de identidade do sr. Nagipe Assunção – ou seja, que um “Públio Cornélio Lêntulo” foi cônsul sufeta em 27 dC, pergunta-se inicialmente: o que isso provaria acerca da existência do Lêntulo de “Há Dois Mil Anos”, “daquele” Lêntulo? 

Esse Lêntulo de “Há Dois Mil Anos” apresenta-se como bisneto (obviamente por linha masculina, paterna) de Lêntulo Sura, o conspirador catilinário.  Esse “Públio Cornélio Lêntulo” (supondo que seja esse mesmo o seu nome) de 27 dC é descendente de Sura? 

O Lêntulo de Emmanuel passou longuíssimos anos na Judéia (é ele mesmo que nos informa, em “Há Dois Mil Anos”).  O sufeta de 27 dC passou longos anos na Judéia? Pode-se afirmar isso? Com base em quê (além da própria “psicografia”)? 

O Lêntulo de Emmanuel fez parte do conselho de guerra de Tito (mais uma vez, é ele mesmo que nos informa).  O sufeta de 27 dC fez parte desse conselho? 

Portanto (e isso tem de ficar claro desde o início), supondo-se que o sufeta de 27 dC seja mesmo um “Públio Cornélio Lêntulo”, esse Lêntulo (sufeta de 27dC), para ser aceito como “o” Lêntulo, deve ser bisneto de Sura, deve ter passado muitos anos numa “legação” na Judéia, e deve ter feito parte do conselho de guerra de Tito.  Muito bem.  Onde (além de na “psicografia”) esses fatos (que formam a biografia do “Lêntulo” de Emmanuel) encontram-se historicamente atestados e estabelecidos? 

Em lugar nenhum.  O “Lêntulo” de Emmanuel, em “Há Dois Mil Anos”, tem uma vida agitada e rocambolesca; o “Lêntulo” sufeta de 27 dC é apenas um nome, sem nenhum dado biográfico historicamente atestável que possa ser a ele ligado. 

Assim, mesmo supondo-se que houve um sufeta em 27 dC chamado “Públio Cornélio Lêntulo”, isso não prova, em absoluto, que esse Lêntulo era “aquele” Lêntulo.  Antes de considerar a questão como finalizada, o sr. Nagipe Assunção teria que ligar esse “Públio Cornélio Lêntulo” (supondo-se que esse seja, de fato, o seu nome), sufeta 27 dC: 

·        Como bisneto de Lêntulo Sura, o conspirador catilinário;

·        Como tendo permanecido longos anos na Judéia, numa “legação” (falaremos dessa fantasiosa “legação” num próximo item…);

·        Como fazendo parte do conselho de guerra de Tito, por ocasião da revolta judaica (como o próprio Lêntulo de Emmanuel diz que fazia). 

O terceiro item pode ser imediatamente descartado, já que se conhecem os membros do conselho de guerra de Tito, graças ao historiador Flávio José, e nele não há nenhum Lêntulo.  No portal “Obras Psicografadas” há, inclusive, um texto acerca disso, “Lêntulo e o Conselho de Guerra de Tito” (http://obraspsicografadas.org/2011/lntulo-e-o-conselho-de-guerra-de-tito/), que mereceria uma leitura atenta (tanto do texto em si quanto dos comentários do “blog”).  Assim sendo, se esse “Lêntulo” de fato existiu, e foi Emmanuel, percebe-se, logo de saída, tratar-se dum falastrão e dum mentiroso… Belo espírito superior! Se aí mentiu, onde mais não teria também mentido? 

Quanto aos outros dois itens, espera-se a oportuna manifestação do sr. Nagipe Assunção.  Que ele possa brindar-nos com provas históricas efetivas, documentais e epigráficas, para o fato de que o sufeta de 27 dC era bisneto de Lêntulo Sura, o conspirador catilinário; e que permaneceu longos anos numa legação na Judéia; e que ele possa informar, detalhadamente, de que tipo de legação se tratava… 

O cônsul sufeta de 27 dC – III – Buscando sua Identidade: 

No item anterior, supôs-se tacitamente que o cônsul sufeta de 27 dC “P Le[” era, de fato, um “Públio Cornélio Lêntulo”.  Deve-se notar que as próprias obras consultadas pelo sr. Nagipe Assunção mostram-se, quanto a isso, bastante cautelosas: 

P. [cornelius] le[ntulus?] cos.suf. cum c sall[ustio] a. 27 fasti mag: sed non constat, num re vera Lentulus quidam ignotus indicatus fuerit 

Em tradução livre: 

P(úblio) [Cornélio] Lê[ntulo?], cônsul sufeta com G(aio) Sal[ústio] no ano 27 dC, segundo os fastos dos magistrados: mas não está claro [ou: estabelecido; ou: firmado] se tal desconhecido era, de fato, um Lêntulo. 

Assim se pronuncia a fonte citada pelo sr. Nagipe Assunção… 

Ou seja, a própria fonte utilizada pelo sr. Nagipe Assunção, e na qual ele deposita tanta fé, faz questão de esclarecer que a identidade do sufeta não se encontra estabelecida com certeza.  Isso, somado às várias dificuldades até aqui listadas acerca da historicidade do “Públio Lêntulo” de Emmanuel, aconselharia uma boa dose de prudência por parte do pesquisador.  Não obstante, o que se nota no texto do sr. Nagipe Assunção é um triunfalismo bombástico – o sufeta de 27 dC “já é”, claro, “o” Públio Lêntulo, bisneto de Sura, que passou tantos anos na Judéia numa “legação”, e que escreveu ao Imperador (ou ao Senado) acerca de Cristo… 

O sr. Nagipe Assunção se esforça para provar que a interpretação “P(ublius) Lentulus” seria a única para o nome fragmentário do sufeta de 27 dC.  Sem dúvida, ele está certíssimo no que diz respeito ao prenome: “P” é a abreviatura do prenome “Publius”, e o sufeta de 27 dC, quem quer que tenha sido, era, de fato, um Públio.  Considerando-se “Le[…]” como o início dum cognome, e levando-se em conta a importância da magistratura consular, a mais provável (mas de modo algum única) interpretação para “Le[…]” é, de fato, “Lentulus”.  Contudo, poderia tratar-se, também, dum Levinus.  Não é impossível.  Um Lepidus também, embora essa última hipótese seja bem menos provável, tendo em vista o prenome “Públio” do sufeta, que não era de uso entre os Emílios Lépidos. 

Isso se “Le[…]” for um cognome; de qualquer modo, é quase certo que seja – o único gentílico (nomen) em jogo seria Lecanius; dois Lecânios Bassos, pai e filho, foram cônsules, um em 40 dC (sufeta) e outro em 64 dC (ordinário); mas o modo mais usual (e correto) de grafia do nome era Laecanius, e não Lecanius, o que torna essa hipótese muitíssimo remota para identificar o sufeta de 27 dC. 

Assim, Lentulus é o mais provável, e é o que os estudiosos, em geral, aceitam para identificar o sufeta de 27 dC, na falta de hipótese melhor[4].  Mas é apenas isso – o mais provável.

E, mais importante, a aceitação de tal hipótese não impede que o sufeta de 27 dC tivesse outros agnomes, além do cognome “Lêntulo”, não citados na inscrição (afinal, seu gentílico “Cornélio”, p.ex., não foi explicitamente citado).  E isso é importante, porque pode ajudar a melhorar a identificação desse P(ublius) Lentulus sufeta em 27 dC. 

Analisemos, então, mais detidamente, os testemunhos epigráficos – inclusive o apresentado pelo sr. Nagipe Assunção.  O texto por ele apresentado faz parte dos Fasti Arvalium já mencionado (cf. Nota 3), incluindo-se já os achados da década de 1980, e que vieram a público entre 1987 e 1991 (AE 1987, 00163; AE 1991, 00306 e 0037; consolidado em InscrIt-13-001, 00024), listando cônsules (incluindo sufetas) e pretores (urbanos e peregrinos) entre 2 aC e 37 dC; por comodidade, os anos estão assinalados, entre chaves e em negrito, a partir dos cônsules ordinários, na apresentação a seguir: 

 

{anterior a 1 aC, prov. 2 aC} ]s Reg(ulus?) per(egrinus) 

{1 aC} [Cossus Corne]lius L(ucius) Piso / [suf(fecti) A(ulus) Plautius] / [A(ulus) Caecina] 

cala() urb(anus) 

[3] Plaut() per(egrinus) 

{3 dC} [L(ucius) Lami]a M(arcus) Servilius / [suf(fecti)] P(ublius) Silius P(ubli) f(ilius) / L(ucius) Volusius / [3]rius urb(anus) / [3]ius per(egrinus) 

{4 dC} [Sex(tus) Aelius Catus] C(aius) Sentius Sat(urninus) / [suf(fecti)] C(aius) Clodius Licin(us) / Cn(aeus) S[e]ntius 

[ // ] 

{11 dC} M(anio) Aemilio [T(ito) Statilio co(n)s(ulibus)] / suf(fectus) L(ucius) Ca[ssius] / C(aius) Norbanus [u]rb(anus) / Sex(tus) Caecina [3]a per(egrinus) 

{12 dC} Germ(anico) C[aes(are) C(aio) Font]eio co(n)s(ulibus) / [suf(fectus) C(aius) Vise]llius Varro / [3] urb(anus) / [3] per(egrinus) 

{13 dC} [L(ucio) Munatio C(aio) Silio] co(n)s(ulibus) / [suf(fectus) 3]gus 

[ // ] 

{17 dC} [L(ucius) Pompo]nius [Flaccus] / [C(aius) Caeli]us Rufu[s] / [suf(fecti) C(aius) Vibiu]s Mar[sus] / [L(ucius) V]olunseius / [Cn(aeus) Treme]lius urb(anus) / [M(arcus) Aureliu]s Co[tt]a per(egrinus) 

{18 dC} [Ti(berius)] Caes(ar) Au]g(ustus) III / [Germani]c(us) Caes(ar) II / [suf(fecti) L(ucius) Seiu]s Tubero / M(arcus) Livineius / M(arcus) Vipstan(us) Gall(us) / [C(aius)] Rubell(ius) Bland(us) / [3 Iunius] Gallio urb(anus) / [D(ecimus) Hater]ius Agr[ippa] per(egrinus) 

{19 dC} [M(arcus) Silanus L(ucius) N]orbanus / suf(fectus) P(ublius) Petronius / M(arcus) Satrius Valens urb(anus) / M(arcus) Claudius Marcell(us) per(egrinus) 

{20 dC} M(arcus) Valerius Messallinus / M(arcus) Aurelius Cotta / C(aius) Antistius Vetus urb(anus) / C(aius) Asinius Pollio per(egrinus) 

{22 dC} [D(ecimus] Haterius Agrip[pa] / [C(aius) Sulpici]us Galb[a] 

[ // ] 

{23 dC} [C(aius) Asinius P]ollio / [C(aius) Antistius V]etus / [suf(fectus) C(aius) Stertinius M]axim(us) / [3] urb(anus) / [Cn(aeus) Le]ntulus Ga[etuli]c(us) per(egrinus) 

{24 dC} [Ser(vius) Co]rnelius Cethegus / [L(ucius) Vis]ellius Varro / [suf(fecti)] C(aius) Calpurn(ius) Aviola / P(ublius) Scipio / M(arcus) Plautius Silvanus urb(anus) / suf(fectus) M(arcus) Licinius Cras(sus) Frugi / C(aius) F[u]lcinius Trio per(egrinus) 

{25 dC} Cossus Cornelius Lentulus / M(arcus) A[s]inius Agrippa / [suf(fectus) C(aius) Petronius] / [C(aius) A]ppius Iunius Silanus urb(anus) / [1] Marcius Hortalus per(egrinus) 

{26 dC} Cn(aeus) [Le]ntulus Gaetulicus / C(aius) Ca[lv]isius Sabinus / [s]uf(fecti) L(ucius) Silanus D(ecimi) f(ilius) / C(aius) Vellaeus Tu[tor] / A(ulus) [Pl]autius u[rb(anus)] / L(ucius) Sextilius Pacon[ianus per(egrinus)] 

{27 dC} L(ucius) Calpur[n]ius [Piso] / M(arcus) Cras[sus Frugi] / su[f(fecti)] P(ublius) Le[ntulus(?)] / C(aius) Sall[ustius Crispus] / [3 Cars]idius Sa[cerdos urb(anus)] / [Se]x(tus) Papini[us Allen(ius) per(egrinus)] 

{28 dC} [C(aius) Appius] Iunius S[ilanus] / [P(ublius) Silius Nerva] / [suf(fecti) Q(uintus) Iunius Blaesus] / [L(ucius) Antistius Vetus] / [3 urb(anus)] / [3 per(egrinus)] 

{29 dC} L(ucius) Rubell(ius) [Geminus] / C(aius) Fufius G[eminus] / suf(fecti) A(ulus) Pla[utius] / L(ucius) Aspr[enas] / C(aius) Splattius [urb(anus)] / L(ucius) Sulla [per(egrinus)] 

{30 dC} L(ucius) Cassius M(arcus) [Vinicius] / suf(fecti) L(ucius) Naevius [C(aius) Cassius] / P(ublius) Trebu[lanus urb(anus)] / Ser(vius) T[3]act() [per(egrinus)] 

{31 dC} Ti(berio) Caesare Aug(usto) V [co(n)s(ule)] / suf(fecti) Faustus Sulla Sex(tus) Teidi[us] / L(ucius) Fulcinius P(ublius) Memmius / Cn(aeus) Fla[vi]us Strab(o) urb(anus) / Q(uintus) Mar[i]us Celsus per(egrinus) 

{32 dC} Cn(aeus) Domitius Camillus Arrun[tius] / suf(fectus) A(ulus) Vitellius / C(aius) Laecanius ur[b(anus)] / [3] per(egrinus) 

{33 dC} L(ucius) C[ornelius Sulla] 

[ // ] 

{37 dC} [Cn(aeo) Acerronio Proculo] / [C(aio) Petronio P]ontio Ni[grino co(n)s(ulibus)] / [suf(fecti) C(aius) Caes(ar)] Aug(ustus) Germ[an(icus)] / [Ti(berius) Claudi]us Nero Ger[m(anicus)] / [Cn(aeus) Saturn]inus u[rb(anus)] / [3]rac[3 per(egrinus)]

[

 

O nome dos sufetas de 27 dC (como, de resto, todos os nomes fragmentários, e são muitos, presentes nesse conjunto de inscrições, bem como em todas as inscrições romanas) foi reconstituído tendo em vista o tamanho das letras, os espaços não preenchidos, as abreviaturas usuais, o tamanho dos fragmentos (e o tamanho original estimado das várias placas), tudo isso somado ao conhecimento da antroponímia romana.  Embora, muitas vezes, não se possa ter certeza das reconstituições, elas são, dum modo geral, confiáveis – e, tendo em vista o que atualmente se conhece, as mais confiáveis possíveis.  Isso, claro, vale também para “P Le”, o sufeta de 27 dC. 

Mas, além dessa sucessão de cônsules (ordinários e sufetas) e de pretores (urbanos e peregrinos) presente nos Fasti Arvalium, há também outra inscrição que menciona os sufetas de 27 dC, a assim denominada “AE 1990, 00221” (i.e., a de nº 221 publicada no L’Année Épigraphique de 1990), encontrada em Sant’Angelo d’Alife (a antiga Alifas, no Sâmnio, Itália): 

 

{26 dC}   ] / [K(alendis) Iul(iis) L(ucius) Iunius Silanus C(aius) Vellaeus Tu]to[r]

                 [3]nius C(ai?) [f(ilius) IIvir(i)] / [praef(ectus) 3 Pa]quius Clem[ens]

{27 dC}   [M(arcus) Crassus Frugi L(ucius) Calpu]rnius Piso

                 [K(alendis) Iul(iis) P(ublius) Lentulus Scipio C(aius) Sallus]tius Passienus

                 [3]sius C(ai) f(ilius) IIvir(i) / [ 

 

Para quem quiser conferir, basta pesquisar no portal http://www.manfredclauss.de/. 

Os cônsules ordinários de 27 dC (i.e., aqueles que tomaram posse nas calendas de janeiro, ou seja, no dia 1º de janeiro, e que permaneceram no ofício de janeiro a junho) foram Marco Licínio Crasso Frugi e Lúcio Calpúrnio Pisão, conforme a 3ª linha da inscrição anterior (e também conforme os fastos da Irmandade Arval mais acima apresentados). 

E os sufetas, que entraram em ofício nas calendas de julho (i.e., no dia 1º de julho), e que serviram, assim, ao longo do 2º semestre de 27 dC, foram (cf. 4ª linha da inscrição anterior) Públio (Cornélio) Lêntulo Cipião e Gaio Salústio Passieno (Crispo). 

Quanto aos ordinários, Marco Licínio Crasso Frugi era filho do cônsul homônimo de 14 aC; casou-se com Escribônia, filha de Lúcio Escribônio Libão, cônsul 16 dC, e descendente, por linha materna, de Pompeu o Grande.  Um de seus filhos, também chamado Marco Licínio Crasso Frugi, seria cônsul 64 dC, e outro, Lúcio Calpúrnio Pisão Frugi Liciniano, teria a infeliz sorte de ser adotado por Galba como filho e sucessor no início de 69 dC, sofrendo o mesmo destino que seu pai adotivo. 

Lúcio Calpúrnio Pisão, por sua vez, era filho de Gneu Calpúrnio Pisão, cônsul 7 aC, implicado na morte de Germânico; tendo em vista a damnatio memoriae de seu pai, trocou seu prenome de “Gneu” para “Lúcio”.  Era o prefeito urbano de Roma na ocasião da morte de Tibério (37 dC), e foi procônsul da África c. 39 dC, sob Calígula.  Foi o pai de Lúcio Calpúrnio Pisão, cônsul 57 dC. 

Os dois cônsules sufetas (substitutos) de 27 dC, que tomaram posse a 1º de julho (nas “calendas de julho”) foram (como esclarece a inscrição) Públio (Cornélio) Lêntulo Cipião e Gaio Salústio Passieno (Crispo). 

Gaio Salústio Passieno Crispo é uma personagem bem conhecida: filho de Lúcio Passieno Rufo (cônsul sufeta 4 aC), foi adotado testamentariamente por Gaio Salústio Crispo (sobrinho-neto do historiador Salústio), um dos homens de confiança de Augusto.  Notável orador, foi cônsul pela segunda vez em 44 dC; casou-se inicialmente com Domícia, e depois com Agripina a Moça, viúva do irmão de Domícia, Gneu Domício Enobarbo.  Ao que se diz, Agripina envenenou-o, para apoderar-se, para si e para seu filho (o futuro Imperador Nero), de sua grande fortuna. 

Enfim, quanto ao “Lêntulo” sufeta em 27 dC, infelizmente não se constitui num indivíduo tão conspícuo quanto Crispo; não obstante, trata-se, segundo os entendidos que reconstituíram AE 1990, 00221 (como outros entendidos, seguindo a mesma metodologia, reconstituíram os fastos da Irmandade Arval), dum Lêntulo Cipião.  Esse detalhe genealógico lança um pouquinho de luz sobre essa personagem; e mais, tem conseqüências momentosas (e nem um pouco agradáveis para alguns) no que diz respeito à pretensa identificação desse sufeta com “aquele” Lêntulo. 

Disso trataremos no próximo item; uma coisa de cada vez.  Por ora, deve ficar claro que tanto a reconstituição do nome do sufeta de 27 dC como “Publius (Cornelius) Lentulus”, a partir dos fastos da Irmandade Arval, quanto como “Publius (Cornelius) Lentulus Scipio”, a partir da inscrição AE 1990, 00221, de Alifas, são prováveis, e não certas, mas seguindo a mesma metodologia, ou conjunto de procedimentos: o tamanho das letras, os espaços não preenchidos, as abreviaturas usuais, o tamanho e a disposição dos fragmentos remanescentes (e o tamanho original estimado das várias placas, ou partes constituintes da inscrição), bem como o conhecimento da antroponímia romana e do conjunto de famílias as quais, na época, poderiam ter desempenhado as funções listadas.  Ou seja: se o sr. Nagipe Assunção, bacharel em História, pesquisador meticuloso, aceitou tais metodologias e conjuntos de procedimentos para os fastos da Irmandade Arval, deverá aceitá-los também, por pura e simples coerência, e inteiramente, para a inscrição de Alifas.  O autor deste texto, sempre com a ressalva de que se trata duma reconstituição provável, mas não certa, a partir de testemunhos epigráficos fragmentários, aceita esse, por assim dizer, parecer técnico dos especialistas no assunto – e, para ele, bem como, assim crê, para qualquer um com um mínimo de coerência, e que examine a questão com isenção e racionalidade, um dos cônsules sufetas de 27 dC foi, com o maior grau possível de probabilidade à luz dos atuais conhecimentos históricos (e não fantasias psicográficas), Públio Cornélio Lêntulo Cipião.  Não um Lêntulo qualquer, muito menos um descendente de Lêntulo Sura (como se verá), mas sim um descendente, na época imperial, dos Lêntulos Marcelinos. 

O cônsul sufeta de 27 dC – IV – As Delícias da Pesquisa – Fasti et Stemmata: 

Os cônsules eram os magistrados supremos, e epônimos, da República, sendo eleitos dois que tomavam posse no primeiro dia de janeiro (nas “calendas de janeiro”), para um mandato de um ano.  Quando um cônsul morria no ofício, ou renunciava às suas funções, era substituído por um outro, denominado “sufeta” (suffectus, isto é, o que “completa”, ou “torna suficiente”, o mandato).  Os cônsules que tomavam posse no dia 1o de janeiro eram denominados “ordinários” (ordinarii, ou seja, “os da ordem”, “os comuns”).   Em termos práticos de poder, tanto os ordinários quanto os sufetas gozavam de idênticas prerrogativas e podiam aspirar aos mesmíssimos cargos; mas os ordinários tinham um “status” honorífico (meramente honorífico e social) maior, pois “abriam o ano” (e, mais tarde, somente eles serviriam para designá-lo). 

Durante a República aristocrática, o consulado sufeta era esporádico.  A partir da ditadura de César (49-44 aC), e principalmente a partir do Segundo Triunvirato (43-30 aC), o número de sufetas tendeu a aumentar, não tanto por causa da morte dos titulares, mas sim pela “abdicação” (abdicatio, “renúncia”) dos mesmos, a fim de que novos indivíduos pudessem assumir o ofício consular.  Essa era uma maneira de os donos do poder (inicialmente Júlio César, depois os triúnviros Lépido, Antônio e Otaviano) recompensarem seus partidários – abrindo-lhes a possibilidade de, com a posse da dignidade consular, passarem a aspirar aos mais altos cargos na máquina administrativa do Império. 

Com o advento do Principado, Augusto (Otaviano), agora senhor único do mundo romano, procurou normalizar a situação, devolvendo ao ofício consular toda a sua antiga dignidade: de 28 a 23 aC assumiu pessoalmente o consulado, juntamente com um colega, por todo o ano.  Consolidado o seu poder, renunciou ao ofício consular em 23 aC, mas, no geral, até 5 aC, a presença de sufetas foi esporádica.  A partir de 5 aC, contudo, há evidências de que, a fim de poder fornecer à máquina administrativa do Estado, em franca expansão tendo em vista a partição das províncias, um número maior de indivíduos com a dignidade consular, foi instituído um sistema regular, ou quase, de cônsules sufetas que tomavam posse no primeiro dia de julho (nas “calendas de julho”).  Assim, o ano passava a ter, tipicamente (mas não obrigatoriamente), quatro cônsules: dois ordinários que tomavam posse em 1o de janeiro e que renunciavam em 30 de junho, para que outros dois sufetas iniciassem seu turno em 1o de julho. 

Tal sistema operou (a não ser nalguns anos atípicos, como 2 aC, 18 dC, 21 dC e 31 dC) pelo restante do principado de Augusto (até 14 dC) e por todo o principado de Tibério (14-37 dC).  O principado de Calígula (37-41 dC) foi por demais curto e errático para que se possa discernir firmemente alguma tendência: 37 dC (o ano em que Tibério faleceu, em março) foi, até certo ponto, um ano “normal”: os ordinários nomeados por Tibério, Gneu Acerrônio Próculo e Gaio Petrônio Pôncio Nigrino, permaneceram em seus postos até 30 de junho, e o novo Imperador assumiu o consulado (tendo seu tio Cláudio, o futuro Imperador, como colega) para os dois primeiros meses do segundo semestre, mas os sufetas de Tibério para o segundo semestre (Aulo Cecina Peto e Gaio Canínio Rebilo) permaneceram, ainda que com um mandato reduzido para os quatro últimos meses do ano.  Totalmente normal foi o ano de 38 dC (em que as nomeações já foram efetuadas pelo novo Imperador), mas tanto 39 quanto 40 e 41 dC foram “atípicos”, com vários sufetas; se isso se deveu aos incidentes específicos de tais anos, ou se marcaria uma tendência futura do novo soberano, nunca se saberá. 

O fato é que, a partir do principado de Cláudio (41-54 dC), apesar de inevitáveis hesitações, e idas e vindas, um novo padrão se foi estabelecendo, e o número de sufetas tendeu sempre a aumentar, a par do progressivo desenvolvimento da administração imperial, e da necessidade de mais pessoas portadoras da dignidade consular para o exercício de funções importantes e de confiança.  Não será possível acompanhar aqui tal processo; basta apenas reter o fato de que, à época de Tibério (14-37 dC), o consulado sufeta já se encontrava bem estabelecido, com um ano “típico” albergando dois pares de cônsules, um em cada semestre, o primeiro de “ordinários”, o segundo de “sufetas”. 

Para a época de Tibério, bem como, aliás, para todo o período histórico antigo de Roma, os nomes dos cônsules ordinários podem ser obtidos com relativa facilidade, e em muitas fontes (p.ex., o Cronógrafo de 354 dC, a Lista Consular anexa à Crônica de Hidácio, a Crônica de Cassiodoro, o Chronikon Paschale, etc.).  Não obstante, a partir do principado de Tibério não mais se pode contar, infelizmente, com os Fastos Consulares Capitolinos (Fasti Consulares Capitolini, que terminam em 13 dC); e, cada vez mais, escasseiam os fastos epigráficos extensos , como os existentes para o período anterior, da República e do principado de Augusto, à exceção dos Fastos Ostienses (Fasti Ostienses).  Estes últimos são valiosos por listarem também os cônsules sufetas, embora não a filiação dos magistrados, subsistindo completos, ou quase, para os anos 14 a 20 dC, 24 dC e 29 a 38 dC.  Além dos Fastos Ostienses, podem ser obtidas informações a partir dos já discutidos Fasti Arvalium e das tábuas contratuais de Pompéia e Herculano, mas principalmente de inscrições individuais.  No que diz respeito às fontes literárias, além obviamente do Cronógrafo de 353 dC e da Lista Consular de Hidácio, pode ser utilizada a lista consular fornecida no início do livro 57 da História Romana de Cássio Dião, a qual elenca os ordinários de 15 a 25 dC, inclusive, com filiação. 

Uma vez que as fontes literárias já mencionadas (o Cronógrafo de 354 dC, Hidácio, Cassiodoro, etc.) listam apenas os cônsules ordinários (e, ainda assim, numa forma abreviada, não fornecendo nem seus nomes completos, nem sua filiação), os sufetas têm de ser procurados quase que individualmente, como agulhas num enorme palheiro, nos testemunhos epigráficos já mencionados; obviamente, a aleatoriedade e a incompletude da preservação de tais testemunhos significa que nem sempre se pode completar o elenco dos sufetas para um determinado ano. 

Não obstante, concentrando a atenção no “P Le” sufeta em 27 dC, que é o que aqui interessa, percebe-se, pelo testemunho quer dos Fasti Arvalium, quer da inscrição de Alifas, tratar-se dum Lêntulo, e mais, dum Lêntulo Cipião.  Assim atestam os especialistas, assim estabelece o consenso histórico, assim deve ser tratada a questão, ao menos até que evidências efetivas em contrário possam ser apresentadas. 

Desse modo (por ser um Lêntulo Cipião), segue-se que era descendente da união de Públio Cornélio Lêntulo Marcelino (monetalis c.100 aC, e que viveu c.128-90/80 aC) com Cornélia, filha de Públio Cornélio Cipião Násica Serapião (cônsul 111 aC).  Esse Públio Cornélio Lêntulo Marcelino (o monetalis) era, por sua vez, filho natural de Marco Cláudio Marcelo (c.145-c.90/80 aC), orador, e pretor c. 105 aC, e foi adotado testamentariamente por Públio Cornélio Lêntulo, muito provavelmente filho de Lúcio Cornélio Lêntulo Lupo (cônsul 156 aC, censor 147-46 aC).  Embora a reconstituição completa da árvore genealógica dos Lêntulos (a Stemma Lentulorum) seja uma questão bem espinhosa, e mesmo complexa, esses dados, especificamente, são confiáveis, e encontram-se estabelecidos. 

Teremos forçosamente, a partir de agora, de realizar um excurso para apresentar, ainda que de forma bastante resumida, as peripécias (ainda não terminadas!) ligadas à reconstituição da árvore genealógica dos Cornélios Lêntulos, a Stemma Lentulorum.  Essa família, um dos ramos da gens Cornélia, pertencia à mais alta aristocracia patrícia de Roma; seu primeiro membro atestado foi Lúcio Cornélio Lêntulo, cônsul 327 aC; o último cônsul foi Públio Cornélio (Lêntulo) Cipião Asiático, sufeta nos finais de 68 dC, sob o império de Galba; e seu último representante “de sangue” atestado foi Marco Júnio Silano Lutácio Cátulo, “filho de Décimo Silano, neto de Getúlico, bisneto de Cosso”, membro do colégio sacerdotal dos sálios colinos, morto aos 20 anos e 9 meses de idade, por volta dos meados dos anos 80 dC, sob o império de Domiciano[5].  Um período, assim, de 400 anos – ou mais, se se levar em conta a continuação da linhagem, por via feminina, a partir dos Salvidienos Orfitos.  De qualquer modo, restringindo o escopo da presente investigação apenas ao período republicano, à época de Augusto e à dos Júlio-Cláudios, as principais (mas nem de longe as únicas…) obras que coligiram informações referentes aos Lêntulos, possibilitando, a pouco e pouco, traçar-lhes a árvore genealógica, foram as seguintes: 

·        Pauly-Wissowa: trata-se da “Real Encyclopädie der classischen altertumswissenschaft”, ed. Pauly-Wissowa-Kroll, 83 vols., Stuttgard, 1896-1980; essa gigantesca enciclopédia da Antiguidade Clássica é usualmente conhecida como “RE”, ou “Pauly-Wissowa”; especificamente no que diz respeito aos Cornélios, em geral (incluindo-se os Lêntulos), principalmente os republicanos, tal estudo ficou a cargo de Edmund Groag, Ernest Stein e Friedrich Münzer, no vol. VII, de 1910;

·        “Prosopographia Imperii Romani”: trata-se, como define o título, da “Relação de Pessoas [Importantes] do Império Romano”, cobrindo o elenco (com notas biográficas e genealógicas) de todos os senadores, cavaleiros e pessoas de destaque (p.ex., libertos imperiais) conhecidos da época do Principado, ou seja, do período compreendido entre o início do reinado de Augusto e a ascensão de Diocleciano (30 aC a 284 dC).  A primeira edição (usualmente abreviada PIR, ou PIR1), em três volumes, saiu em Berlim entre 1897 e 1898, sob a edição de Elimar Klebs, Paul von Rohden e Hermann Dessau; a segunda edição (usualmente abreviada PIR2), bastante ampliada, e que procura incorporar todo o crescente conhecimento epigráfico (e das demais ciências auxiliares) acumulado ao longo do séc. XX, encontra-se ainda em curso; iniciou seus trabalhos em 1915, tendo enfim publicado, sob a edição de Edmund Groag e de Arthur Stein, em Berlim, seu 1º volume em 1933 (letras “A” e “B”); o 2º volume (letra “C”) foi publicado em 1936, mas o avanço tornou-se a partir de então mais lento; com dificuldade, em 1943, em plena guerra, publicou-se o 3º volume (letras “D” a “F”), interrompendo-se então totalmente os trabalhos; eles foram reiniciados após a guerra, ainda sob Groag e Stein, que iniciaram o 4º volume, tornando público o material abarcando as letras “G” e “H” entre 1952 e 1958; seguiu-se a coordenação de Leiva Petersen, que completou o 4º volume (em 1966, alcançando a letra “I”) e editou o 5º (entre 1970 e 1987, cobrindo as letras “L” a “O”); depois, juntamente com Klaus Wachtel, Petersen editou o 6º volume (1998, letra “P”); Klaus Wachter editou o 7º volume (1999 a 2006, letras “Q” a “S”); atualmente, encontra-se em curso o 8º volume, tendo-se completado em 2009 a letra “T”, e sendo Werner Eck, Matthäus Hell e Johannes Heinrichs os editores.  A parte relativa aos Cornélios consta no 2º volume (letra “C”), editado em 1936 por Groag e Stein, embora enriquecido (como, aliás, toda a coleção) por vários suplementos.

·        “The Orators in Cicero’s Brutus – Prosopography and Chronology”: da autoria de Graham Vincent Sumner, editado pela Toronto University Press em 1973, trata-se dum estudo bastante detalhado e erudito acerca dos inúmeros oradores mencionados no “Brutus”, de Cícero; para cada um, Sumner elenca dados biográficos e genealógicos; nessa obra, Sumner consolidou os conhecimentos acerca dos Lêntulos Clodianos (págs. 124-127, 132-133 e 138) e dos Lêntulos Marcelinos (págs. 92-93, 125-126, 131, 133-134, 141-143 e 159), e apresentou uma stemma dos Lêntulos, incluindo não apenas a época republicana, mas avançando até aos cônsules da época de Augusto (pág. 143; texto explicativo págs. 140-144); não incluiu, contudo, os cônsules posteriores a Augusto, e algumas de suas hipóteses (p.ex., a ascendência dos Lêntulos Getúlicos) tiveram de ser revistas.

·        “The Augustan Aristocracy”: da autoria do grande historiador britânico, e especialista na obra de Tácito, Ronald Syme, editado pela Oxford University Press em 1986; nessa obra, que pode ser considerada uma continuação de sua anterior, “The Roman Revolution”, Syme trata justamente da aristocracia romana após o final das guerras civis, cobrindo o período de Augusto e dos Júlio-Cláudios (30 aC a 68 dC), incluindo todo o conhecimento, principalmente os novos achados epigráficos, disponíveis até então; dois capítulos tratam dos Lêntulos (cap. 18, “The Last Scipiones”, págs. 244 a 254, e cap. 21, “Lentulus the Augur”, págs. 284 a 299); todos os Lêntulos atestados no período que vai da época de Pompeu e César até ao final do principado de Nero (c.70 aC a 68 dC), cônsules ou não, são apresentados, e várias alternativas para suas relações genealógicas são consideradas; Syme debruça-se de modo especial na questão da extinção dos ramos masculinos dos Cornélios Cipiões, e da assunção do cognome cipiônico por parte dos Lêntulos Marcelinos (que, por linha materna, eram Cipiões Násicas); e explora exaustivamente a questão dos casamentos de Escribônia – embora algumas de suas conclusões tivessem que ser depois modificadas, entre outras coisas em função da constatação de que o cônsul sufeta de 35 aC, antes conhecido apenas como “Públio Cornélio”, e considerado um Lêntulo Cipião, era, de fato, um Dolabela, conforme ficou claro a partir da descoberta dos Fastos de Taormina (Fasti Tauromenitani)[6].

·        “Continuité Gentilice”: da autoria de Christian Settipani, a obra “Continuité Gentilice et Continuité Familiale dans les Familles Sénatoriales Romaines à l’Époque Impérial – Mythe et Réalité” (seu título completo), editado pela Unity for Prosopographical Research do Linacre College, da Universidade de Oxford, Inglaterra, em 2000, é uma imensa consolidação de todo o conhecimento disponível até à época acerca da aristocracia senatorial do Império Romano; cobre todo o período imperial, até ao fim do mundo antigo, adentrando-se nos sécs. V, VI e mesmo VII dC; procura pesquisar justamente a “continuidade” dessa aristocracia, por linhas masculinas e femininas, diretas e colaterais, e mesmo adocionais, ao longo de todo o período, e também procurando ligá-las às grandes casas da época republicana; no que aqui nos interessa, a obra apresenta uma stemma dos Lêntulos republicanos (pág. 64), atualizada, uma stemma ilustrando a transição entre os Cipiões Násicas e os Lêntulos Marcelinos, com os vários ramos destes últimos (pág. 52, com texto explicativo págs. 50-51) e inúmeras considerações acerca da continuidade após a época dos Júlio-Cláudios, com os Cornélios Lêntulos Cétegos e Salvidienos Orfitos (págs. 85-100). 

Essas, então, são as principais fontes (enfatizando: não as úniacs!) que permitem reconstituir, em linhas gerais, a árvore genealógica dos Lêntulos: a) estabelecendo os inter-relacionamentos entre os vários Lêntulos da época republicana; b) clarificando, em boa parte, a relação entre os Lêntulos republicanos e os Lêntulos da época imperial[7]; c) estabelecendo os inter-relacionamentos entre os vários Lêntulos atestados na época de Augusto e dos Júlio-Cláudios (30 aC – 68 dC); e d) mostrando a própria sobrevivência além da época de Nero e do último Lêntulo “de sangue” (Marco Júnio Silano Lutácio Cátulo), a partir dos Cétegos e dos Salvidienos Orfitos, isso ao longo de toda a época imperial, e até ao séc. VI dC! 

E o que é que tais pesquisas, longas e detalhadas, mostram, no que diz respeito a Lêntulo Sura (o conspirador catilinário), bem como a um “Públio Lêntulo” contemporâneo de Jesus que possa ser identificado com “aquele” Lêntulo, o Lêntulo de Emmanuel? 

De Públio Cornélio Lêntulo Sura, o conspirador catilinário, estabelecem-se como certo alguns fatos: a) que era neto daquele Públio Cornélio Lêntulo (c.206-c.120/116 aC) princeps senatus e cônsul sufeta 162 aC; b) que nasceu c. 114 aC; c) que serviu sob as ordens de Sila entre 87-83 aC, nas campanhas contra o rei Mitrídates VI Eupátor do Ponto; d) que em 82 aC seguiu Sila em sua campanha para a conquista do poder na Itália; e) que foi questor 81 aC; f) que foi pretor 74 aC; g) que foi cônsul 71 aC; h) que foi expulso do Senado pelos censores de 70-69 aC, Lúcio Gélio Poplícola e Gneu Cornélio Lêntulo Clodiano; i) que se elegeu pretor pela segunda vez para 63 aC, reentrando no Senado; j) enfim, que foi morto nesse ano por envolvimento na conspiração de Lúcio Sérgio Catilina. 

Além desses dados biográficos e de carreira, nenhum dos estudos e nenhuma das reconstituições genealógicas (as quais, às vezes, diferem entre si em vários pontos) fornece a Sura qualquer descendência.  Quando muito, anotam seu casamento com Júlia, viúva de Marco Antônio Crético; o fato de que Sura, como padrasto, criou os filhos que ela tivera com seu marido anterior; e o fato de que, por ocasião da execução de Sura, foi seu enteado Marco Antônio (filho de Júlia e de Crético), o famoso triúnviro, e futuro amante de Cleópatra, que obteve o corpo do padrasto e lhe prestou as honras fúnebres.  Em nenhuma fonte (repetindo: em nenhuma fonte) há menção a um casamento anterior de Sura, ou a filhos dum (pretenso) casamento anterior que tivessem chegado à idade adulta; e o fato de que foi seu enteado Antônio o responsável pela recuperação de seu corpo, e por prestar-lhe as honras fúnebres, testemunha fortemente para o fato de que Sura não tinha filhos (quer tenha ou não se casado antes de seu casamento com Júlia) – a quem caberia esse sagrado dever. 

Considerar, assim, que Lêntulo Sura tenha tido progênie, de modo a um seu (pretenso) bisneto viver na época de Tibério, é algo para se provar, não para se supor – e, tendo em vista o atual consenso histórico, algo que simplesmente não ocorreu.  O ramo de Sura, como uma série de ramos dos Lêntulos da época republicana, simplesmente se extinguiu, não foi além do período das guerras civis, não deixou descendentes que alcançassem o principado de Augusto e que, então, pudessem se beneficiar dos novos tempos de paz e de estabilidade. 

Tudo leva a crer que Xavier ligou seu fantasmagórico “Públio Lêntulo” a Lêntulo Sura simplesmente porque eram esses os únicos Lêntulos que ele, Xavier, conhecia, a partir de suas leituras: o autor da “epistula Lentuli” (via almanaques, literatura “piedosa” e “popular” católica do período, atestada até na “Crestomatia”, que mencionaremos na conclusão deste trabalho); e o conspirador catilinário, a partir de digressões e resumos de Salústio e de Cícero – pois a conspiração catilinária era, e é, um dos tópicos mais conhecidos por aqueles que estudam, ou se interessam, pela história romana.  Como Xavier não possuía conhecimentos acerca da complexa stemma dos Lêntulos, e de seus vários ramos, obviamente ligou as duas personagens suas conhecidas, o conspirador e o senador contemporâneo de Cristo, e – voilà – eis então “Públio Lêntulo”, o senador da época de Tibério, em “legação” na Judéia, como “bisneto” de Lêntulo Sura.  Além do mais, Sura, sendo caracterizado pela tradição histórica romana (tanto de Cícero quanto de Salústio) como um ser malvado, enfim, como o “vilão”, forneceria a Xavier uma oportunidade ímpar para ilustrar a “lei de causa e efeito”: as maldades de Sura seriam “purgadas” por seu bisneto (e sua futura encarnação…) “Lêntulo”.  Perfeito!… 

Assim sendo, não há nenhum apoio (em termos de evidência histórica) para o fato específico de Lêntulo Sura ter tido descendência.  E, dos vários ramos dos Cornélios Lêntulos existentes por volta de 70 aC, a maioria se extinguiu, e apenas uns poucos ultrapassaram a última e conturbada fase das guerras civis.

Essa situação pode ser sentida pelo fato, já mencionado, de que, após o consulado de Lúcio Cornélio Lêntulo Crus (49 aC), seguir-se um vazio de 30 anos, até 18 aC, quando os dois cônsules ordinários foram, enfim, Lêntulos (Públio Cornélio Lêntulo Marcelino e Gneu Cornélio Lêntulo); ao longo de todos esses 30 anos, houve apenas um nome isolado da família nos Fastos, o obscuro Lúcio Cornélio Lêntulo, sufeta em 38 aC. 

Com efeito, três ramos dos Lêntulos conseguiram subsistir, sobreviver à última fase das guerras civis, e alcançar a época de Augusto – sendo dois deles oriundos de adoções na época republicana[8].  E nenhum desses ramos (repetindo: nenhum) podia ligar-se a Públio Cornélio Lêntulo Sura. 

O primeiro desses ramos liga-se, provavelmente, aos Lêntulos Clodianos da era republicana, e tem um único representante, Gneu Cornélio Lêntulo o Áugure (cônsul 14 aC).  Os Lêntulos Clodianos não eram Lêntulos “de sangue”, mas haviam sido adotados de entre os Cláudios (Clódios) Pulcros, uma das stirpes da gens patrícia dos Cláudios[9].  Mesmo que se queira argumentar que Lêntulo o Áugure poderia não ser descendente dos Lêntulos Clodianos, ele não poderia nem ser o “Públio Lêntulo” de Emmanuel (quer pela idade, quer pelo prenome), e nem ter sido seu pai (porque morreu sem filhos, deixando toda a sua fortuna ao Imperador – algo estabelecido com certeza). 

O segundo desses ramos sobreviventes liga-se a Lúcio Cornélio Lêntulo Níger, pretor 61 aC e flâmine de Marte (flamen Martialis), e seu descendente (provavelmente neto) Lúcio Cornélio Lêntulo, também flamen Martialis, cônsul 3 aC e procônsul da África entre 4 e 5 dC, onde morreu.  Teve apenas uma filha, Cornélia, herdeira de todos os seus bens e executora de seu testamento[10], e que haveria de se casar com Lúcio Volúsio Saturnino, cônsul sufeta em 3 dC, e já de certa idade.  Ela lhe daria dois filhos: o mais velho, nascido por volta do ano 20 dC, foi Lúcio Volúsio Saturnino, o Moço, membro do colégio dos pontífices, mas que morreu relativamente jovem, sem ter tido oportunidade de ascender ao consulado; o mais novo, contudo, nascido no ano 24 ou 25 dC, Quinto Volúsio Saturnino, seria cônsul em 56 dC[11].  Mesmo que se queira questionar a extração de Lúcio Cornélio Lêntulo, cônsul 3 aC e procônsul da África, ele não poderia ser pai, ou mesmo tio, do “Públio Lêntulo” de Emmanuel, já que teve apenas uma filha, Cornélia, sua única herdeira, e executora testamentária. 

Assim, dois dos três ramos sobreviventes dos Lêntulos na época imperial não poderiam (mesmo que se queira duvidar de suas origens mais antigas) gerar um “Públio Lêntulo” nascido por volta do início da era cristã, e que se encaixasse, ainda que remotamente, no modelo “daquele” Públio Lêntulo.  E, adicionalmente, note-se que as evidências disponíveis mostram que nenhum desses dois ramos originava-se de Lêntulo Sura. 

Resta o terceiro dos ramos sobreviventes, justamente o dos prolíficos Lêntulos Marcelinos.  Os Lêntulos Marcelinos originaram-se de Públio Cornélio Lêntulo Marcelino, monetalis c. 100 aC, adotado por um Públio Lêntulo dentre os (plebeus) Cláudios Marcelos[12] – de fato, Marcelino era o filho natural de Marco Cláudio Marcelo, o orador, pretor c. 105 aC.  A adoção foi testamentária (ou seja, não alterou o “status” de Marcelino, e depois de sua progênie, como plebeus, apesar de ostentarem agora o gentílico e o cognome “Cornélio Lêntulo”), e esse Marcelino (o monetalis) casou-se com Cornélia, filha de Públio Cornélio Cipião Násica Serapião (cônsul 111 aC). 

Tudo isso está bem estabelecido – ou seja, houve um Públio Cornélio Lêntulo Marcelino, filho natural de Marco Cláudio Marcelo, o orador, adotado testamentariamente por um Lêntulo, e que se casou com uma Cornélia de legítima ascendência cipiônica.  E mais: apenas para constar, esse ramo não tinha nenhuma relação com o ramo dos Lêntulos ao qual pertencia Lêntulo Sura. 

O arranjo genealógico desses Lêntulos Marcelinos, aliás bastante numerosos, ainda apresenta algumas dificuldades, mas, seguindo-se o consenso histórico ora vigente, pode-se estatuir confortavelmente que: 

·        Deles, Lêntulos Marcelinos, originaram-se (e isso já está bem estabelecido, embora ainda haja algumas dúvidas de detalhe no arranjo dos nomes na stemma), na primeira época imperial (de Augusto e dos Júlio Cláudios, 30 aC – 68 dC), os Lêntulos Cétegos (depois os Lêntulos Cipiões Salvidienos Orfitos), os Lêntulos Cossos (e Getúlicos), os Lêntulos Cipiões e os Lêntulos Cipiões Orestinos.  Todas essas stirpes, dum modo ou de outro, reivindicavam ascendência cipiônica (e passaram a usar, inclusive, a cripta dos Cipiões para seus sepultamentos); tendo os Cornélios Cipiões “de sangue” se extinguido na última fase das guerras civis, essa pretensão fundamentava-se em linhagem feminina e no uso do gentílico “Cornélio” – os Marcelinos consideravam-se “Cipiões” porque eram “Cornélios” (ainda que apenas testamentariamente), e porque Cornélia, a esposa de Marcelino, o monetalis, era de autêntica ascendência cipiônica (filha do Cipião Násica que foi cônsul em 111 aC); 

·        Sendo todos os ramos citados no item anterior originários dum Cláudio Marcelo adotado testamentariamente por um Cornélio Lêntulo, e que se casou com uma Cornélia oriunda dos Cornélios Cipiões Násicas, todos eram plebeus, ou seja, não eram patrícios; prova-o o fato de “Cornélios Cipiões” terem exercido, no início da época imperial, o ofício de tribunos da plebe, um ofício para o qual não se poderiam eleger, se fossem patrícios[13]; 

·        E, sendo descendentes dos Lêntulos Marcelinos, pertenciam (originariamente) a um ramo dos Lêntulos distinto daquele a que pertencia Lêntulo Sura – de fato, tudo indica que o avô de Lêntulo Sura, Públio Cornélio Lêntulo (c.206-c.120/116 aC) princeps senatus e cônsul sufeta 162 aC, era primo do avô de Marcelino (pai de seu pai adotivo).  Portanto, não há nenhuma ligação genealógica entre Públio Cornélio Lêntulo Sura (pretenso “bisavô” de “Públio Lêntulo”) e o Públio Cornélio Lêntulo Cipião que foi cônsul sufeta em 27 dC. 

Por conseguinte, malgrado uma série de incertezas, e mesmo de dilemas, em pontos específicos da Stemma Lentulorum, é certo que Públio Cornélio Lêntulo Cipião, o sufeta de 27 dC, por ser um Lêntulo Cipião, provinha dum ramo (stirps) bem específico dos Lêntulos, justamente o dos Lêntulos Marcelinos da época republicana.  E isso tem como conseqüência imediata o fato de ele não poder ser descendente de Lêntulo Sura.  Assim sendo, o Lêntulo convenientemente “descoberto” como sufeta em 27 dC não poderia ser, em termos genealógicos, o “Públio Lêntulo” de “Emmanuel”/Xavier. 

Por conseguinte, adicionam-se às inquirições anteriormente lançadas ao sr. Nagipe Assunção as seguintes: 

·        Que se demonstre (por evidenciações históricas) que Lêntulo Sura teve descendência masculina; 

·        Que se demonstre (também por evidenciações históricas) que tal descendência desembocou num “Públio Lêntulo” bisneto de Lêntulo Sura, que, no ano 31 dC, tinha por volta de 28 a 30 anos de idade[14]. 

Mas, de qualquer modo, devemos continuar.  No próximo item, serão tecidas algumas considerações acerca da carreira (cursus honorum) senatorial, que “Públio Lêntulo” forçosamente teria de seguir. 

A Carreira dum Senador – Cursus Honorum Senatorium, e como “Públio Lêntulo” se encaixa (ou não) nela: 

Crê-se já ter ficado claro que o “Públio Cornélio Lêntulo Cipião” cônsul sufeta 27 dC não poderia ser idêntico ao “Públio Lêntulo” de Emmanuel; mas, de qualquer modo, o protagonista da psicografia era um senador, e, portanto, teria de seguir a carreira senatorial (cursus honorum senatorium) à qual todos os senadores, à época, deveriam conformar-se.  Iniciemos, assim, esta parte da presente investigação analisando justamente a carreira senatorial, e como “aquele” Lêntulo nela se poderia encaixar. 

Ser cônsul era, usualmente, o coroamento da carreira senatorial, a qual seguia uma sucessão de cargos (denominado justamente cursus honorum, “a carreira das honras”) bem definida.  Todos os senadores a seguiam, mesmo que eventualmente com algumas variações de detalhe, uns com mais e outros com menos brilhantismo.  Cargos ou funções mais importantes tinham como pressuposto o exercício de cargos ou funções menos importantes (e cronologicamente anteriores), bem como idades mínimas, sendo que algumas dessas “honras” eram exercidas exclusivamente na cidade de Roma, ao passo que outras eram exercidas fora de Roma – na Itália ou nas províncias. 

Assim, era algo absolutamente impensável para um senador quedar-se, anos a fio, numa província, sem exercer os cargos, as “honras”, que a sua idade e/ou dignidade permitiam.  Como se costuma dizer popularmente, “a fila anda”, e qualquer senador que “perdesse o bonde” dificilmente poderia recuperar o passo.  Obviamente, havia variações, mas, usualmente, nenhuma grande variação, a não ser em ocasiões bem específicas – nomeadamente, em períodos de guerras civis, ou de desordens.  Foi assim no agitado período do final da República e do início do principado de Augusto (c.50 aC a c.20 aC), como seria assim, também, entre o suicídio de Nero e os primeiros tempos de Vespasiano (mais ou menos 68 a 70 dC).  Mas o período compreendido entre a consolidação do principado de Augusto e os finais do governo de Nero, mais ou menos entre 20 aC e 68 dC, foi de notável estabilidade – mais ainda no principado do arquiconservador Tibério (14-37 dC), tão hostil a novidades, tão cioso das tradições. 

Portanto, e antes de tudo, é importante frisar que um senador nascido entre 1 dC e 3 dC, com 28 a 30 anos em 31 dC, não poderia esperar seguir um cursus não usual.  “Aquele” Lêntulo, como qualquer filho de senador (e ele seria, forçosamente, filho dum senador, e também neto, e bisneto, etc.), teria de seguir, mesmo que com algumas variações (que depois analisaremos) as diversas estações desse “cursus” – o mesmo “cursus” que é atestado, em inúmeras inscrições, para centenas de senadores[15], apenas levando-se em consideração o fato de que ele, como descendente direto de Lêntulo Sura, e membro da casa dos Cornélios Lêntulos, seria um nobilis (e, como nobilis, teria, na época imperial, algumas prerrogativas específicas ao seguir seu cursus honorum)[16]. 

Mas qual era, efetivamente, tal cursus? Quais os cargos que o compunham, e em que sucessão? Quais as idades mínimas admitidas? Em termos do conhecimento histórico, tudo isso já se encontra bem consolidado, podendo ser consultado, aliás, com relativa facilidade.  A seguir, apenas à guisa de exemplo, algumas fontes: 

·        Robert K. Sherk, “Translated Documents of Greece and Rome”, vol. 6, “The Roman Empire – Augustus to Hadrian”, Cambridge University Press, Cambridge, 1988: além de exemplos de carreiras senatoriais específicas, no corpo do texto (a de Adriano antes de ser Imperador, págs. 164-165; a de Gaio Júlio Quadrato Basso, págs. 178-179; a de Plínio o Moço, págs. 256-57), um Glossário (págs. 258-67) presta inúmeras informações acerca do cursus honorum senatorium;

·        Christian Settipani, “Continuité Gentilice”, Linacre College, Oxford, 2000 (obra já aqui mencionada): na pág. 11, apresenta uma detalhada tabela ilustrando o cursus honorum senatorium;

·        Barbara Levick, “The Government of the Roman Empire – A Sourcebook”, Croom Helm Ltd. E Billing and Sons Ltd., Worcester, Inglaterra, 1985: uma coletânea de textos (fontes primárias – ou seja, testemunhos literários e epigráficos) envolvendo as estruturas administrativas e governamentais do Império Romano, de Augusto à Anarquia Militar; várias informações sobre o cursus, espalhadas ao longo do livro, nas análises de textos específicos, especialmente págs. 6-12 e 46-47;

·        Anthony R. Birley, “The Roman Government of Britain”, Oxford University Press, escritório de Nova York, 2005: apesar de tratar especificamente da província da Britânia, em sua Introdução (intitulada justamente “The Senatorial Career in the Principate”, págs. 3-9) apresenta com detalhe o cursus honorum senatorium. 

A carreira senatorial na época imperial, tal como modificada por Augusto e mantida até ao séc. III dC, incluía, basicamente, quatro conjuntos de elementos: a) o exercício das antigas magistraturas anuais eletivas republicanas, em Roma; b) a pertença a um colégio sacerdotal de prestígio, bem como o exercício (opcional) de duas funções religiosas cerimoniais, a prefeitura dos Jogos Latinos e a liderança na parada dos cavaleiros; c) os postos governamentais, tanto nas províncias senatoriais quanto nas imperiais; e d) os novos postos que foram sendo sucessivamente criados pelos Imperadores. 

A primeira providência dum filho de senador prestes a iniciar sua carreira pública, ou, no mais tardar, bem no início da mesma, era tornar-se membro dum colégio sacerdotal; a importância e a dignidade do cargo assim obtido era determinada principalmente pela influência familiar.  Os sacerdócios tradicionais de Roma eram inicialmente prerrogativa dos patrícios; a luta pela igualdade de direitos na República, entre os séculos V e III aC, abriu os colégios sacerdotais também aos plebeus.  Mas alguns poucos cargos (como o de Sumo Pontífice e os dos três Flâmines Maiores) permaneceram exclusivos do patriciado; e, de qualquer modo, todos os cargos sacerdotais tradicionais, herdados da época republicana, estiveram sempre, e continuaram a estar, nas mãos dos nobiles, i.e., da velha aristocracia patrício-plebéia.  O número de vagas nos colégios sacerdotais era relativamente alta, de modo que sempre era possível a um jovem filho de senador encontrar um lugarzinho.  Os cargos eram individuais, não cumulativos (i.e., não se podia exercer senão um – exceção feita ao Imperador, que era membro supranumerário de todos os colégios sacerdotais) e vitalícios.  A importância de todos esses cargos sacerdotais estava longe de ser desprezível, ao menos no início do Principado; os sacerdotes presidiam a uma série de rituais que eram considerados (ao menos pela maior parte do povo) como indispensáveis ao bom andamento dos negócios de Estado e à prosperidade do Império, a qual dependia da boa-vontade dos deuses, bem como do cumprimento escrupuloso de todos os rituais tradicionais.  Augusto percebeu claramente essa atmosfera, e não poupou esforços no sentido de devolver ao culto público toda a sua antiga dignidade.  Quatro associações sacerdotais eram consideradas as mais prestigiosas (as quattuor amplissima sacerdotia) – os pontífices, os áuruges, os quindecênviros para assuntos sagrados e os setênviros epulões.  Dando a palavra a Syme[17]:

 

(…) Patrician themselves, both Sulla and Caesar showed them favour.  New gentes were added in 29.  Certain sacerdotal functions were confined to patricians, needed also to keep up a proportion in the major colleges.

 

 

 

Pontiffs, augurs, quindecimviri sacris faciundis, septemviri epulonum, these constituted the quattuor amplissima sacerdotia.  For nobiles they were accessible even in extreme youth, well before the senatorial age.  The  colleges now received a marked augmentation, rising above twenty members for the first three.  No senator hold more than one.  Many nobiles might thus aspire, even without special claims on Caesar and the friends of Caesar. (…) And Caesar Augustus belonged, supernumerary, to each college and fraternity (not excepting the inferior Titii and Fetiales).

 

 

n official precedence the Arvales of necessity took range behind the quattuor amplissima.  Being twelve in number, they were highly select (…).

(…) Eles mesmos patrícios, tanto [Cornélio] Sila quanto [Júlio] César mostraram favor ao patriciado.  Novas famílias foram elevadas ao patriciado em 29 [aC por Augusto, utilizando suas prerrogativas de censor].  Certos cargos sacerdotais eram exclusivos dos patrícios, os quais eram também necessários para marcar presença [ao menos] nos grandes colégios sacerdotais.

Pontífices, áurugres, quindecênviros para assuntos sagrados e setênviros epulões constituíam os “quatro grandes colégios” (quattuor amplissima sacerdotia).  Para os nobiles, [cargos nesses colégios] podiam ser ocupados desde a primeira juventude, antes mesmo do início da carreira senatorial.  Os colégios então [sob Augusto] tiveram o número de seus membros aumentado, havendo mais de vinte vagas apenas para os três primeiros [antes mencionados].  Nenhum senador podia adquirir mais de um cargo.  Assim, muitos nobiles podiam aspirar a um lugar, mesmo que não tivessem uma ligação especial com o Imperador, ou com os amigos do Imperador.  (…) E Augusto pertencia, supernumerariametne, a cada um dos colégios e irmandades (inclusive aos Tícios e aos Feciais). 

Na precedência oficial, os Arvais encontravam-se, teoricamente, após os Quatro Grandes [embora tivessem tanto prestígio quanto esses].  Sendo doze em número, seus membros eram altamente selecionados (…).

 

O colégio dos Pontífices era, de todos, o mais prestigioso; o nome parece originar-se da raiz latina arcaica “pont”, “caminho”, “estrada” (cf. o sânscrito pánthah, “caminho”).  Sua composição era relativamente complexa, já que a esse colégio estava reservada a supervisão geral de todos os aspectos religiosos da sociedade romana, devendo pronunciar-se, quer via decreta (ordenamentos emitidos a partir da vontade do próprio colégio, e que tinham força de lei), quer via responsa (respostas a questões formuladas pelo Senado), sobre a correta execução de qualquer cerimônia religiosa, bem como sobre qualquer atividade de cunho religioso que não estivesse sob a alçada dos demais colégios sacerdotais.  Faziam parte desse colégio: a) os pontífices propriamente ditos (de início, ao que parece, 3; desde a lei Ogúlnia de 300 aC, 9; desde Sila, 15; e desde Júlio César, 16); b) o rex sacrorum, que havia herdado, na República, as funções religiosas cerimoniais originariamente ligadas ao rei, quando Roma ainda era uma monarquia; c) os três Flâmines Maiores, responsáveis diretos pelo culto dos mais antigos e importantes deuses do panteão romano: o Flâmine de Júpiter (Flamen Dialis), o Flâmine de Marte (Flamen Martialis) e o Flâmine de Quirino (Flamen Quirinalis); d) pelo menos desde o final da República, os 3 assim chamados “pontífices menores”.  Desse modo, na época de Augusto e de seus sucessores, o colégio dos Pontífices possuía 23 membros.  Seu chefe, o Sumo Pontífice (Pontifex Maximus), era o chefe da religião estatal romana, e esse cargo era sempre ocupado pelo Imperador reinante. 

Sob a supervisão direta do Sumo Pontífice, mas, a rigor, não fazendo parte do colégio pontifical estavam as 6 Virgens Vestais e os 12 Flâmines Menores (Flâmines Vulcanal, Cereal, Carmental, Portunal, Volturnal, Palatual, Furrinal, Floral, Falácer, Pomonal e dois outros cujos nomes são atualmente desconhecidos). 

Os áugures tinham como função, diante duma situação especial que ocorresse, ou duma decisão importante a ser tomada, interpretar a vontade dos deuses, mediante a observação e a análise de algum fato da Natureza, geralmente o vôo das aves.  Chamava-se a isso “tomar os augúrios”, ou “tomar os auspícios”, e todos os atos do Estado tinham que ser levados adiante “sob bons auspícios”, i.e., com uma interpretação favorável da vontade dos deuses, por parte dos áugures.  Inicialmente em número de 3, a lei Ogúlnia de 300 aC os fixou em 9 (5 dos quais tinham que ser plebeus), Sila os aumentou para 15 e Júlio César para 16.  Não obstante, pelo menos desde o ano 29 dC, sob Tibério, o Imperador adquiriu o direito de nomear áugures supra numerum, ou seja, na quantidade que julgasse necessária[18]. 

Os quindecênviros para assuntos sagrados (quindecimviri sacris faciundis), originariamente 2 (duumviri), depois 10 (decemviri), enfim 15 (quindecimviri) desde Sila, eram os responsáveis pela interpretação dos Livros Sibilinos, antigos livros de profecias que, em ocasiões de emergência, eram consultados, por ordem do Senado, a fim de se obter um curso de ação aprovado pelos deuses.  Apenas a interpretação dos quindecênviros era considerada a “correta”, e apenas os livros sibilinos de que eram os guardiões eram tidos como sendo, de fato, inspirados pela divindade. 

Enfim, os setênviros epulões (septemviri epulones), originariamente um colégio formado por 7 membros, como continuou a constar em seu título, mas, desde Júlio César, em número de 8, eram os encarregados de organizar os banquetes sagrados em honra aos deuses, em suas festividades específicas. 

Esses eram, assim, os quattuor amplissima sacerdotia.  Mas, a partir de Augusto, mais especificamente a partir de 28 aC, a Irmandade Arval (Fratres Arvales) passou a exibir o mesmo grau de importância, sendo inserida nos mais altos círculos do culto estatal.  Era um colégio formado por 12 membros, um dos quais, a partir de então, sempre o Imperador.  Originariamente, os Arvais eram os responsáveis por um culto agrário, o da Dea Dia (literalmente, a “deusa da luz do dia”, depois assimilada a Ceres), ao que se diz fundado pelo próprio Rômulo, juntamente com os onze filhos de sua mãe de criação, Aca Larência, com o fim de garantir a fertilidade do solo e a abundância das colheitas.  As cerimônias realizavam-se na gruta de Dea Dia, situada na altura do quinto marco miliário da via Campana, a oeste de Roma (c.7-8 km), na margem direita do Tibre (atualmente o lugar denominado La Magliana Vecchia).  No presente trabalho já foram apresentadas várias características desse colégio sacerdotal. 

Além dos colégios citados anteriormente, havia os Feciais (Fetiales), com 20 membros, responsáveis pelos aspectos religiosos solenes ligados aos tratados com povos estrangeiros e, também, com o início e o fim das guerras, zelando para que toda e qualquer guerra levada a cabo pelo povo romano fosse “justa” (bellum iustum)[19]; os Sálios, que cultuavam o deus da guerra, Marte, mediante danças rituais – dentre os Sálios havia dois colégios, o dos Sálios Palatinos (Salii Palatini, que se reuniam no Palatino) e o dos Sálios Colinos (Salii Colini, que se reuniam no Quirinal), cada um com 12 membros[20]; e os Irmãos Tícios (Sodales Titii), de origem obscura e número desconhecido, mas aparentemente ligados a Rômulo e a seu sogro Tito Tácio, outra agremiação que Augusto resgatou da obscuridade[21]. 

Tem-se, assim, uma visão bem geral, e resumida, dos sacerdócios disponíveis a um filho de senador em início de carreira; o número de vagas era alto – p.ex., apenas entre os quattuor amplissima, havia 59 postos (descontando-se já os ocupados pelo Imperador). 

As antigas magistraturas anuais republicanas, exercidas em Roma (exceto as questuras na Itália e em províncias senatoriais), apresentavam-se, na época imperial, cada vez mais, como meramente honoríficas, com pouco poder efetivo em si[22].  Seu exercício era oneroso (i.e., sem pagamento de espécie alguma), exigindo, muitas vezes, a organização (e o custeio) de dispendiosos jogos.  O quadro a seguir as ilustra. 

Magistratura/Cargo

Função

Idade Mínima[23]

Número de Postos

Incumbentes

Vigintivirado

Cargos (não eram magistraturas, mas eram postos anuais)

Decemviri stlitibus iudicandis

Julgamento de casos envolvendo condição pessoal (cidadão/não cidadão; livre/escravo)

18 anos (geralmente exercidos entre os 18 e os 20 anos); exercia-se um desses 20 cargos

10

Patrícios ou plebeus

Triumviri monetales

Cunhagem de moeda

3

Triumviri capitales

Prisão e execução de sentenças capitais

3

Quattuorviri viis in Urbe purgandis

Limpeza dos logradouros de Roma

4

Tribuno Militar

(Tribunus militum)

Cargo

Oficial sênior numa legião

20 anos

6 por legião, sendo 1 de nível senatorial; sob Tibério, 23 postos em 23 das 25 legiões

Patrícios ou plebeus (tribunos laticlavos)

Questor

(Quaestor)

Magistratura

Funções financeiras e contábeis (Roma, Itália e províncias senatoriais)

30 anos na República, 25 anos no Império

20 (sendo 8 a 10 nas províncias senatoriais)

Patrícios ou plebeus

Tribuno da Plebe

(Tribunus plebis)

Magistratura

Proteção aos plebeus

37 anos na República, 27 no Império; o plebeu exercia ou o cargo de tribuno, ou o de edil

10

Somente plebeus

Edil

(Aedilis)

Magistratura

Manutenção da ordem pública e abastecimento

6

Pretor

(Praetor)

Magistratura

Funções de jurisdição civil

40 anos na República, 30 no Império

12 sob Augusto e Tibério

Patrícios ou plebeus

Cônsul

(Consul)

Magistratura

Supremo magistrado; funções judiciárias e militares

42 anos; no Império, 32 anos para os nobiles ou protegidos

2 ordinários e vários sufetas (sob Augusto e Tibério, usualmente 2)

Patrícios ou plebeus

 

O jovem filho de senador, geralmente já portando um sacerdócio, iniciava assim sua carreira com 18 anos, ou pouco mais, num dos postos do vigintivirado, na cidade de Roma; logo a seguir, prestava seu serviço militar (nas províncias onde havia legiões). 

Cidadãos comuns iniciavam seu serviço militar como simples soldados; membros da ordem eqüestre, como comandantes (praefecti ou tribuni) de corpos auxiliares (de cavalaria ou infantaria) e como tribunos militares (tribuni militum), oficiais seniores numa legião; filhos de senadores também começavam seu serviço militar como tribunos militares.  Havia em cada legião seis tribunos militares (tribuni militum), sendo um posto reservado a filhos de senadores (tribuno “laticlavo”, i.e., “da faixa larga”, alusão à larga faixa púrpura que os senadores podiam usar em suas togas) e cinco reservados a membros da ordem eqüestre (tribunos “angusiclavos”, i.e., “da faixa estreita”, alusão à estreita faixa de púrpura que os cavaleiros podiam usar em suas togas)[24]. 

Sob Augusto (após o desastre de Varo na floresta de Teutoburgo, na Germânia, em 9 dC, quando três legiões foram trucidadas) e Tibério, havia 25 legiões no Império, três das quais estacionadas no Egito.  Numa data desconhecida entre 7 aC e 23 dC uma das legiões egípcias foi retirada do país, e na guarnição remanescente permaneceram a III Cyrenaica e a XXII Deiotariana.  Como o governador do Egito (o praefectus Aegypti) era de nível eqüestre, para não haver conflito de autoridade as legiões egípcias não possuíam tribunos laticlavos, e mesmo os seus comandantes não eram de nível senatorial, mas sim eqüestre[25].  Desse modo, havia (certamente após 23 dC) 23 postos de tribunos militares laticlavos (tribuni militum laticlavii) para os jovens senadores. 

Servia-se no mínimo por um ano, na média por três; geralmente numa única legião, embora alguns servissem como tribunos em duas legiões, e até mesmo, excepcionalmente, em três (casos, p.ex., do futuro Imperador Adriano e de Lúcio Minício Natal, cônsul sufeta 106 dC)[26].  Após o serviço militar, seguia-se a questura; ao exercer o cargo de questor, o jovem filho de senador tornava-se enfim ele próprio um senador de pleno direito, recebendo um assento na suprema assembléia. 

Havia 20 questores, magistrados com atribuições financeiras e contábeis, que podiam ser divididos (usualmente) em dois grupos de 10. 

O primeiro grupo exercia suas funções em Roma ou na Itália.  Dois (quaestores Augusti) eram postos ao serviço direto do Imperador, e o acompanhavam onde quer que fosse; esses lugares eram muito cobiçados.  Outros dois ficavam, como na época republicana, à disposição dos cônsules em exercício; dois (quaestores urbani) quedavam-se em Roma; e os quatro restantes eram distribuídos em determinados locais da Itália onde houvesse significativa movimentação monetária (um em Óstia, o porto de Roma; outro na Calles Italiae, a região de bosques que se estendiam da Campânia aos Apeninos, onde valiosos rebanhos pastavam; outro no Ager Gallicus, na região do Adriático, operando a partir de Arímino ou de Ravena; e outro talvez nalgum porto do sul, na região da Campânia, quiçá com base no movimentado porto de Putéolos)[27]. 

O segundo grupo exercia suas funções nas (usualmente) dez províncias senatoriais, como auxiliares financeiros dos procônsules.  Havia dois tipos de províncias: a) as “do povo”, ou “senatoriais”, cujos governadores (todos com o título de “procônsul”) eram ex-cônsules ou ex-pretores, e que eram nomeados pelo Senado, e b) as “de César”, ou “imperiais”, cujos governadores podiam ser ou senadores (ex-cônsules ou ex-pretores), ou então, para algumas províncias menores, e para o Egito, cavaleiros (a Judéia anterior à revolta de 66-72 dC era um desses casos). 

Embora o número normal de províncias senatoriais fosse de 10, entre 15 e 44 dC (justamente o período que aqui nos interessa) havia apenas 8[28], que eram: África, Ásia, Sicília, Chipre, Bitínia-e-Ponto (noroeste da Ásia Menor), Creta-e-Cirene (a ilha e a região da Cirenaica, na Líbia), Gália Narbonense (atual sul da França) e Bética (atual Andaluzia).  As duas primeiras eram de nível consular (ou seja, seus governadores eram ex-cônsules); as demais, de nível pretoriano (ou seja, seus governadores eram ex-pretores)[29].  Para cada uma delas era designado anualmente pelo Senado (além dum procônsul) um questor. 

Nesse estágio, três funções (sendo duas meramente honoríficas) podiam ser exercidas por um novo senador, se ele assim o desejasse: 

·        Podia exercer, durante algum tempo (duração incerta) as funções de ab actis Senatus, ou seja, de encarregado do registro, da manutenção e da organização dos arquivos senatoriais (no Tabulário de Sila);

·        Podia exercer o cargo de Prefeito do Festival Latino (Praefectus Feriarum Latinarum), que ocorria anualmente, e dedicado a Júpiter Latiar, nos Montes Albanos, nas cercanias de Roma;

·        Podia ser um dos Seis Encarregados do Desfile Eqüestre (Sevir Equitum Romanorum), que comandavam o desfile cerimonial anual dos cavaleiros (i.e., da ordem eqüestre, a segunda ordem estamental da sociedade romana, abaixo da ordem senatorial), o transvectio equitum, em Roma, no dia 15 de julho. 

Tendo exercido a questura, podia também (mas isso era relativamente raro) tornar-se o auxiliar dum procônsul (portanto, numa província senatorial), ou seja, um “legado com poderes propretorianos” (legatus pro praetore) dum procônsul. 

Seguindo o cursus, o agora senador, se plebeu, tinha que tornar-se ou tribuno da plebe, ou edil (ambas as magistraturas sendo exercidas em Roma); sob o Império, eram cargos cada vez mais destituídos de poder real, mas com eles se podia firmar uma clientela na capital.  Patrícios não passavam por tal fase. 

Tendo alcançado os seus quase trinta anos de idade (mais ou menos a idade que “aquele” Lêntulo tinha, conforme ele próprio informa, em maio de 31 dC), o senador podia, então, exercer a pretura, na cidade de Roma, um cargo-chave, que lhe abriria as portas para o exercício de numerosas funções. 

Embora já destituídos de suas antigas prerrogativas militares e administrativas, os pretores ainda exerciam, no início do Principado, importantes funções judiciais na área civil; muito tinham auxiliado, e ainda muito auxiliariam, no desenvolvimento do Direito Romano.  Sob Augusto e Tibério havia 12 pretores, que exerciam suas funções em Roma, e há claros indícios de especialização individual na sua atuação.  Desse modo, além do praetor urbanus (que julgava disputas entre cidadãos romanos) e do praetor peregrinus (que julgava disputas entre não cidadãos, ou entre cidadãos e não cidadãos), herdados da República, havia também, p.ex., um praetor de liberalibus causis (ou praetor liberalium causarum), com jurisdição em matérias concernentes à liberdade do indivíduo, especialmente em litígios entre escravos e seus senhores concernentes à liberdade dos escravos, ou um praetor fideicommissarius, com jurisdição específica sobre os fideicomissos[30]. 

Terminada a pretura, o senador, agora denominado praetorius (“de nível pretoriano”), podia aspirar a uma série de funções importantes, que, para a época de Tibério, são listadas na tabela a seguir, aproximadamente em nível crescente de prestígio[31]. 

Hierarquia

Cargo

Número de Incumbentes

Prazo de incumbência

Local de exercício

Descrição e Observações

Cargos Juniores

Legatus legionis

Sob Tibério, 23

Variável; no mínimo 1 ano, usual de 2 a 3 anos

Províncias

Comando de legião (exceto as duas legiões egípcias)

Praefectus frumenti dandi

4[32]

Provavelmente 1 ano, prorrogável até 3 anos

Roma

Distribuição do trigo gratuito à plebe romana

Legatus proconsularis pro praetore

13 (entre 15 e 44 dC, 11)[33]

1 ano

Províncias senatoriais

Auxiliar dos procônsules

Cargos Intermediários

 Legatus (iuridicus) pro praetore

1

Variável; na média, de 3 a 5 anos

Hispânia Tarragonense

Auxiliar jurídico do governador

Legatus Augusti pro praetore

5[34]

Variável; na média, de 3 a 5 anos

Províncias imperiais sem legiões

Governadores de províncias imperiais sem legiões

Praefectus aerarii militaris[35]

3

Usualmente 3 anos

Roma

Pagamento dos soldos e das reformas militares

Proconsul

8 (entre 15 e 44 dC, 6)[36]

1 ano

Províncias senatoriais de nível pretoriano

Governadores de províncias senatoriais pretorianas

Cargos seniores

Legatus Augusti pro praetore

Sob Tibério, não havia cargos desse tipo[37]

Variável; na média, de 3 a 5 anos

Províncias imperiais com uma legião

Governadores de províncias imperiais com uma legião

Praefectus Aerarii Saturni[38]

2

Variável; de 1 a 3 anos

Roma

Responsáveis pelo tesouro público

Curator viarum[39]

9

Muito variável; usualmente de 1 a 3 anos

Itália

Encarregados das principais estradas italianas

 

Após ter exercido a pretura, e ao menos alguns dos cargos pretorianos, o senador, agora praetorius, podia aspirar ao consulado (32 anos, completados em serviço, se nobilis, ou 42 anos, completados em serviço, se novus homo), quer ordinário, quer sufeta. 

Uma vez que tivesse exercido o consulado, o senador se tornava, enfim, um “consular” (consularis), e passava a fazer parte da “nata” do Senado.  A ele estavam abertos, agora, os mais cobiçados postos governamentais, ou seja, o governo das províncias imperiais onde estacionavam várias legiões[40]; e, além disso, podia exercer os prestigiosos proconsulados da África e da Ásia (normalmente oferecidos a senadores que houvessem exercido o consulado ordinário), podendo coroar sua carreira com um segundo ou, excepcionalmente, terceiro consulados, e, enfim, com a prefeitura urbana de Roma. 

As funções consulares encontram-se listadas na tabela a seguir, aproximadamente em nível crescente de prestígio. 

Hierarquia

Cargo

Número de Incumbentes

Prazo de incumbência

Local de exercício

Descrição e Observações

Cargos Juniores

Curator aedium sacrarum et operum locorumque publicorum[41]

2

Variável; usualmente 2 anos, logo após o consulado

Roma

Manutenção dos templos, edifícios públicos e monumentos de Roma

Curator alvei Tiberis et riparum et cloacarum[42]

5

Variável; usualmente 2 anos

Roma

Manutenção dos esgotos e das margens do Tibre

Cargos Intermediários

Legatus Augusti pro praetore

Sob Tibério, 3 províncias[43]

Variável; na média, de 3 a 5 anos

Províncias imperiais com 2 ou 3 legiões

Governadores de províncias imperiais com 2 ou 3 legiões

Curator aquarum[44]

1

Muito variável; algumas vezes, vitalício

Roma

Abastecimento de água e conservação dos aquedutos

Cargos Seniores

Legatus Augusti pro praetore

Sob Tibério, 4 províncias[45]

Variável; na média, de 3 a 5 anos

Províncias imperiais com grandes comandos

Governadores de províncias imperiais de grandes comandos

Proconsul

2

1 ano

Províncias senatoriais consulares (África e Ásia)

Governadores da África e da Ásia

Praefectus Urbi

1

Variável; algumas vezes, vitalício

Roma

Encarregado da cidade de Roma na ausência do Imperador

 

Após exercer um (ou vários) dentre os cargos consulares juniores e intermediários, um senador de sucesso (ou, por qualquer motivo, favorecido pelo Imperador) poderia aspirar a um dos grandes comandos militares (a Tarragonense, as duas Germânias, a Síria-Capadócia); e, como encerramento “em grande estilo”, ao proconsulado da África ou da Ásia[46], duas províncias ricas, altamente civilizadas e urbanizadas, e, especificamente no caso da África, detentora de fortes vínculos com a aristocracia senatorial[47].  Para aqueles muitíssimo hábeis, ou influentes, ou que caíssem de modo especial nas boas graças do soberano, poderia haver um segundo, ou, muito excepcionalmente, um terceiro consulados[48], e, enfim, como o pináculo da carreira senatorial (embora para bem poucos), a prefeitura urbana de Roma. 

Esse era, em linhas bem gerais, e necessariamente de modo resumido, o cursus honorum senatorium, a “carreira das honras”, a “sucessão dos cargos” que estavam disponíveis a um senador. 

O cursus anteriormente mostrado foi o “completo”, ou seja, aquele seguido por um filho de senador.  Mas o Senado não era uma assembléia meramente hereditária (embora o fosse em larga medida); e o Imperador podia “elevar” ao nível senatorial membros proeminentes da ordem eqüestre, geralmente aqueles que tivessem mostrado excepcional talento administrativo (e fidelidade ao governante).  Esse “acréscimo” ao corpo senatorial era denominado adlectio, havendo, de modo geral, três “degraus”[49]: 

·        Adlectus inter quaestorios: o novo senador entrava no Senado como se tivesse exercido o cargo de questor (embora não o tivesse exercido, e nem, obviamente, o vigintivirado); a partir de então, seguia o cursus normal;

·        Adlectus inter aedilicios/tribunicios: a pessoa entrava no Senado já com o “status” de ex-edil, ou de ex-tribuno da plebe (embora, de fato, não tivesse exercido tais cargos, e nem, obviamente, os anteriores); a partir de então, seguia o cursus normal;

·        Adlectus inter praetorios: o mais afortunado, entrava no Senado já com o “status” de ex-pretor (embora não tivesse exercido tal cargo, e nem, obviamente, os anteriores do cursus); a partir de então, seguia o cursus normal. 

Todos esses adlecti, obviamente, tinham uma “dívida especial” para com o Imperador, e eram, no geral, seus mais incondicionais apoiadores.  O soberano se servia do instituto da adlectio para, por assim dizer, “oxigenar” a suprema assembléia, injetando-lhe o sangue novo de pessoas empreendedoras e ambiciosas, mas leais, já que deviam sua nova posição no topo da sociedade inteiramente a ele. 

Mas não seria esse o caso, obviamente, “daquele”, do “nosso” Lêntulo.  Ele era um Cornélio Lêntulo, patrício legítimo, de sangue, e teria, na “nova ordem” de Augusto e dos Júlio-Cláudios, um direito “de nascença” a seguir o cursus honorum senatorium.  E agora passamos justamente a examinar, ainda que em linhas gerais, a carreira que esse tão famoso “Públio Lêntulo”, à luz da sucessão de cargos a que tinha direito, teria de seguir, se quisesse transformar seu direito potencial em poder de fato e em influência efetiva.  Assim, acompanharemos, tanto quanto possível, a “carreira” (o cursus) “daquele” Lêntulo, a fim de estabelecer se as informações sobre ele disponíveis são ou não compatíveis com o consenso histórico que até aqui foi apresentado.

Inicialmente (e sempre é bom relembrar tal ponto), como inclusive já foi notado neste trabalho, logo no início do 1º capítulo da 1ª parte da psicografia de Xavier “Há Dois Mil Anos” Públio Lêntulo é dito “homem ainda moço”; e, logo a seguir, é apresentado como “homem relativamente jovem, aparentando menos de trinta anos, não obstante o seu perfil orgulhoso e austero”.  Tudo isso numa cena passada, segundo a mesma psicografia, no mês de maio do ano 31 dC. 

Em termos do estabelecimento da idade de “Públio Lêntulo”, assim, a conclusão óbvia é a de que a personagem em questão devia ter entre 28 anos completos e 30 anos incompletos em maio de 31 dC (“quase trinta anos” – não tinha ainda 30, devendo ter 29 ou, no mínimo, 28 anos completos, na ocasião, para que se pudesse legitimamente usar concomitantemente as expressões “quase trinta anos” e “homem ainda moço”, do modo como as usa a psicografia).  Por conseguinte, “aquele” Lêntulo deve ter nascido ou em 1 dC, após maio (tendo, assim, 30 anos incompletos em maio de 31 dC, mas a completar os 30 nesse mesmo ano), ou em 2 dC ( tendo portanto 29 anos completos em 31 dC), ou, na pior das hipótese, em 3 dC (com 28 anos completos em 31 dC). 

Isso posto, segue-se que “Públio Lêntulo” completaria 18 anos entre os anos 19 e 21 dC.  Nessa ocasião, com certeza já estaria exercendo um sacerdócio, e quase certamente num colégio sacerdotal de prestígio, um entre os quattuor amplissima sacerdotia já citados, ou mesmo na Irmandade Arval, já que se tratava dum patrício de alta estirpe (e tendo em vista, como já demonstrado neste trabalho, a relativa abundância de ofícios sacerdotais disponíveis para os nobiles). 

E nessa época, também (i.e., entre os anos 19 e 21 dC), iniciaria “nosso” Lêntulo o seu “cursus”, em Roma, num dos 20 postos do vigintivirado. 

Sendo um patrício de alta estirpe, um Cornélio Lêntulo “de sangue”, descendente da nobilitas republicana (mais ainda, da nobilitas patrícia republicana…), poderia esperar, não apenas uma prestigiosa função sacerdotal, mas mesmo, quem sabe, dentro do vigintivirado, o cargo de monetalis, que era o de maior prestígio[50]. 

Mas, quanto a isso, ou seja, quanto a seu cargo sacerdotal (que certamente exercia desde sua primeira mocidade), bem como quanto a sua exata posição no vigintivirado, o que nos informa a psicografia? Nada.  Simplesmente nada. 

Continuemos.  Uma vez tendo exercido o vigintivirado, logo depois, com cerca de 20 anos de idade (ou seja, entre os anos 21 e 23 dC, aproximadamente) “nosso” Lêntulo obteria o cargo de tribuno laticlavo numa legião, servindo no mínimo por um ano, em média por três.  Em que legião? Bem, como tudo em Roma, e nas altas esferas, muito dependeria dos contatos sociais.  O nosso querido Lêntulo era um patrício de alta estirpe; outros Lêntulos (todos do ramo dos Lêntulos Marcelinos, convém frisar – não tão “nobres” quanto um “autêntico” Lêntulo de sangue, caso do bisneto de Lêntulo Sura…) haviam prestado serviço militar com distinção, e, como se costuma dizer, “quem tem padrinho não morre pagão”: 

·        Na África, Cosso Cornélio Lêntulo Getúlico havia sido procônsul por dois turnos, entre 5 e 7 dC, e lá obtido decisivas vitórias contra os berberes (chamados genericamente “gétulos”; daí seu nomen triumphalis de Gaetulicus); amigo tanto de Augusto quanto de Tibério, seria nomeado prefeito urbano de Roma em 33 dC, tendo exercido esse prestigioso cargo até à sua morte, natural, em 36 dC;

·        Justamente nessa época (21-24 dC), em que “nosso” Lêntulo estaria prestando seu serviço militar como tribuno laticlavo, um sobrinho de Cosso, Públio Cornélio Lêntulo Cipião, que havia sido pretor em 15 dC[51], comandava a IX Legião, Hispana, na África, durante a guerra contra Tacfarinas[52];

·        Os dois filhos de Cosso, Cosso o Moço (cônsul 25 dC) e o famoso Gneu Cornélio Lêntulo Getúlico (cônsul 26 dC), foram sucessivamente os legados propretorianos da Germânia Superior (i.e., do sul da fronteira do Reno), com quatro legiões estacionadas, além de numerosas tropas auxiliares, de c. 26 a 29 dC e de 29 a 40 dC, respectivamente; e a irmã de Gneu e do jovem Cosso, Cornélia Getúlica, casou-se, por sua vez, com Gaio Calvísio Sabino, colega de Gneu no consulado de 26 dC e governador da Panônia de 36 a 39 dC – uma província na qual estacionavam, na ocasião, três legiões. 

Por conseguinte, nosso querido Lêntulo teria, por volta de seus 20 anos de idade, lá por 21 a 23 dC, bons “padrinhos” para lhe arranjarem um tribunado laticlavo tal que lhe desse alguma glória, e que pudesse alavancar sua carreira.  Poderia mesmo ter servido 3 anos, ou seja, de 21/23 dC a 24/26 dC, aproximadamente, se tivesse, por assim dizer, gosto pela coisa, ou então por apenas um ano (21/23 dC a 22/24 dC, aproximadamente); de qualquer modo, se mostrasse um mínimo de talento, certamente chamaria a atenção favoravelmente para si – porque patrocínio, com certeza, ele teria. 

Mas o que nos informa a psicografia acerca do serviço militar de Lêntulo como tribuno laticlavo? Nada. 

Mais ainda: o que nos informa a psicografia acerca desses Lêntulos (reais, e atestados historicamente) que estavam vivos e atuantes nessa época – o velho Cosso, seus dois filhos, seu sobrinho comandante de legião, isso para não falar de Lêntulo o Áugure, o grande amigo de Tibério, que morreria sem filhos em 25 dC? Nada. 

Mas muito bem; continuemos.  Tendo prestado seu serviço militar, como tribuno laticlavo, Públio Lêntulo, o bisneto de Lêntulo Sura, poderia, aos 25 anos (que ele completaria entre 26 e 28 dC), exercer a questura, entrando assim, formalmente, no Senado.  Nunca é demais relembrar que, para ter assento na suprema assembléia, para se tornar, enfim, um senador de pleno direito, Lêntulo teria que ter exercido a questura, teria que ter sido questor.  Tratava-se, assim, de ponto básico e importante na carreira dum filho de senador, e que não poderia ser ignorado. 

Mas, em que termos a teria exercido? Como um dos (então) 12 questores em Roma, ou como um dos (então) 8 questores presentes nas províncias senatoriais? Se em Roma, como um dos questores ligados ao Imperador? E o que a psicografia nos informa acerca da questura de “nosso” Lêntulo? Para variar, nada… 

E notem os leitores que um questor em 26 dC (usando-se aqui a data mais antiga possível, no caso) JAMAIS poderia ter sido um cônsul (mesmo sufeta) em 27 dC.  Faltava a Lêntulo, antes do consulado, ainda a pretura, um cargo que ele não poderia exercer antes dos 30 anos, ou seja, antes do período 31/33 dC – justamente a época em que nosso querido (e altamente idiossincrático) Lêntulo havia decidido embarcar para a Judéia, numa “legação”, ou o que o valha (trataremos dessa fictícia e impossível legação, com detalhe, mais adiante), e lá permanecendo, pasmem, quinze anos[53] 

Portanto, mais uma razão, a se somar às várias já mostradas neste trabalho, para se afirmar que o cônsul sufeta de 27 dC, “P Le[”, não era, não podia ser, “aquele” Lêntulo.  Para que o enigmático sufeta de 27 dC pudesse exercer nesse ano o consulado ele deveria ter, no mínimo, 32 anos na ocasião (supondo que fosse um nobilis), ou seja, deveria ter nascido, no mínimo, em 6 aC (completando 32 anos em 27 dC, portanto).  E, em tendo nascido em 6 aC, completaria em 31 dC 36 anos de idade, contradizendo as informações (ainda que um tanto nebulosas) constantes no início da psicografia, e anteriormente citadas, acerca da idade de Públio Lêntulo[54]. 

Deve-se aqui fazer uma pausa.  Porque a psicografia informa um (e apenas um) cargo que Públio Lêntulo teria ocupado, na sua “primeira mocidade”, antes de 31 dC.  Ele teria estado à frente da administração da cidade de Esmirna por um ano[55]. 

É isso que se pode depreender do trecho (também enigmático, também nebuloso…) da psicografia: na sua “primeira mocidade” (quantos anos, afinal?), Lêntulo havia “servido um ano na administração de Esmirna” (em que condições, precisamente?), a fim de “integrar-se” no “mecanismo dos trabalhos do Estado”.  Essa informação é, para se dizer o mínimo, altamente problemática. 

Em primeiro lugar, e antes de tudo, todo o “cursus honorum” objetivava “integrar”, progressivamente, o senador no “mecanismo os trabalhos do Estado”.  O trecho dá a impressão nítida (para quem o lê com isenção e sem paixões) que, especificamente, o “estágio” (por assim dizer) em Esmirna era uma preparação para que Lêntulo pudesse adquirir experiência a fim de exercer, no Senado, as “funções administrativas e judiciais” a que tinha direito[56].  Ora, tal não era o caso, como se nota claramente ao se examinar o cursus honorum senatorial.  Os cargos iam se sucedendo em grau crescente de complexidade e de responsabilidade; e foi só esse “cargo” que Lêntulo exerceu? Não exerceu o vigintivirado, nem foi tribuno numa legião, nem questor? Tal cargo em Esmirna, do modo como está escrito não faz sentido. 

Em segundo lugar, os cargos que um filho de senador (e nosso Lêntulo era um filho de senador…) exercia na sua “primeira mocidade” eram os cargos preparatórios, quais sejam, o vigintivirado (em Roma) e o tribunado militar laticlavo (numa legião, estacionada nas fronteiras do Império); tais cargos eram exercidos entre os 18 e os 21 anos (caso o filho de senador passasse apenas um ano como tribuno laticlavo), ou entre os 18 e os 23 anos (caso servisse três anos nas legiões).  Nessa época, sim, sem dúvida, o filho de senador poderia ser considerado como em sua “primeira mocidade”.  O próximo cargo a ser exercido, a questura, estava-lhe aberto a partir dos 25 anos.  Sem dúvida, uma pessoa de 25 anos podia ser considerada “jovem”, mas torna-se difícil admitir que, nessa ocasião, estivesse em sua “primeira mocidade”, ainda mais tendo em vista que, ao exercer a questura, o jovem filho de senador (agora um senador por direito próprio, com assento na assembléia) já teria exercido cargos anteriores (o vigintivirado e o tribunado militar).  Simplesmente não havia nenhum cargo administrativo, nas províncias, que um filho de senador pudesse exercer na sua “primeira mocidade”… 

E em terceiro lugar, finalmente, não havia NENHUM cargo anual que um senador, ou filho de senador, pudesse exercer em Esmirna – mais precisamente, “na administração de Esmirna”. 

Esmirna, como aliás todos os centros urbanos do Império, com exceção da própria Roma e de Alexandria, tinha um governo municipal independente (melhor dizendo, “autônomo”), com suas assembléias e seus magistrados locais, e inclusive com o seu magistrado epônimo, que, para a referida cidade de Esmirna, ostentava o pomposo título de “portador da coroa”, ou “coroado”[57].  Tais assembléias, e tais magistrados, cuidavam da administração local, de acordo com seus antigos usos, costumes, leis e tradições, no que não conflitasse com a soberania de Roma. 

No caso específico de Esmirna, a cidade era, também, a sede de um dos conventus iuridici da província da Ásia[58], ou seja, de um dos lugares onde o procônsul, em seu giro anual, realizava audiências; mas não havia lá funcionários romanos residentes atuando, em tempo integral, durante um ano inteiro, na sua administração.  O que é informado a esse respeito na psicografia não faz nenhum sentido; simplesmente, não era assim que as coisas funcionavam. 

A única possibilidade de se conciliar essa informação esdrúxula com a realidade seria estatuir que, por ocasião de sua questura (exercida por “Lêntulo” aos 25 anos de idade, nalguma data entre 26 e 28 dC), ele tivesse sido não um questor em Roma, mas o questor do procônsul da Ásia.  Nesse caso, teria residido, de fato, um ano na província, auxiliando o procônsul (um senador de nível consular) em questões financeiras.  Mas não apenas em Esmirna, especificamente – em toda a província, e apenas em questões financeiras (eventualmente, judiciais)[59].  De qualquer modo, nunca estaria encarregado de funções “administrativas” (i.e., “executivas”), que se deixavam aos governos municipais, a seus magistrados e assembléias; e, também (mais uma vez repetindo), não exerceria suas funções apenas num único lugar, mas em toda a província, onde quer que fosse necessária a sua presença, onde quer que o procônsul o mandasse ir. 

Ora, se “Lêntulo” havia sido questor na Ásia, por que ele simplesmente não disse isso, de forma clara e direta, na psicografia? Será porque “ele” (e aqui “ele” pode ser “Lêntulo”, pode ser “Emmanuel”, pode ser “Xavier” – a escolha é livre) simplesmente não conhecia o cursus honorum senatorium e nem os detalhes da verdadeira administração romana provincial da época dos Júlio-Cláudios, assimilando-a a algumas generalidades retiradas de obras históricas básicas, e também à estrutura administrativa brasileira contemporânea[60]? 

Algumas vezes, após a questura, e dependendo da falta de pessoal qualificado, um senador poderia servir como legado propretoriano numa província senatorial.  Era excepcional, embora não impossível[61].  Assim, poder-se-ia também estatuir que “nosso” Lêntulo, logo após ter sido questor em Roma, aos 25 anos de idade, entre 26 e 28 dC, conseguiu uma “boquinha” como um dos legati proconsulares pro praetore na Ásia, servindo também sob as ordens do procônsul e auxiliando-o em matérias de caráter legislativo e judicial – e apesar de ser apenas um quaestorius, e não um praetorius. 

Isso, evidentemente, é algo para se provar, não para se supor.  Mas, mesmo considerando tal caso, mesmo supondo a priori que “nosso” Lêntulo foi, lá pelos seus 26 anos de idade (entre os anos 27 e 29 dC, aproximadamente), legatus do procônsul da Ásia (não podendo, claro, ser o sufeta de 27 dC…), ainda assim uma permanência de um ano em Esmirna, cuidando de questões administrativas, é simplesmente impossível.  Em primeiro lugar porque as funções dum legatus proconsularis pro praetore não incluíam aspectos administrativos em si (“executivos”), mas sim funções legislativas e judiciais, auxiliando o procônsul nessas matérias.  E em segundo lugar porque, assim como o questor provincial, o legatus proconsularis pro praetore não fixava base numa única cidade (embora pudesse, como o procônsul, e dependendo das circunstâncias, passar um pouco mais de tempo na capital da província, no caso Pérgamo, ou mesmo na sua capital econômica, comercial e cultural, Éfeso, do que noutros lugares), mas percorria toda a província, dando audiências (e julgando e solucionando casos), do mesmo modo que o procônsul, nas várias sedes dos conventus iuridici.  Esmirna era, de fato, como citado mais acima, uma dessas sedes, mas não era a única: as sedes dos conventus iuridici da província da Ásia eram Mileto, Éfeso, Trales, Alabanda, Milasa, Esmirna, Pérgamo, Sardes e Adramítio[62]; ao longo de seu ano de mandato, o procônsul (e, na Ásia, seus dois legati e seu questor) percorriam essas cidades, não ficavam estacionados numa só.  De qualquer modo, tivesse sido ele um questor ou um legado proconsular, não teria exercido tais funções em sua “primeira mocidade” – antes teria sido um dos vigintiviri, e exercido o tribunado militar laticlavo numa legião… 

Notem os leitores: em termos da carreira de Lêntulo, o que a psicografia fala não é registrado pela História; ao passo que aquilo que a História registra não é mencionado na psicografia, e muito menos nela se encaixa… Por quê? 

Mas, vamos em frente.  Tendo exercido a questura, quer em Roma, quer nalguma província senatorial, entre os anos 26 e 28 dC, na casa de seus 25 anos, “nosso” Lêntulo prosseguiria no seu cursus.  Por não ser plebeu, não teria exercido nem a edilidade e nem o tribunado da plebe.  Passando-se por cima das atribuições de ab actis Senatus, de Praefectus Feriarum Latinarum ou de Sevir Equitum Romanorum, que ele poderia ou não ter exercido, ou mesmo (excepcionalmente) a de legado propretoriano numa província senatorial (discutida nos parágrafos anteriores), a próxima escala no cursus de Lêntulo seria a pretura, que ele poderia exercer aos 30 anos de idade, ou seja, entre 31 e 33 dC. 

Mas, justamente nessa época, ele decide partir para a Judéia, numa “legação” do Imperador, lá permanecendo por quinze anos… quinze anos… quinze anos! 

Justamente quando estava a ponto de exercer a pretura, abrindo diante de si os grandes postos da administração, justamente quando estava a ponto de se tornar um praetorius, Lêntulo, o senador, o aristocrata, orgulhoso e severo, joga tudo para o alto, e se enfurna, numa “legação” fantasmagórica, durante quinze anos, numa província imperial de segunda classe, governada por um cavaleiro (seu inferior, portanto, na hierarquia social), um praefectus (no caso, Pôncio Pilatos), arruinando o seu cursus. 

E não é só isso: como um nobilis, Lêntulo, o “nosso” Lêntulo, bisneto de Lêntulo Sura, poderia almejar o consulado aos 32 anos, ou seja, apenas dois anos após a pretura (ou seja, entre 33 e 35 dC).  A ida de Lêntulo à Judéia, em 31 dC, justamente quando estava em vias de poder exercer a pretura e, logo depois, aspirar ao consulado, simplesmente bloqueou, interrompeu, congelou o seu cursus.  Porque, não tendo sido pretor (cargo que teria que ter exercido, na melhor das hipóteses, ao longo daquele ano de 31 dC, mas que não o fez, como se pode constatar pela leitura da própria psicografia – portanto, nosso inefável Lêntulo foi à Judéia como um quaestorius, não como um praetorius), e nem cônsul, ainda que sufeta (cargo a que teria direito uns meros dois anos após a pretura, já que era um nobilis), não poderia aspirar a nenhum outro cargo da carreira senatorial.  E esse indivíduo, esse nobre e orgulhoso senador, duma das mais antigas e ilustres casas da aristocracia patrícia, simplesmente suspendeu por quinze anos toda a sua ascensão administrativa, todas as suas possibilidades de poder e de influência, às quais tinha direito.  É nisso que querem que acreditemos – e sem nenhuma evidência! 

Torna-se irrisório tentar seguir a carreira de Lêntulo após a sua ida à Judéia, com sua permanência naquela província por quinze anos numa “legação” imperial.  Ele sequer foi como pretor (obviamente, ele não foi o cônsul sufeta de 27 dC – esperamos que, no atual nível das investigações levadas a efeito neste trabalho, isso já tenha ficado suficientemente claro…); e, pela leitura da psicografia, depreende-se que, mesmo após o seu retorno a Roma, no ano 46-47 dC, por volta dos 45 anos de idade, ele não retomou o seu cursus – não há menção a uma pretura ou a um consulado, nem a quaisquer dos cargos (fossem comandos legionários, fossem governos de províncias, quer senatoriais quer imperiais, fossem ainda cargos diversos na própria Roma – basta, quanto a isso, consultar as tabelas mostradas anteriormente…) que, como praetorius ou consularis, poderia ter exercido.  Nada.  Absolutamente nada.  A não ser a observação de que teria conspirado contra Nero (algo de resto inverificável)[63], e, na época da revolta judaica contra Roma, a informação (errônea) de que teria feito parte do conselho de Tito[64]. 

Ou seja, a carreira de “nosso” Lêntulo, tal como informada pela psicografia, desde o seu cargo em Esmirna na “primeira mocidade” até à sua presença no conselho de Tito, passando, claro, por sua fantasmagórica “legação” de quinze anos na Judéia, simplesmente não faz nenhum sentido diante do que se conhece, e do que é historicamente atestável, acerca da carreira senatorial na época de Augusto e dos Júlio-Cláudios (30 aC a 68 dC).  O que a psicografia menciona não tem nenhum sentido; e o que teria sentido (sendo historicamente determinado e atestado) simplesmente não é mencionado pela psicografia. 

De qualquer modo, poder-se-iam ainda aventar duas tentativas (desesperadas) de justificação para tal situação anômala, isoladamente ou em conjunto:

·        Lêntulo poderia ter seguido um cursus não usual, inclusive no que tange às idades para o exercício dos cargos, que poderiam ter sido desconsideradas no seu caso, tendo em vista sua nobreza e influência; e

·        Sua longa permanência na Judéia tratava-se, ao fim e ao cabo, de caso excepcional, tendo em vista que o senador tinha como principal objetivo obter a cura da doença da filha, Flávia Lentúlia (que sofria de lepra), sacrificando a isso um cursus normal. 

Analisaremos, nos próximos itens, essas dessas (pretensas) justificativas, antes de pasarmos, enfim, à análise circunstanciada daquela fantasmagoria (e absolutamente impossível) “legação” de Lêntulo na Judéia. 

Farrapos de Justificação I – Um Cursus Não Usual: 

No que diz respeito a um cursus não usual, inclusive no que se refere às idades para o exercício dos diversos cargos, já foram tecidas algumas considerações sobre isso, neste mesmo trabalho.  Resta, assim, enfatizar o que já se comentou: situações anômalas de fato ocorreram em épocas agitadas, principalmente por ocasião do final das guerras civis e do começo do principado de Augusto, mas, uma vez restaurada a paz e consolidado o novo regime (a partir de c. 20 aC), não se poderia apelar para tal argumento.  Ainda mais sob o governo de Tibério (14-37 dC), um imperador de índole conservadora, e cioso das tradições, a ponto de impedir, tendo em vista as limitações tradicionais impostas pelo cargo, que um flamen Dialis pudesse exercer o proconsulado da Ásia[65], é absolutamente inconcebível supor um cursus que, como o de “nosso” Lêntulo, estivesse completamente fora do padrão. 

Dando a palavra a Edmondson e a Syme: 

There is of course abundant evidence to show arbitrary use of the power of appointment by the Triumvirs, including gross affronts to Republican custom in certain years.  At the end of 43 they appointed two suffect consuls, one of them a praetor in office, who was replaced by one of the aediles; and five days before the end of the year they sent the praetors off to provinces, and appointed replacements [Dio 47, 15, 2-3].  In 42 Dio speaks of them as appointing the city magistrates for several years in advance [Dio 47, 19, 4].  In 40 suffect consuls and praetors were again appointed right at the end of the year, and an aedile to replace one who died on the last day of December [Dio 48, 32, 1 and 3].  In 39 Triumvirs are recorded as making appointments to magistracies several years ahead and to the consulate for eight years, subsequently making additions and subtractions to the list.  Dio carefully emphasizes that it was at this point that the arbitrary appointment of suffect consuls became regular, and underlines the continuity with established imperial practice [Dio 48, 35, 1-3; under 31 bC Dio duly notes that the arrangement of eight years before had been that Octavian and Antonius should be consuls, 50, 10, 1].  Similarly, when agreement was temporarily reached with Sextus Pompeius in the same year, its terms included praetorships, tribunates, and priesthoods for his followers, and a consulate and the position of haruspex (diviner) for himself (he was deposed from both in 37) [Dio 48, 36, 4; 54, 6].  The following year saw the culmination of the period of disturbance of the republican magistracies [I am indebted to Professor Badian for emphasizing to me the importance of indicating the extent to which Triumviral irregularities increased or decreased in the course of time].  Sixty-seven praetors were appointed in the course of the years, and a boy was made quaestor [Dio 48, 43, 2].  Under the next year Dio notes continual multiplication of office-holders, and gives the reason, namely that the offices were valued not for themselves but as the necessary preliminary to provincial commands [Dio f48, 53, 1-3]. 

 

 

 

 

 

 

 

 

In the following years such irregularities were greatly reduced [one may note a couple of suffect praetors in 33, Dio 49, 43, 7], though suffect consulates continued (Octavian abandoning his consulate in 33 on the first day) [Appian, Illyrica, 28/80; Dio 49, 43, 6].  The suffect consulate in 30 for which, as Plutarch says, Octavian “chose” Cicero’s son as his colleague [Plutarch, Cic., 49] ended the systematic use of suffect consulates for several decades.  The abandonment of this practice was surely intended as a sign of approaching normality.  (Jonathan Edmondson, “Augustus – His Contributions to the Development of the Roman State”, Edinburgh University Press, 2009, pp. 63-64)

De fato, há muitas evidências para o uso arbitrário do poder de nomeação por parte do [Segundo] Triunvirato [de Antônio, Otaviano e Lépido], incluindo um desrespeito grosseiro às práticas republicanas [usuais] em determinados anos.  No final [do ano] de 43 aC os triúnviros nomearam dois cônsules sufetas, sendo um deles um pretor em exercício, que depois foi substituído por um dos edis; e, cinco dias antes do final do ano, os pretores foram despachados para as províncias, sendo substituídos [em Roma] por outros [cf. Cássio Dião, “História Romana”, livro 47, cap. 15, pars. 2º-3º].  Em 42 aC Cássio Dião menciona o fato de os triúnviros terem nomeado [todos] os magistrados da cidade com vários anos de antecedência [Cássio Dião, op. cit., 47, 19, 4].  Em 40 aC cônsules sufetas e pretores foram, mais uma vez, nomeados para o ano inteiro, e um edil acabou substituindo um dos nomeados, que morreu no último dia de dezembro [Cássio Dião, op. cit., 48, 32, 1 e 3].  Em 39 aC os triúnviros efetuaram [novamente] nomeações para as [diversas] magistraturas com anos de antecedência,    e para o consulado por oito anos, efetuando inclusive [posteriormente] adições e subtrações a tal lista.  Cássio Dião chama a atenção para o fato de que foi nesta ocasião que a nomeação arbitrária de cônsules sufetas tornou-se regular, sublinhando também a continuidade de tal atuação no período imperial [Cássio Dião, op. cit., 48, 35, 1º a 3º; sob o ano 31 aC o historiador cuidadosamente registra que o arranjo de oito anos antes havia sido o de que Otaviano e Antônio deveriam ser cônsules, cf. op. cit., 50, 10, 1].  Da mesma forma, quando se chegou, temporariamente, a um acordo com Sexto Pompeu, no mesmo ano, os termos de tal arranjo incluíam preturas, tribunados e sacerdócios para seus seguidores, bem como um consulado e a posição de arúspice (adivinho) para o próprio Sexto (ele foi deposto de ambos em 37 aC) [Cássio Dião, op. cit., 48, 36, 4; 54, 6].  No ano seguinte, assistiu-se ao clímax de tais perturbações nas nomeações para as magistraturas republicanas [E estou em dívida com o Professor Badian por ele me ter enfatizado a importância de indicar a extensão em que as irregularidades perpetradas pelos triúnviros aumentaram ou diminuíram ao longo do tempo].  Sessenta e sete pretores foram nomeados no decorrer desses anos, e um garoto chegou a ser feito questor [cf. Cássio Dião, op. cit., 48, 43, 2].  Ainda sob o próximo ano Dião observa a contínua multiplicação dos cargos, e inclusive explica tal fenômeno asseverando que tais funções eram valorizadas não por si mesmas, mas como pré-condição para a obtenção de governos provinciais [Cássio Dião, op. cit., 48, 53, 1º a 3º]. 

Nos anos seguintes, tais irregularidades foram bastante reduzidas [pode-se notar um par de pretores sufetas em 33 aC, cf. Cássio Dião, op. cit., 49, 43, 7], embora a ocorrência de consulados sufetas continuasse (Otaviano abandonou o seu consulado de 33 aC no primeiro dia) [cf. Apiano, “As Guerras Civis”, “Ilírica”, 28/80; Cássio Dião, op. cit., 49, 43, 6].  O consulado sufeta de 30 aC, para o qual, conforme testemunho de Plutarco, Otaviano “escolheu” o filho de Cícero como seu colega [cf. Plutarco, “Vidas Paralelas”, “Vida de Cícero”, par. 49], pôs um fim ao uso sistemático de consulados sufetas por décadas.  O abandono de tal prática foi certamente concebido como um sinal de que tempos normais estavam para se iniciar. (Jonathan Edmondson, “Augustus – His Contribution to the Development of the Roman State”, Edinburgh University Press, 2009, págs. 63-64)

 

During the evil years the Senate had swallen to a total of over a Thousand, admitting common soldiers, sons of freedmen, even foreigners.  In 28 Caesar and Agrippa carried out a purge of the high assembly.  They induced near two hundreds of undesirables to depart – persons falling short of the fortune requisite to maintain their station or deficient in loyalty and protection.  (…) Triumviral Rome had seen partisans grasping the fasces far below the age of forty-two – and some scandalous, such as Agrippa, close coeval to Caesar’s heir.  Peace and order imported mitigation: the Republican norm, but for novi homines.  The nobiles benefited from one of the gains of the Revolution.  They get an advantage of tem years.  As a necessary consequence, entry to the Senate by the quaestorship obtains at twenty five instead of thirty.  Missing direct record in the pages of History, these provisions may be assigned to the year of the census [They emerge from privileges granted to Marcellus in 24, cf. Dio 53, 23, 3f, and to the stepsons of the Princeps a little later]  (Robert Syme, “The Augustan Aristocracy”, p. 3)

 

Durante aqueles terríveis anos [das guerras civis] o Senado havia inchado para mais de mil membros, tendo sido admitidos [como senadores] soldados comuns, filhos de libertos e até mesmo estrangeiros.  Em 28 aC César Augusto e Agripa realizaram um expurgo na suprema assembléia, induzindo perto de duas centenas de indesejáveis a abandonar o Senado – pessoas com fortunas aquém do mínimo considerado necessário, ou deficientes quer em lealdade, quer em patronos […] A Roma da época dos triúnviros tinha testemunhado partidários [de um ou outro triúnviro] ascenderem aos fasces [i.e., exercerem o consulado] muito antes dos 42 anos – inclusive alguns casos escandalosos, como o de Agripa, coetâneo de Otaviano.  A nova época de paz e de ordem [que se seguiu ao fim das guerras civis] impunha a moderação [de tais excessos]: voltou-se à norma republicana [de 42 anos], mas para os novi homines; os nobiles se beneficiaram da prática revolucionária, recebendo então uma vantagem de 10 anos.  Como conseqüência necessária, a entrada no Senado, pela questura, passou a se dar aos 25 anos, ao invés dos 30.  Falta o registro preciso de quando tais modificações foram sistematizadas, mas tal pode ter ocorrido por ocasião do censo organizado por Augusto [essa nova situação emerge a partir dos privilégios concedidos a Marcelo em 24 aC, cf. Cássio Dião, “História Romana”, 53, 23, 3s, e aos enteados do Imperador, logo depois].  (Robert Syme, “The Augustan Aristocracy”, pág. 3)

 

Ou seja: volta à normalidade após o final das guerras civis, sendo que algumas “novidades” estatuídas naqueles anos de agitação entre 44 e 30 aC foram incorporadas ao cursus – o consulado aos 32 anos de idade para os nobiles, a pretura aos 25 anos.  Tal normalidade, sensível a partir de c. 20 aC no principado de Augusto, consolidou-se ainda mais no do arquiconservador Tibério (14-37 dC). 

Sem possibilidades, portanto, dum cursus esdrúxulo para quem quer que fosse, inclusive para o “nosso” Lêntulo.  Os desvios eram considerados escândalos, algo que lembrava os tempos anárquicos das contendas civis, e algo que, decididamente, deveria ser evitado.  

É óbvio que havia variações no exercício efetivo dum cursus; no entanto, tais variações (função do grau de influência, e mesmo da ambição, de cada indivíduo que se lançava às honras públicas) enquadravam-se num padrão, obedeciam a uma certa lógica.  Apenas a título de exercício, podemos especular, nos dois quadrinhos a seguir, acerca dos limites (de ação e de inação) aos quais estariam sujeitos um hipotético “Lêntulo ambicioso e bem relacionado” (aqui denominado Lentulus Capax) e outro hipotético “Lêntulo acomodado”, mais tranqüilo (que chmamos de Lentulus Quietus), tendo ambos nascido entre 1 e 3 dC.  Vale a pena comparar essas personagens (ainda que fictícias). 

 

Lentulus Capax 

A fim de manter-se digno das tradições de sua família, Lentulus Capax almejou sempre as maiores honras.  Imediatamente antes de completar 18 anos (entre 18 e 20 dC) lutou por, e obteve, um lugar entre os Pontífices; no ano seguinte, aos 18 anos (entre 19 e 21 dC), pela fama de seu nome e pelo patrocínio de outros Lêntulos (especialmente Lêntulo o Áugure e Cosso Cornélio Lêntulo), exerceu, no vigintivirado, o cargo de triumvir monetalis.  Logo após, serviu com distinção, por três anos (entre 20-22 dC e 22-24 dC), como tribuno laticlavo, numa legião na fronteira do Reno, também por patrocínio desses Lêntulos; lá, tornou-se conhecido por sua coragem e pelo estabelecimento duma enorme rede de contatos, e de clientela. 

Retornando a Roma (entre 23 e 25 dC), com 22 anos incompletos, seus modos refinados, sua cultura, sua nobreza e sua extensa rede de contatos viabilizaram sua nomeação, no ano em que completou 25 anos de idade (entre 26 e 28 dC), como quaestor Augusti, um dos questores diretamente ligados à pessoa do Imperador, entrando assim, em “grande estilo”, no Senado.  Aumentou sua rede de contatos e de clientela, ganhando também, por suas habilidades, a estima tanto do Imperador quanto de muitos senadores (sem desdenhar alguns dentre os mais poderosos cavaleiros e, mesmo, libertos imperiais).  Considerou-se então Lentulus Capax apto a se casar, tendo escolhido cuidadosamente uma moça bem mais nova, de família tanto ilustre quanto rica, Lívia. 

Após ter terminado sua questura, e apesar de ser apenas um quaestorius, conseguiu obter um cargo de legatus proconsularis pro praetore do procônsul da Ásia para o ano seguinte (alguma data entre 27 e 29 dC), servindo com distinção.  Retornou a Roma no ano em que completou 27 anos de idade (entre 28 e 30 dC), dedicando o período seguinte (entre 28-30 dC e 30-32 dC) à sua nova vida de casado (nasceu-lhe então um casal de filhos), à administração de suas propriedades e aos assuntos legislativos e judiciários do Senado, sem descuidar, claro, de suas relações com o palácio imperial e com as pessoas influentes. 

No ano em que completou seus 30 anos de idade, exerceu, enfim, a pretura (nalguma data entre 31 e 33 dC), tornando-se um praetorius.  Logo após, obteve o posto de legatus legionis (comandante de legião) numa das legiões do Danúbio, onde serviu brilhantemente por três anos (32-34 dC a 34-36 dC); retornando a Roma, foi nomeado cônsul sufeta (nalguma data entre 35 a 37 dC), no ano em que completou 34 anos de idade (o atraso no exercício do consulado ocorreu pelo fato de Lentulus Capax ter preferido permanecer no comando de sua legião danubiana por três anos, algo que lhe pareceu mais aconselhável, mesmo que atrasasse um pouco o seu consulado; a escolha revelou-se, ao fim, correta, pois sua experiência militar abrir-lhe-ia o caminho, logo depois, para governos importantes). 

Agora um consularis, preferiu permanecer em Roma por dois anos, a fim de fortalecer seus contatos, tendo em vista as recentes mudanças dos ventos políticos; para tal, conseguiu sua nomeação como curator aedium sacrarum et operum locorumque publicorum (36-38 dC a 37-39 dC).  Logo depois, obteve o governo da Panônia, como legatus Augusti pro praetore, lá permanecendo três anos (39-41 dC a 41-43 dC). 

Aos 40-41 anos de idade, retornou a Roma, onde o novo Imperador, Cláudio, tendo em vista sua brilhante folha de serviços, e sua lealdade a toda a prova à ordem estabelecida (além de sua nobreza e fortuna), o nomeou para um segundo consulado, dessa vez ordinário (nalgum ano entre 42-44 dC); seguiu-se um período de 5 anos como governador da Tarragonense (legatus Augusti pro praetore, de 43-45 dC a 47-49 dC).  Ao retornar a Roma, obteve o proconsulado da Ásia (48-50 dC); depois de seu turno como procônsul, sendo da inteira confiança do Imperador, foi nomeado, enfim, aos 48 anos de idade (entre 49 e 51 dC), Prefeito Urbano. 

Se sua vida pública foi brilhante, sua vida privada foi, no geral, ordinária, a não ser por uma aparentemente incurável doença de pele de sua filha, Cornélia (NÃO FLÁVIA LENTÚLIA, ISSO NÃO EXISTE[66]).  Graças à persistência da esposa, ela acabou curada, após ter freqüentado várias das estações termais e minero-medicinais da Itália, bem como ter estado aos cuidados dos melhores médicos do Império, tanto os que já clinicavam em Roma quanto os melhores especialistas de Alexandria, que o amoroso pai (embora não pudesse estar sempre presente, tendo em vista suas obrigações oficiais) fez levar à capital, várias vezes, não poupando despesas (se, por acaso, não tivesse conseguido uma cura, de qualquer modo ofereceria a filha como Virgem Vestal). 

 

Lentulus Quietus 

Uma pessoa de caráter tranqüilo, mais voltado para a família e para a administração de seus bens, Lentulus Quietus sempre preferiu não chamar muito a atenção para si mesmo.  Imediatamente antes de completar 18 anos (entre 18 e 20 dC), instado por amigos, conseguiu um lugar como sálio colino, a cujas cerimônias dedicou depois, aliás, cuidadoso estudo.  No ano em que completou 18 anos (entre 19 e 21 dC) iniciou sua carreira, exercendo, no vigintivirado, o cargo de triumvir capitalis.  Logo após, serviu durante um ano (entre 20 e 22 dC) como tribuno laticlavo numa legião na Hispânia.  Lentulus Quietus não se sentia muito atraído pela carreira das armas; desse modo, serviu pelo mínimo tempo necessário, tendo obtido, por influência de outros Lêntulos (especialmente Lêntulo o Áugure e Cosso Cornélio Lêntulo) um posto de tribuno onde menos provavelmente haveria ação.  Serviu corretamente, mas sem nenhuma distinção em especial. 

Retornou a Roma no ano em que completou 20 anos (entre 21 e 23 dC); dedicou o período seguinte à administração de suas propriedades e à procura duma esposa; acabou casando-se com uma jovem de aproximadamente a sua idade, duma família de mais nobreza que fortuna, Lívia, com quem, não obstante, teve uma feliz vida doméstica.  No ano em que completou 25 anos de idade (entre 26 e 28 dC), serviu como questor, entrando assim no Senado.  A partir de então, passou a freqüentar assiduamente as reuniões da assembléia, e chegou a servir, mesmo, como ab actis Senatus por mais de um ano seguido, e mesmo em várias outras ocasiões.  Dedicou-se também aos prazeres da vida familiar; e, nesse período, antes de completar 30 anos, nasceu-lhe um casal de filhos.  Não manifestou nenhum sinal de ambição, a não ser o de exercer a pretura, tendo em vista a nobreza e as tradições políticas de sua família. 

No ano em que completou seus 30 anos de idade, exerceu, enfim, a pretura (nalguma data entre 31 e 33 dC), tornando-se assim um praetorius.  Não querendo se afastar de Roma, aceitou, um tanto a contragosto, mais por instigação de amigos, e apenas por um ano (entre 32 e 34 dC), o cargo de praefectus frumenti dandi.  Desempenhou o cargo, como era usual em seu caráter, com escrúpulo e correção, cumprindo estritamente suas obrigações.  Fez até bonita figura, tanto que lhe quiseram dar outras incumbências.  Lentulus Quietus, porém, estava mais interessado em resolver alguns problemas familiares e pessoais; e, de qualquer modo, sua única real ambição era obter, agora que se tornara um praetorius, um proconsulado.  Demoradas negociações levaram Quietus à aceitação dum triênio como praefectus aerarii militaris, com a certeza de que, após, seria procônsul de Creta-e-Cirene. 

Exerceu, mais uma vez com correção, seu mandato como praefectus aerarii militaris (de 33-35 a 35-37 dC), seguindo-se, depois, conforme combinado, um ano como procônsul de Creta-e-Cirene (nalguma data entre 36 e 38 dC).  Ao retornar a Roma, entre 37 e 39 dC, sob Calígula, com 36 anos incompletos, e orgulhoso de seu “status” proconsular, considerou terminado o seu cursus[67]. 

Toda a sua vida, a partir daí, foi dedicada ao comparecimento às reuniões do Senado, aos estudos jurídicos, à administração de suas propriedades italianas e à sua família.  Sua filha, Cornélia (NÃO FLÁVIA LENTÚLIA, ISSO NÃO EXISTE), sofria de alguma séria doença de pele.  Tanto ele quanto a esposa peregrinaram por várias das estações termais e minero-medicinais da Itália; os melhores médicos de Roma, de Alexandria e mesmo de Éfeso foram chamados, não tendo Lentulus Quietus poupado despesas.  Ao fim, segundo consta, chegaram a solicitar os serviços dum exorcista judeu, chamado Barzaqueu.  Não se sabe se por causa de seu exorcismo, ou como conseqüência dos outros tratamentos (que nunca foram interrompidos), a moça curou-se.  O fato é que a família (comentava-se nas altas rodas sociais romanas), desde então, revelara-se singularmente ligada ao culto judaico, ou, ao menos, a uma certa seita obscura desse culto estranho. 

 

Um “Públio Cornélio Lêntulo”, bisneto de Lêntulo Sura, membro duma das mais antigas e nobres casas do patriciado, contemporâneo de Cristo, se tivesse mesmo, de fato, existido (cremos ter demonstrado, neste trabalho como noutros, a extremíssima improbabilidade da existência de tal pessoa), teria um cursus situado nalgum ponto entre o de Lentulus Capax e o de Lentulus Quietus.  Pelo que a psicografia deixa entrever acerca de sua personalidade, provavelmente mais próximo do de Quietus que do de Capax.  Mas, de qualquer modo, não teria um cursus absolutamente esdrúxulo, diferente de tudo o que é historicamente atestado para a época. 

Assim, não há nenhuma justificativa plausível, e historicamente embasada, para defender a estranhíssima (e nebulosa…) carreira de “nosso” Lêntulo, tal como mostrada na psicografia “Há Dois Mil Anos”.  Tal carreira foi construída a partir da ignorância (e não do conhecimento) das reais condições sociais prevalecentes no seio da aristocracia romana da época, partindo, ao contrário, da necessidade de, por qualquer pretexto que fosse, localizar “Lêntulo”, fisicamente, na Judéia, por ocasião da crucifixão de Cristo.  Tal necessidade (a fim de que ele pudesse elaborar seu “relatório”) foi disfarçada mediante uma fantasmagórica (e historicamente inexata e insustentável) “legação”; a localização de “Lêntulo” como testemunha ocular do ministério terreno de Cristo, bem como de Sua crucifixão, iniciou um “ciclo psicográfico-romanesco” (continuado com “Cinquenta Anos Depois” e, até certo modo, com “Paulo e Estêvão”) acerca dos “primeiros tempos do Cristianismo”.  Diga-se de passagem, com poucos conhecimentos acerca da real situação dos primitivos cristãos no mundo romano, ou da efetiva problemática das perseguições.  Quanto a esse assunto, se se quiser uma primeira apresentação introdutória, embasada, contudo, nas fontes históricas e, assim, mais próxima da realidade, pode ser consultado com proveito o Apêndice II deste trabalho, ressalvando-se que ele deve ser considerado meramente como ponto de partida para futuras inquirições pessoais e mais profundas.


[1] Cf. E. von Dobschütz, “Christusbilder”, in “Texte und Untersuchungen zur Geschichte der altchristlichen Literatur”, vol. 18, 1899, 2º Apêndice, págs. 308-330.  Vários outros manuscritos foram catalogados desde então, tanto em latim quanto em línguas vernáculas; veja-se, p.ex., Cora Elizabeth Lutz, “The Letter of Lentulus Describing Christ”, in The Yale University Gazette”, vol. 50, issue 2, 1975, págs. 91-97, e Sabrina Corbellini, “Retelling the Bible in Medieval ItalyThe Case of the Italian Gospel Harmonies”, in Retelling the Bible. Literary, Historical, and Social Contexts, L. Dolezalová & T. Visi (Eds.), Peter Lang, Frankfurt-sobre-o-Meno, 2011, págs. 213-228.  Mas não mudam o essencial: primeiros testemunhos da “carta” no séc. XIV, e do “autor” no séc. XV.

[2] Veja-se “Studies in Renaissance Thought and Letters”, vol. 3, Paul Oskar Kristeller, in “Storia e Letteratura – Raccolta di Studi e Testi, 178”, Edizione di Storia e Letteratura, 1993, 698 pags., Roma, 1993; especificamente acerca de Salvini, q.v. cap. 10, Sebastiano Salvini, a Florentine Humanist and Theologian, and a Member of Marsilio Ficino’s Platonic Academy, págs. 173-206: a “carta de Lêntulo” foi traduzida por Salvini a partir do latim, e por ele denominada “Epistola di Herode Re di Giudei a Senatori Romani” (“Carta de Herodes, Rei dos Judeus, ao Senado Romano”), iniciando-se com o usual “Apparve a nostril tempi et anchora e huomo di gran virtu…”

[3]A Irmandade Arval (Fratres Arvales) era um colégio sacerdotal constituído por doze membros vitalícios, todos senadores de prestígio (um dos quais sempre o Imperador), que presidiam ao culto de Dea Dia, a deusa protetora dos campos arados e das colheitas, muitas vezes assimilada a Ceres.  Os fragmentos dos fastos da Irmanade Arval, usualmente designados Fasti Arvalium, recuperados da gruta de Dea Dia, na altura do quinto marco miliário da Via Campana, além da Porta Portuense, inicialmente nos anos 1860, depois recentemente, nos anos 1980, lista não apenas os nomes dos cônsules (ordinários e sufetas), mas também os pretores urbanos e peregrinos, para muitos anos entre 2 aC e 37 dC.  Além desses fastos, a Irmandade Arval também legou inúmeras inscrições referentes especificamente a suas cerimônias, que são conhecidas como Acta Arvalium.

[4] Assim, p.ex., Ronald Syme, “The Roman Revolution”, Oxford University Press, 1989, pág. 298; assim também Robin Seager, “Tiberius”, Jonh Wiley & Sons, 2008, pág. 108: “The republican noble families are again represented [in the consulship] […] with perhaps another P. Lentulus in 27 […]”, ênfase aqui adicionada na condicionalidade.

[5] O cuidadoso e erudito levantamento de Jörg Rüpker et al, “Fasti Sacerdotum”, Franz Steiner Verlag, 2005, lista-o entre os sálios colinos para o período 81-85 dC (págs. 239-243), da mesma forma que lista seu pai, Décimo Júnio Silano Getúlico, no mesmo colégio sacerdotal, entre os anos 63 e 76 dC (págs. 220-234).

[6] Os Fasti Tauromenitani, “Fastos de Taormina” (nome atual da antiga cidade de Tauromênio, na Sicília) cobrem o período de 39 a 34 aC e de 29 a 28 aC.  Foram encontrados em 1984, nas escavações das antigas termas daquela cidade.  Estudos detalhados acerca das implicações da descoberta foram efetuados por John Bodel em dois artigos da Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, ZPE, entre 1993 e 1995 (“Chronology and Succession 1: Fasti Capitolini fr. XXXIID, the Sicilian Fasti and the Suffect Consuls of 36 bC”, ZPE 96, 1993, págs. 259-66, e “Chronology and Succession 2: Notes on Some Consular Lists on Stone”, ZPE 105, 1995, págs. 279-96).  A publicação formal dos achados (em língua alemã), inclusive com desenhos detalhados dos fragmentos encontrados, por sua vez, foi efetuada por Brigitte Ruck (“Die Fasten von Taormina”, ZPE 111, 1996, págs. 271-80).  Uma reavaliação da stemma dos últimos Cornélios Dolabelas, a partir dos achados de Taormina, foi publicada, também na ZPE, em 2000, por Patrick Tansey (“The Perils of Prosopography: the Case of the Cornelii Dolabellae”, ZPE 130, 2000, págs. 256-71).

[7] Essa é a grande questão, dada a relativa escassez de fontes que se referem aos Lêntulos no período da última fase da guerra civil, bem como na primeira fase do principado de Augusto.  O último Lêntulo cônsul na época republicana foi Lúcio Cornélio Lêntulo Crus (cônsul 49 aC), e segue-se um vazio até 18 aC, quando os Lêntulos reentraram nos Fastos “em grande estilo” – ambos os cônsules desse ano foram Lêntulos (Públio Cornélio Lêntulo Marcelino, filho de Públio, e Gneu Cornélio Lêntulo, filho de Lúcio), sendo esse ano comumente designado nas listas consulares como “o ano do consulado dos Lêntulos”.  Nesse intervalo de 30 anos, apenas um nome isolado, e do qual praticamente nada se sabe, Lúcio Cornélio Lêntulo, sufeta em 38 aC, pertenceu à família (o cônsul sufeta de 35 aC, que antes se pensava ser um Lêntulo Cipião, era, de fato, Públio Cornélio Dolabela, como já mencionado).  Tal situação torna extremamente importante os dados que se possam obter a partir da Epigrafia.

[8] Os Lêntulos Clodianos originaram-se duma adoção no seio dos Cláudios (Clódios) Pulcros (não se sabe se plenária ou se testamentária; de qualquer modo, mesmo que apenas testamentária, a adoção não alterou o “status” dessa stirps, já que, do mesmo modo que os Cornélios Lêntulos “de sangue”, os Clódios Pulcros eram patrícios); os Lêntulos Marcelinos originaram-se, por sua vez, duma adoção no seio dos Cláudios Marcelos (testamentária, já que se atesta, para vários de seus descendentes, o exercício do tribunado da plebe, cargo que era vedado aos patrícios – e os Cláudios Marcelos eram uma das mais ilustres casas da aristocracia plebéia).

[9] A gens patrícia dos Cláudios (originariamente, Cláudios Inregilenses Sabinos) dividiu-se em dois grandes ramos, ou stirpes: os Cláudios Neros e os Cláudios (ou Clódios) Pulcros.  O Imperador Tibério era um Cláudio Nero; não surpreenderia, assim, que, desde quando herdeiro de Augusto, e depois Imperador, favorecesse Lêntulo o Áugure, cônsul 14 aC, governador da Mésia c.10 a c. 6 aC, procônsul da Ásia 3-2 aC, e que morreu (de morte natural) em 25 dC, velho, rico e sem herdeiros, deixando a Tibério sua enorme fortuna.

[10] Com efeito, a morte de Lêntulo (e o fato de ter apenas uma filha) é confirmada incidentalmente por uma citação nas “Instituições” de Justiniano, a respeito dos codicilos (cf. Instituições, livro II, título 25, “Sobre os Codicilos”, De Codicilis).

[11] Cf. Plínio o Velho, “História Natural”, livro VII, cap. 62.  Ela é denominada Cornelia Scipionum gentis, “Cornélia da estirpe dos Cipiões”.  Como o pai, Lúcio Cornélio Lêntulo, não tinha nenhuma ligação direta com os Cipiões, presume-se que a mãe o tivesse – é bem possível que se tratasse de Cornélia Emília Lépida, a filha sobrevivente de Cornélia (de estirpe cipiônica, pois ligada aos Lêntulos Marcelinos) e de Paulo Emílio Lépido, nascida em 22 aC.

[12] Os Cláudios Marcelos eram membros da aristocracia plebéia – como os Cláudios Neros, e os próprios Cornélios Lêntulos, o eram da aristocracia patrícia.  A expressão “aristocracia plebéia” pode parecer anacrônica atualmente, mas, na antiga Roma, “patrícios” eram aqueles que (pretensamente) descendiam dos “antepassados troianos”, constituindo-se na nobreza originária da Cidade (p.ex., todos os Cornélios, os Fábios, os Júlios, mesmo os Cláudios Inregilenses Sabinos…); todos aqueles que não podiam exibir tal ascendência, não importando quão ricos ou influentes fossem, eram “plebeus”.  Com o desenvolvimento e a expansão do Estado romano, entre os séculos IV e III aC, surgiu, no seio dos plebeus, uma aristocracia, tão poderosa e influente quanto a dos patrícios (p.ex., os Calpúrnios Pisões, os Cláudios Marcelos, os Cecílios Metelos…).  As famílias patrícias, juntamente com as grandes casas da aristocracia plebéia, formavam a nobilitas, a classe dirigente romana da época republicana e, ainda, da época de Augusto.

[13] Cf. M.Castelli, “Dedica onoraria di età tiberiana a due membri della famiglia degli Scipioni”, MEFRA CIV (1992), 177 ff.

[14] Logo no início do 1º capítulo da psicografia, Públio Lêntulo é dito “homem ainda moço”; e, logo a seguir, apresentado como “homem relativamente jovem, aparentando menos de trinta anos, não obstante o seu perfil orgulhoso e austero” (isso numa cena passada no mês de maio do ano 31 dC).  A conclusão óbvia é a de que “Públio Lêntulo”, “aquele” Lêntulo, devia ter entre 28 anos completos e 30 anos incompletos em maio de 31 dC, devendo ter nascido, assim, em 1 dC (com 30 anos incompletos em maio de 31 dC), ou 2 dC (29 anos completos em 31 dC), ou 3 dC (28 anos completos em 31 dC).  O próprio sr. Nagipe Assunção, de modo geral, corrobora tal conclusão em seu texto.

[15] O cuidadoso estudo de Luca Maurizi lista 395 inscrições de carreiras apenas referentes a senadores entre os reinados de Augusto (30 aC – 14 dC) e de Trajano (98-117 dC), cf. Luca Maurizi, “Il Cursus Honorum Senatorio da Augusto a Traiano – Sviluppi Formali e Stilistici nell’Epigrafia Latina e Greca”, in “Commentationes Humanarum Litterarum”, vol. 130, 2013, Helsinki, Finland, “Societas Scientiarum Fennica” (The Finnish Society of Science and Letters), apêndices, págs. 211-324.

[16] A palavra “nobilis” (plural “nobiles”) não se referia a nenhum “status” oficialmente sancionado, mas designava todos os membros de famílias da aristocracia patrício-plebéia da época republicana (a nobilitas) que pudessem contar com indivíduos os quais, nesse período, tivessem alcançado o consulado (quer ordinário, quer sufeta).  Uma pessoa que fosse a primeira de sua família a alcançar o consulado era denominada, um tanto pejorativamente, “novus homo” (“homem novo”); mas, se seus descendentes também chegassem ao consulado, podia iniciar mais uma família da “nobilitas”.  De qualquer modo, entre os principados de Augusto e de Tibério, e a partir daí, o termo “nobilis” passou a ter um significado bem mais preciso: “nobiles” eram todos aqueles (patrícios ou plebeus) que tivessem como antepassados cônsules que houvessem exercido o ofício antes de, ou até, 14 dC.  Porque, no final daquele ano, já no início do principado de Tibério, a eleição dos magistrados havia passado das assembléias populares para o Senado, e esse último vestígio da “liberdade” e da soberania do Povo Romano, da autêntica “República”, por assim dizer, havia sido, enfim, apagado (cf. Syme, “The Augustan Aristocracy”, obra já aqui mencionada, pag. 51: “As employed by Tacitus and Pliny, the term nobilis is confined to a small category, the descendants of the Republican aristocracy (…) It remained to determine when the Republic be deemed to end. (…) Its demise was not declared until September 14, when the elections were transferred from the People to the Senate”).

[17] Syme, “The Augustan Aristocracy”, págs. 4-5.

[18] Cf. Cássio Dião, “História Romana”, livro 51, cap. 20; foi o caso, p.ex., de Valério Messala em 36 dC, cf. Cássio Dião, “História Romana”, livro 49, cap. 16.

[19] Porque somente uma “guerra justa” (bellum iustum) teria o favor dos deuses.  Sob esse ponto de vista, todas as guerras travadas pelos romanos eram “justas” – e os feciais lá estavam para garantir isso…

[20] Embora fossem cargos vitalícios, era costume entre os Sálios, tanto palatinos quanto colinos, que os membros desses colégios renunciassem a suas funções, quer quando atingiam uma alta magistratura (usualmente o consulado), quer quando passavam a fazer parte dum outro colégio sacerdotal.  Desse modo, os sálios funcionavam como uma espécie de “entrada” e de “treino” para as funções sacerdotais.

[21] Os Lupercos, ou Fraternidade do Lobo (Luperci), que organizavam o festival da Lupercália, a 15 de fevereiro, eram, na época imperial, indivíduos de nível equestre.  Quanto aos arúspices (haruspices, singular haruspex), adivinhos que perscrutavam a vontade dos deuses nas vísceras dos animais sacrificados, especialmente nos fígados, não formavam um collegium, mas atuavam individualmente, e eram, no geral, etruscos, como etrusca era, por tradição, a sua arte divinatória.

[22] A não ser o fato de possibilitarem o exercício de determinadas funções governativas, como se verá.

[23] Idade completada em serviço.

[24] Cidadãos comuns usavam uma toga de lã branca, sem ornamento algum; assim era na República, assim continuou a ser no princípio do Império.  Nas legiões, além dos seis tribunos (um laticlavo e cinco angusiclavos), também era considerado sênior, e incluído pelo comandante em seu “staff” imediato, o centurião mais experiente, denominado o primus pilus, “primeira lança”.

[25] Cf. Sherk, “The Roman Empire – Augustus to Hadrian”, pág. 263, s.v. “Legion”: “the legions in Egypt differed in their command personnel, for their commanders were equestrian prefects and there were no senatorial tribunes”.  Notem os leitores o grau de cuidado, e de escrúpulos, do governo imperial: como o governador da província do Egito era de nível eqüestre (i.e., não era um senador, mas um seu inferior na hierarquia social), não fazia sentido que, nas forças armadas do país, houvesse senadores (que, nesse caso, teriam de receber ordens dum cavaleiro, ou seja, de alguém socialmente “abaixo de seu nível”); assim, os comandantes das legiões do Egito não eram senadores, e nem havia lá tribunos laticlavos.  No entanto, querem que acreditemos que um senador “Lêntulo” foi enviado em “legação” a uma província (Judéia) governada por um praefectus eqüestre… Estranho mundo, esse, de Emmanuel, estranho mundo…

[26] Cf. Birley, “The Roman Government of Britain”, pág. 4.  Sobre Minício Natal, cf. Inscriptions Romaines de Catalogne, 4, 34, W. Eck e F.J. Navarro, “Das Ehrenmonument der Colonia Carthago für L. Minicius Natalis Quadronius Verus in seiner Heimatstadt Barcino”, ZPE 123, 1998, 237, e AE 1998, 804 (Barcelona).

[27] Essas quatro questuras italianas seriam abolidas sob Cláudio (reinou 41-54 dC), passando tais questores a exercer suas funções em Roma, como os urbani.  Suas anteriores funções italianas passaram a estar sob o encargo de procuradores imperiais, de nível eqüestre.

[28] Em 15 dC Tibério combinou duas províncias senatoriais, a Acaia (Grécia) e a Macedônia, juntamente com a província imperial da Mésia, sob um legado de nível consular.  Tal arranjo foi desfeito por Cláudio em 44 dC, e tanto a Acaia quanto a Macedônia voltaram à esfera do Senado (de nível pretoriano).  Aparentemente, o número de questores não diminuiu, sendo aumentado o número dos atuantes em Roma.

[29] Embora, quer ex-cônsules (casos da África e da Ásia), quer ex-pretores (demais casos), todos esses governadores senatoriais ostentassem o título de “procônsul”.

[30] Nem todas as especializações são conhecidas.  Além das quatro qualificações citadas, sabe-se também da existência, ao menos desde o principado de Nerva (96-98 dC), dum praetor fiscalis (com jurisdição sobre controvérsias envolvendo pessoas e o fisco), e, desde o império de Marco Aurélio (161-180 dC), dum praetor tutelarius, encarregado da nomeação de guardiões e tutores, bem como com jurisdição sobre os litígios envolvendo tais pessoas e os tutelados.  Sobre a pretura em geral, incluindo todos os aspectos aqui citados, q.v. “Encyclopedic Dictionary of Roman Law”, Adolf Berger, in Transactions of the American Philosophical Society, vol. 43, 2a parte, 1953, págs. 657-58.

[31] Não havia uma seqüência específica para o exercício de tais cargos pretorianos; o ex-pretor, agora praetorius, podia exercer apenas um, ou vários, e em qualquer ordem.  Como regra geral, os nobiles exerciam poucas funções pretorianas, porque apenas dois anos após sua pretura já podiam aspirar ao consulado (e, depois, às prestigiosas funções consulares); nos demais casos, um período de 11 a 12 anos separava o final da pretura (aos 30-31 anos) da idade mínima para se exercer o consulado (42 anos).

[32] Cargo existente desde 22 aC, inicialmente seus incumbentes eram denominados curatores frumenti dândi.  Desde 18 aC o seu título passou a ser de “prefeitos do suprimento do trigo” (praefecti frumenti dandi), e seu número, originalmente de 2, passou a 4.

[33] Havia um legatus desse tipo por província, exceto na África, onde havia 3, e na Ásia, onde havia 2.

[34] Sob Tibério, as 5 províncias imperiais de nível pretoriano onde não estacionavam legiões eram a Gália Lugdunense, a Aquitânia, a Bélgica, a Lusitânia e a Galácia.

[35] Cargo existente desde 6 dC.  O aerarium militare (criado nesse ano), além de aportes advindos da fortuna pessoal do Imperador (fiscus), era alimentado por um imposto especial, também instituído nessa ocasião, a taxa de 5% sobre as heranças e legados (vicesima hereditatium et legatorum).  Passaram a existir, assim, três “tesouros”: o Aerarium (tesouro público), o fiscus (tesouro pessoal do Imperador) e o aerarium militare (o caixa específico para os soldos e reformas do exército).

[36] Entre 15 e 44 dC a Macedônia e a Acaia (Grécia) foram unidas à Mésia (imperial), conforme citado.

[37] Não havia, sob Augusto ou Tibério, províncias imperiais com apenas uma legião estacionada.  Depois, quando esse passou a ser o caso, geralmente o governador da província (legatus Augusti pro praetore) acumulava o cargo de comandante da legião (legatus legionis).  Mas nem sempre – mesmo quando a Hispânia Tarragonense passou a ser uma província com apenas uma legião estacionada, o cargo de governador (de nível consular) permaneceu distinto do cargo do comandante da única legião (de nível pretoriano).  Em 39 dC Calígula retirou o controle da legião estacionada na província senatorial da África das mãos do procônsul, criando assim, de facto, uma nova província, a Numídia, cujo governador era o próprio comandante da única legião (no caso, a III Augusta).  Outros casos, até aos inícios do séc. III dC, de províncias com uma única legião estacionada, e cujos governadores acumulavam as funções de comandantes legionários, foram a Judéia (de 70 dC a c. 117 dC), a Arábia (a partir de Trajano), a Panônia Inferior (de Trajano a Caracala), a Dácia Superior (de Adriano a Marco Aurélio), a Récia e o Nórico sob Marco Aurélio, a Síria Fenícia sob Septímio Severo e a Britânia Inferior sob Caracala (cf. Birley, op. cit., pág. 6).

[38] Desde 28 aC.  Esses funcionários cuidavam do tesouro “público” (i.e., sob o controle do Senado), o Aerarium, ou Aerarium Saturni (assim chamado por se situar no Templo de Saturno).

[39] Cargo existente desde 20 aC.  Inicialmente, os 9 incumbentes respondiam coletivamente por todas as estradas, mas depois (sob Nero, no mais tardar) cada um passou a ser responsável por uma das principais estradas consulares italianas.  Os responsáveis pelas vias Emília, Ápia e Flamínia eram os mais importantes, e tais postos eram usualmente preenchidos por experientes ex-pretores (cf. Birley, op. cit., pág. 6; também Vanesa Ponte, “Régimen jurídico de las vías públicas en derecho romano”, Librería-Editorial Dykinson, 2007, págs. 224-30).

[40] Tendo em vista o pequeno lapso de tempo, para os nobiles, entre a pretura (30 anos) e o consulado (32 anos), não era incomum que, mesmo sendo um consularis, um nobilis exercesse o governo duma província imperial sem legiões, ou (depois) com apenas uma legião estacionada.

[41] Cargo criado em data incerta, mas na época de Augusto.

[42] Cargo criado em data desconhecida, mas, com certeza, operante em 15 dC, sob Tibério.  De fato, Suetônio afirma que sua criação data da época de Augusto (“Sobre as Vidas dos Césares”, “Vida do Divino Augusto”, par. 37), ao passo que Tácito (“Anais”, livro 1º, cap. 76) e Cássio Dião (“História Romana”, livro 57, cap. 14, pars. 7º-8º) a ligam a Tibério, após as catastróficas inundações do ano 15 dC.  Os incumbentes tinham que providenciar a limpeza dos esgotos e do Tibre, garantindo que não ocorreriam inundações no inverno, e nem falta d’água no verão (cf. Cássio Dião, op. cit., loc. cit.).

[43] Sob Tibério, havia três províncias com 2 a 3 legiões: a Mésia (2 legiões, IV Scythica e V Macedonica), a Dalmácia (2 legiões, VII Claudia e XI Claudia) e a Panônia (3 legiões, VIII Augusta, IX Hispana e XV Apollinaris).  A Hispânia Tarragonense também possuía 3 legiões nessa época, mas seu governador era considerado de alto nível, estando equiparada aos grandes comandos da Germânia e da Síria.

[44] Cargo criado desde 12 ou 11 aC.

[45] Eram os “grandes comandos”: Hispânia Tarragonense (3 legiões, IV Macedonica, VI Victrix e X Gemina), Germânia Superior (4 legiões, II Augusta, XIII Gemina, XIV Gemina, XVI Gallica), Germânia Inferior (4 legiões, I Germanica, V Alaudae, XX Valeria Victrix e XXI Rapax) e Síria-Capadócia (4 legiões, III Gallica, VI Ferrata, X Fretensis e XII Fulminata).

[46] Embora fossem províncias senatoriais (e, portanto, em teoria, tendo seus procônsules anualmente nomeados pelo Senado, mediante sorteio), na prática o Imperador possuía bastante influência na nomeação desses cargos, mediante seus “conselhos” (que ele, como senador que era, aliás, podia dar).

[47] A Ásia (litoral oeste da Ásia Menor, banhado pelo Egeu), com sua capital administrativa em Pérgamo (mas sua capital econômica, comercial e cultural em Éfeso) e a África (o que é hoje o norte e o centro da Tunísia, mais parte do nordeste da Argélia), com sua capital em Cartago, eram províncias ricas e prósperas, com ativa vida urbana e cultural; no caso específico da África, com sua grande produção de trigo (e depois de azeite), a aristocracia senatorial possuía lá extensas propriedades fundiárias.

[48] A não ser que fosse o próprio Imperador, ou o herdeiro presuntivo, o exercício de três consulados era considerado o summum fastigium, o máximo de honra a que poderia aspirar um senador de sucesso.

[49] Cf. Birley, op. cit., pág. 5.

[50] Cf. Birley, op. cit., pág. 4: “ […] it is clear that [within the vigintivirate] the monetales were the most prestigious and the capitales the least prestigious […]”.

[51] Cf. ILS 9.349.

[52] Cf. Tácito, “Anais”, livro , cap. 74, par. 2o; também ILS 940 = CIL V, 4.329

[53] Cf. “Há Dois Mil Anos”, 2ª parte, cap. 1º: “A volta a Roma não reclamou, desse modo, grande demora.  O mesmo emissário levou as instruções do senador para os seus amigos da Capital do Império e, daí a pouco, uma galera os esperava em Cesaréia, reconduzindo a família Lentulus, de regresso, depois da permanência de quinze anos na Palestina”.

[54] Uma pessoa que estivesse na casa de seus 36 anos não poderia ser considerada como um “homem ainda moço”, como faz notar a psicografia.  E quando a mesma psicografia o apresenta como “homem relativamente jovem, aparentando menos de trinta anos, não obstante o seu perfil orgulhoso e austero”, está justamente tentando fazer um contraste entre a sua idade (jovem – “por volta de 30 anos”) e a sua aparência (cujo orgulho e austeridade davam-lhe um ar mais “velho”, porque mais “sério”).  Perpassa na psicografia, aliás, o fato de que tanto “Lêntulo” quanto Jesus possuíam mais ou menos a mesma idade, tendo Jesus morrido (segundo consta na psicografia) na Páscoa de 33 dC.

[55] Conforme trecho do 2º capítulo da 1ª parte da psicografia: “Experimentava ele [Lêntulo] a impressão de que caminhava para emoções decisivas do desenrolar de sua existência.  Conhecera parte da Ásia, porque, na primeira mocidade, havia servido um ano na administração de Esmirna, de modo a integrar-se, da melhor maneira, no mecanismo dos trabalhos do Estado, mas não conhecia Jerusalém, onde o esperavam como legado do Imperador, para a solução de vários problemas administrativos de que fora incumbido junto ao governo da Palestina”.

[56] Conforme um trecho do 1º capítulo da 1ª parte da psicografia, em 31 dC Lêntulo era “[…] homem ainda moço, que, à maneira da época, exercia no Senado funções legislativas e judiciais, de acordo com os direitos que lhe competiam, como descendente de antiga família de senadores e cônsules da República”.

[57] Ou seja, stephanêphoros, cf. Sherk, R. K., “The Eponymous Officials of Greek Cities – IV”, in Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik 93, 1992, págs. 223–272; uma mulher, Coscônia Mirte, exerceu inclusive três vezes esse cargo, entre o final do reinado de Domiciano e o ano 118 dC

[58] Cf. Sherk, R. K., “Translated Documents of Greece and Rome, vol. 4, Rome and the Greek East to the Death of Augustus”, Cambridge University Press, Cambridge, 1984, págs. 96-97.

[59] A carga de trabalho poderia, excepcionalmente, exigir isso.  Mas não seria nada de muita responsabilidade, já que, para auxiliar o procônsul em assuntos de ordem legislativa e judicial havia um legatus proconsularis pro praetore (especificamente na Ásia, dois), de nível pretoriano.

[60] No Brasil havia o Presidente da República, com o seu Congresso (Senado e Câmara), os governadores dos Estados (todos com o mesmo “status” jurídico, diferenciando-se, na prática, apenas pela importância econômica relativa de suas unidades federativas), com suas assembléias estaduais, e os prefeitos dos vários municípios (idem), com suas câmaras de vereadores.  Analogamente, na “Roma Xavieriana”, havia o Imperador, o Senado, os governadores de províncias e os “administradores municipais” – a diferença era a ausência de eleições, mesmo formais, e a quase hereditariedade de vários postos.  O modo como a administração romana é mostrada em “Há Dois Mil Anos” não pode ser considerado, seriamente, como advindo de alguém que a tivesse, de fato, vivido, como seria o caso de “Públio Lêntulo”; lembra muito mais os conhecimentos básicos adquiridos por alguém com leituras extensas, mas não especializadas, que “tapava os buracos” com analogias à estrutura administrativa brasileira contemporânea, sua conhecida.  É nessa ambiência que se pode entender o “cargo administrativo” de Lêntulo em Esmirna, por um ano…

[61] Os procônsules, governadores das várias províncias senatoriais, eram promagistrados, e, assim, podiam (como na época republicana) nomear legados (legati) para os auxiliarem em assuntos legislativos e judiciais (principalmente judiciais).  Normalmente, tais legati eram de nível pretoriano, mas a ausência de pessoal qualificado desse nível, ou a urgência da situação, podia fazer com que senadores que tivessem apenas exercido a questura fossem nomeados.

[62] Veja-se a lista na referência já anteriormente citada, Sherk, R. K., “Translated Documents of Greece and Rome, vol. 4, Rome and the Greek East to the Death of Augustus”, Cambridge University Press, Cambridge, 1984, págs. 96-97.

[63] “O coração [de Lêntulo] estava resignado com as desilusões penosas e amargas do destino, mas no poder supremo do Império estava um tirano, que precisava cair, em benefício das construções do direito e da família; e por isso, junto com numerosos companheiros, entregou-se ao trabalho sutil da política interna, para a queda de Domício Nero, que prosseguia avassalando a cidade com os espetáculos odiosos de seu nefando reinado”.  (“Há Dois Mil Anos”, 2ª parte, cap. 7º, final); “Somente em 68 [dC] conseguira a política conciliatória de grande número de patrícios, entre os quais Públio Lentulus, o definitivo afastamento de Domício Nero e suas nefandas crueldades”.  (“Há Dois Mil Anos”, 2ª parte, cap. 8º, início).

[64] Conhece-se a composição do conselho de guerra de Tito, a partir das informações do historiador judeu Flávio José em sua obra “A Guerra Judaica”, e nele não consta nenhum Lêntulo.  Mais ainda: apesar de, na psicografia, Emmanuel informar que Lêntulo “[e]m companhia de três outros conselheiros civis, chegou sem maior dificuldade ao destino [Judéia], colocando-se esse reduzido conselho de íntimos do imperador à imediata disposição de Tito, que lhe aproveitou os pareceres, utilizando com grande êxito as suas opiniões, filhas de larga experiência da região e dos costumes”, e que “[s]eus [de Lêntulo] pareceres e conhecimentos foram, muitas vezes, utilizados com êxito, tornando-se íntimo conselheiro do filho do imperador” (cf. “Há Dois Mil Anos”, 2ª parte, cap. 8º), na detalhada narrativa da revolta de 66-72 dC constante em “A Guerra Judaica”, de Flávio José, o nome de Lêntulo não é citado em nenhuma ocasião, e muito menos como fazendo parte do conselho de Tito (cuja composição, conforme já mencionado, o historiador fornece).  Sobre tal tópico, pode-se consultar com proveito o estudo deste autor, intitulado “Lêntulo e o Conselho de Guerra de Tito”, no portal “Obras Psicografadas”, no endereço eletrônico http://obraspsicografadas.org/2011/lntulo-e-o-conselho-de-guerra-de-tito/.

[65] Um flamen Dialis não podia passar mais de uma noite por ano fora de Roma (cf. Tito Lívio, “A Partir da Fundação da Cidade”, livro 5º, cap. 52), até que Augusto, provavelmente por meio duma lex rogata, aumentou esse limite para duas noites (cf. Tácito, “Anais”, livro 3º, caps. 58 e 71).  Mais ainda, ele estava proibido de dormir fora de seu próprio leito por mais de três noites consecutivas (cf. Aulo Gélio, “Noites Áticas” livro 10º, cap. 15).  Desse modo, um flamen Dialis jamais podia assumir cargos fora de Roma.  Desde o suicídio de Lúcio Cornélio Mérula em 87 aC, na ocasião da guerra civil entre Mário e Sila, tal ofício sacerdotal havia permanecido vago até 15 aC (se se seguir Cássio Dião, “História Romana”, livro 54, cap. 36) ou 11 aC (se se seguir Tácito, “Anais”, livro 3º, cap. 58), quando Augusto instalou no cargo Sérvio Cornélio Lêntulo Maluginense, cônsul sufeta 10 dC (deve datar dessa época a lex rogata que aliviou algumas das restrições ligadas a seu exercício).  No ano 22 dC, Maluginense tentou obter o proconsulado da Ásia, mas, após deliberação do Senado, apoiada por Tibério, tal pretensão lhe foi negada, tendo em vista o fato de, como flamen Dialis, não poder se afastar de Roma mais do que duas noites por ano (cf. Tácito, “Anais”, livro 3º, caps. 58-59).  No ano seguinte (23 dC) Maluginense faleceu, e seu filho foi nomeado flamen Dialis; na ocasião (Tácito, “Anais”, livro 4º, cap. 16), certamente uma nova lex rogata foi emitida, permitindo que o flamen Dialis pudesse exercer governos provinciais.

[66] Acerca da antroponímia romana, bem como do seu total desconhecimento por parte do autor de “Há Dois Mil Anos”, quem quer que tenha sido, podem ser consultados dois trabalhos no portal “Obras Psicografadas”, “Os Nomes das Personagens no livro ‘Há Dois Mil Anos’, de Chico Xavier”, no endereço eletrônico http://obraspsicografadas.org/2010/os-nomes-das-personagens-no-livro-h-dois-mil-anos-de-chico-xavier/, e “Os Nomes das Personagens no livro ‘Há Dois Mil Anos’, de Chico Xavier – Parte II”, no endereço eletrônico http://obraspsicografadas.org/2010/os-nomes-das-personagens-do-livro-h-dois-mil-anos-parte-2/.  Muito especificamente, “Flávia Lentúlia” é uma aberração prosopográfica.

[67] A grande maioria dos senadores atingia, no máximo, o nível pretoriano, e almejava apenas, a partir daí, o governo duma província senatorial de nível pretoriano, a fim de obter o prestigioso título de procônsul.  Conforme notou Brian W. Jones, referindo-se à política do Imperador Domiciano (reinou 89-96 dC) de nomear tais procônsules não entre praetorii absenteístas e amadores (como o nosso afável, douto e sereno Lentulus Quietus), mas entre senadores com confirmada experiência e habilidade administrativa, “(…) many senators of praetorian rank had become accustomed to expect one of these postings [of praetorian proconsulships], and, after this, their sole period of provincial service, to be able to return to Italy to spend the rest of their active lives in attending meetings of the Senate and in performing the other duties of their class.  Their importance lay in the fact that they seem to have constituted a majority in the Senate.  At all times, they must have considered themselves entitled to gain the status of proconsul, and would have bitterly resented any attempt by Domitian to deprive them of the opportunity of doing so” (“Domitian and the Senatorial Order – a Prosopographical Study of Domitian’s Relationship with the Senate, AD 81-96”, Brian W. Jones, The American Philosophical Society, 1979, págs. 75-76).  Dessarte, o senador “médio”, mesmo “medíocre”, seguia mecanicamente o cursus, desdenhando o serviço militar (a não ser o obrigatório tribunado laticlavo, no início de suas carreiras), esforçando-se especialmente para obter a pretura e, a partir daí, o governo duma província senatorial de nível pretoriano, onde obteria o tão cobiçado (e socialmente prestigioso) título de “procônsul”.  Afinal, era preferível a esses indivíduos passar a vida em suas mansões de Roma, comparecendo eventualmente às reuniões do Senado (e assiduamente aos demais eventos sociais), bem como nas suas várias e luxuosas propriedades espalhadas pela Itália, no ócio de banhos, caçadas, jogos, representações teatrais, festas, e mesmo leituras, do que se esfalfando em governos provinciais e em comandos militares em regiões longínquas e incivilizadas…

33 respostas a “LÊNTULO, O SUFETA – RESPOSTA A NAGIPE ASSUNÇÃO (PARTE 2: Uma Noite nos Fasti – Caçando Públio Lêntulo)”

  1. Marciano Diz:

    Sugiro aos demais comentaristas que escolhamos uma das partes para comentar, para que o assunto não fique disperso.
    Esclarecendo melhor, lemos tudo, mas só comentamos num tópico, para evitar que vire uma barafunda.
    Meu voto é por postar comentários só na primeira parte, ainda que sejam sobre assuntos abordados na segunda e/ou outras que possam vir.

  2. Arnaldo Paiva Diz:

    Bom dia
    .
    Para mim, fica mais uma vez demonstrado de que as questões aqui debatidas, não apresentam todas as informações que envolvem os casos, ou seja, os prós e os contras, como por exemplo, a questão de Publius Lentulos, que só foi apresentado os contras. Na análise que envolve as pesquisas de Williams Crookes, só foi analisado o contra, fundamentado numa suposição que a médium podia – eu disse podia – ter enganado o cientista Williams Crookes desta ou daquela maneira, sem levar em consideração o que tinha a favor da investigação realizada pelo mesmo. Um convite já está sendo feito para que seja analisado apenas uma parte do documento apresentado.

  3. Larissa Diz:

    Arnaldo, é só você fazer uma pesquisa com a mesma qualidade da apresentada na disponibilizada aqui no Blog.

  4. Larissa Diz:

    Aliás, vc já teve tempo de ler a postagem? Eu imprimi para analisar com cuidado as fontes e material antes de emitir opinião.

  5. José Carlos Ferreira Fernandes Diz:

    Sr. Paiva,

    Sinta-se à vontade para complementar as lacunas. Tenho certeza que o sr. Visoni publicará aqui suas pesquisas. Mãos à obra! Sds,

    JCFF

  6. Montalvão Diz:

    ARNALDO: Para mim, fica mais uma vez demonstrado de que as questões aqui debatidas, não apresentam todas as informações que envolvem os casos, ou seja, os prós e os contras, como por exemplo, a questão de Publius Lentulos, que só foi apresentado os contras. Na análise que envolve as pesquisas de Williams Crookes, só foi analisado o contra, fundamentado numa suposição que a médium podia – eu disse podia – ter enganado o cientista Williams Crookes desta ou daquela maneira, sem levar em consideração o que tinha a favor da investigação realizada pelo mesmo. Um convite já está sendo feito para que seja analisado apenas uma parte do documento apresentado.
    .
    COMENTÁRIO: Arnaldo, quando é que vais responder às múltiplas questões que lhe ficaram pendentes em outras postagens e outros tópicos? Ao vir criticar, com tão econômico pronunciamento, a pesquisa em tela fico em dúvida se estaria no seu melhor juízo.
    .
    Na questão “Publius Lentulos” não foram apresentados só os contras, conforme alega, foram mostradas as razões pelas quais essa imaginada figura não possui sustentação histórica. E, se quer saber, nem em termos religiosos há para ela embasamento, pois para admitir-se a possibilidade de que tenha existido necessário seria demonstrar que mortos falam com vivos, coisa que tá difícil pacas os mediunistas comprovarem, como bem o sabe.
    .
    De forma semelhante com Crookes: não fossem as fragilidades das experiências desse cientistas, cujas alegações não podem ser aceitas sem ferir um dos fundamentos da ciência, que é a fiscalização e replicação dos experimentos por parte de outros pesquisadores, some-se o fator tempo, que derribou em definitivo qualquer suposição de que Crookes houvera achado provas de que mortos aparecem aos vivos vestindo corpos, como se humanos fossem. Se tal fosse realidade, o desenvolvimento das pesquisas confirmaria o imaginado, coisa que não ocorreu.
    .
    Sugiro examine a pesquisa do José Carlos, com a atenção que o material requer e, depois, se tiver como, apresente contestatório condizente com a excelência desse estudo.
    .
    Boa sorte.

  7. Montalvão Diz:

    Marciano Diz: Sugiro aos demais comentaristas que escolhamos uma das partes para comentar, para que o assunto não fique disperso.
    Esclarecendo melhor, lemos tudo, mas só comentamos num tópico, para evitar que vire uma barafunda.
    Meu voto é por postar comentários só na primeira parte, ainda que sejam sobre assuntos abordados na segunda e/ou outras que possam vir.
    .
    COMENTÁRIO: a ideia é boa, mas tenho dúvidas se a primeira parte seria o melhor local. Deveríamos nos concentrar sempre na última postagem, considerando que, se bem entendi, outras partes ainda serão apresentadas.

  8. Marciano Diz:

    Como sempre, re mellius perpensa, você me convenceu.
    Já não está mais aqui quem disse aquilo.
    Quando tiver tempo, volto a discutir a bíblia com você, no outro tópico.
    Saudações intempestivas.

  9. Montalvão Diz:

    Quando vejo os trabalhos do José Carlos, o nível em que investiga os assuntos, indago-me por que ainda não vi livros por ele produzidos. Alguém com tamanha capacidade de pesquisa, e habilidade redativa qual a que ostenta, poderia trazer à luz obras que muito enriqueceriam o acervo nacional, ainda modesto na disponibilização de trabalhos de alta qualidade.
    .
    A capacidade perquiritiva de José Carlos ombreia com a de grandes nomes internacionais, qual a de um Will Durant.
    .
    Até mesmo o estudo sobre Públio Lêntulo, com pequenas adaptações, daria livro de primeira linha. Quem sabe algum editor visite o Obras e resolva levar a ideia adiante? Tomara que aconteça.
    .
    Parabéns ao José Carlos por mais este enriquecedor empreendimento.

  10. mrh Diz:

    muitos e a grande maioria são noções diferentes. A citação de autoridade feita autorizou somente a primeira. Muitos senadores d nível pretoriano queriam ser procônsules. Ok. Q a grande maioria dos senadores atingia apenas a função pretoriana é alegação do autor na nota 67 ñ coberta pela citação.

  11. mrh Diz:

    “Their importance lay in the fact that they seem to have constituted a majority in the Senate”.
    .
    Atente-se p/ o “seem”, o citado ñ autoriza a afirmação terminante, e também é interessante saber o recorte da validade dessa suposição. Em qual período da história romana?

  12. mrh Diz:

    Çei q isso é quase uma frescura, mas o trabalho do Jcff é tão preciso, q bem pode ganhar em (im)precisão, ao dizer “parece”.

  13. mrh Diz:

    Assim, Jcff organiza o perfil d 1 suposto senador PL created by CX, “provavelmente” e ñ certamente (interpreto o intérprete) medíocre (c tivesse çido notável, teria claro çido notado pela história), rico (c ñ fosse, o q o teria levado ao senado?), buscando passar d pretor a procônsul (o q certamente ñ conseguiria c dirigindo à Judéia) pois a alegação q ele era ou c tornou ou buscava ser procônsul na Judéia é falsa, pois essa posição ñ existia ali. A pedrinha mostrou q PPilatos era prefeito.

  14. mrh Diz:

    Enfim, as evidências mostram q é muito improvável q 1 senador tal como PL foi descrito tenha existido. Já informação q ele foi procônsul na Judéia é simplesmente falsa.
    .
    Todavia, conhecimento ñ é 1 adesão canina às evidências. É função e dever do estudioso (o q produz o estudo e o q o estuda) sustentar 1 posição, comprometer-se com ela, produzir saber novo, enfim. Com todos os riscos q isso implica.
    .
    Assim, considero legítimo assumir q a história contada por CX é falsa & intencionalmente construída. 1 passo a +, s/ dúvida, mas pequenino pela quantidade d evidências e tbém por conta d estudos outros sobre o autor.

  15. mrh Diz:

    “Um “Públio Cornélio Lêntulo”, bisneto de Lêntulo Sura, membro duma das mais antigas e nobres casas do patriciado, contemporâneo de Cristo, se tivesse mesmo, de fato, existido (cremos ter demonstrado, neste trabalho como noutros, a extremíssima improbabilidade da existência de tal pessoa), teria um cursus situado nalgum ponto entre o de Lentulus Capax e o de Lentulus Quietus. Pelo que a psicografia deixa entrever acerca de sua personalidade, provavelmente mais próximo do de Quietus que do de Capax. Mas, de qualquer modo, não teria um cursus absolutamente esdrúxulo, diferente de tudo o que é historicamente atestado para a época.
    Assim, não há nenhuma justificativa plausível, e historicamente embasada, para defender a estranhíssima (e nebulosa…) carreira de “nosso” Lêntulo, tal como mostrada na psicografia “Há Dois Mil Anos”. Tal carreira foi construída a partir da ignorância (e não do conhecimento) das reais condições sociais prevalecentes no seio da aristocracia romana da época, partindo, ao contrário, da necessidade de, por qualquer pretexto que fosse, localizar “Lêntulo”, fisicamente, na Judéia, por ocasião da crucifixão de Cristo. Tal necessidade (a fim de que ele pudesse elaborar seu “relatório”) foi disfarçada mediante uma fantasmagórica (e historicamente inexata e insustentável) “legação”; a localização de “Lêntulo” como testemunha ocular do ministério terreno de Cristo, bem como de Sua crucifixão, iniciou um “ciclo psicográfico-romanesco” (continuado com “Cinquenta Anos Depois” e, até certo modo, com “Paulo e Estêvão”) acerca dos “primeiros tempos do Cristianismo”. Diga-se de passagem, com poucos conhecimentos acerca da real situação dos primitivos cristãos no mundo romano, ou da efetiva problemática das perseguições”.
    .
    Muito bom, sem ressalvas d nenhuma espécie, estou racionalmente convencido.

  16. Toffo Diz:

    Irretocável o trabalho de JCFF. Chamo a atenção, também, para um problema que ele levantou – a apresentação da história de HDMA pelo viés da ignorância, não pelo do conhecimento, partindo da premissa de que a história seria real e seu autor putativo, EmmÂnuel, estaria a recordar os antigos tempos. Realmente, a se acreditar nessa história e face à argumentação de JCFF, uma de duas: ou EmmÂnuel estaria acometido de Alzheimer, por ter esquecido a própria trajetória, ou CX errou feio em suas pesquisas para escrever o livro manu propria.
    .
    Já escrevi isso algumas vezes, mas repito sempre: nunca é demais fazer uma comparação de HDMA com a obra-prima de Marguerite Yourcenar, “Memórias de Adriano”, uma obra de ficção maravilhosa que a autora levou quase 30 anos de estudos e pesquisas para escrever.

  17. Alê Wolf Diz:

    Olá,
    Sou jornalista, não tenho religião, não creio em Espiritismo.
    Há anos, acompanhava os trabalhos do Sr.José Carlos sobre a obra de Chico Xavier, até porque, no meu campo profissional, já escrevi sobre o assunto. Sempre pesquiso sobre, mantendo-me informada de prós e contras.
    Tendo lido os artigos de pesquisas históricas deste blog entre 2008/2010, depois disso nunca mais acompanhei nada.
    Mas para a minha surpresa parece-me que o assunto foi retomado este ano. E algo me incomodou ao ler publicações recentes, já que me lembrava de ter lido algo diverso aqui mesmo. Depois de procurar os documentos, finalmente achei o que buscava no texto deste link:

    http://obraspsicografadas.org/2008/livro-h-dois-mil-anos-uma-fraude-histrica-completa-2/#comment-42132

    Minha pergunta:
    – Esta escrito no texto acima, referindo-se aos cônsules da família Cornêlio Lentulo do Império Romano:
    18 aC: Públio Cornélio Lêntulo Marcelino, filho de Públio, e Gneu Cornélio Lêntulo, filho de Lúcio (no ano 18 aC, ambos os cônsules foram Lêntulos – o ano é comumente designado como “ano do consulado dos Lêntulos”)
    · 16 aC: Públio Cornélio (Lêntulo) Cipião, filho de Públio, neto de Públio
    · 14 aC: Gneu Cornélio Lêntulo, o Áugure, filho de Gneu
    · 3 aC: Lúcio Cornélio Lêntulo, filho de Lúcio (neto de Lúcio)
    · 1 aC: Cosso Cornélio Lêntulo, filho de Gneu (neto de Gneu), dito Getúlico
    · 2 dC: (sufeta): Públio Cornélio Lêntulo Cipião, filho de Gneu, neto de Gneu
    · 10 dC (sufeta): Sérvio Cornélio Lêntulo Maluginense, filho de Gneu, neto de Gneu
    · 24 dC: Sérvio Cornélio (Lêntulo) Cétego, filho de Sérvio, neto de Gneu
    · (sufeta) Públio Cornélio Lêntulo Cipião, filho de Públio, neto de Gneu
    · 25 dC: Cosso Cornélio Lêntulo Getúlico, filho de Cosso, neto de Gneu
    · 26 dC: Gneu Cornélio Lêntulo Getúlico, filho de Cosso, neto de Gneu
    · 27 dC: Lúcio Cornélio Lêntulo Cipião, filho de Públio, neto de Gneu
    · 51 dC: Sérvio Cornélio (Lêntulo Cétego Cipião) Salvidieno Orfito, filho de Sérvio, neto de Sérvio
    · 55 dC (sufeta): Gneu Cornélio Lêntulo Getúlico, filho de Gneu, neto de Cosso
    · 56 dC: Públio Cornélio (Lêntulo) Cipião, filho de Lúcio, neto de Públio
    · 60 dC: Cosso Cornélio Lêntulo Getúlico, filho de Cosso, neto de Cosso
    · 68 dC (sufeta): Públio Cornélio (Lêntulo) Cipião Asiático, filho de Públio, neto de Públio
    Quero apenas destacar o cônsul sufeta do ano 27: um certo Lúcio Cornélio. Porém, me parece que o certo é Públio Lentulus, segundo a fonte.
    Minha pergunta:
    O senhor José Carlos, em seu trabalho de pesquisas, certamente teve acesso a lista completa destes cônsules, preferiu modificar o nome deste personagem chamado Publio para Lúcio, a fim de evitar complicações para si mesmo ou simplesmente cometeu um erro crasso enquanto pesquisador?

  18. Alê Wolf Diz:

    Peço a gentileza de “Liberar” o mesmo comentário no próprio artigo de 2008.

  19. Alê Wolf Diz:

    Não consigo baixar o artigo a que me referi em PDF.
    Caso possa enviá-lo para o meu e-mail, agradeço.

  20. Vitor Diz:

    Caro Alê,
    .
    resposta de JCFF:
    .
    Sim, é verdade, o “Lúcio” é o “Públio”, mas não “modifiquei” o nome da personagem para “evitar complicações” para mim mesmo, e nem se tratou de “erro crasso”. De fato, foi um engano da fonte que consultei, a “stemma” dos Marcelinos tal como reconstituída por Settipani (aqui o JCFF insere um anexo – cópia da página correspondente do “Continuité Gentilice”). Settipani errou ao dar-lhe o prenome “Lúcio”, não sei qual a razão. Como a inscrição é fragmentária, talvez o “P Lent” também possa ser lido “L Lent”, sendo a abreviatura “P” do prenome apenas a leitura mais provável, embora não absolutamente certa. Não quis entrar nesses detalhes em minha pesquisa, porque não sei a razão desse lapso em Settipani. Sds,

  21. Vitor Diz:

    Quanto ao artigo em pdf, vai ter que esperar um pouco, porque meu cpu está no conserto…

  22. Alê Wolf Diz:

    Obrigado pela resposta.
    mas é estranho por não ser só um nome.
    Está assim:

    Lúcio Cornélio Lêntulo Cipião, filho de Públio, neto de Gneu

    Uma explicação completa de quem foi o pai e o avô.
    Se fosse apenas uma palavra, seria compreensível.
    Aguardo o documento, caso possa enviar.

    Boa noite!

  23. Vitor Diz:

    Caro Alê,

    tentei enviá-lo, mas seu email deu inválido.
    .
    Hi. This is the qmail-send program at yahoo.com.
    I’m afraid I wasn’t able to deliver your message to the following addresses.
    This is a permanent error; I’ve given up. Sorry it didn’t work out.

    :
    98.136.216.26 failed after I sent the message.
    Remote host said: 554 delivery error: dd This user doesn’t have a yahoo.com.br account (alessandrawol1000@yahoo.com.br) [0] – mta1062.mail.gq1.yahoo.com

  24. Alê Wolf Diz:

    Segue novamente o e-mail.
    alessandrawolf1000@yahoo.com.br

    Outra pergunta:
    o sr. utilizou um livro de 2004 de tradução recente da obra A vida de Jesus de Renan e comparou-a ao livro Há dois mil anos. Entretanto, já verificou a obra disponível na época da psicografia? Era outra tradução e que não tem tanto a ver com a psicografia!
    Por que não utilizou-a nas comparações, já que ela era a única disponível?

    Quanto a questão do Lúcio, entendido. Um erro básico.
    Mas daí pensei que deve haver mais erros como este ao longo destes anos, não? O ser humano falha.

    Beijokas,
    Alê

  25. Alê Wolf Diz:

    Estou aguardando o e-mail.
    Uma pergunta:
    Vocês sabem o que é insula na Roma Antiga?
    Estudei sobre o assunto essa semana, já que não a conhecia.

  26. Alê Wolf Diz:

    Chegou o e-mail.
    Digitei rápido do celular e ficou faltando uma letra.
    Sorry.
    Obrigada,

    Beijokas.

  27. Vitor Diz:

    Cara Alê,
    .
    Eu não tenho a edição mais antiga da obra de Renan, mas a princípio, Chico nem precisaria ter-se baseado na tradução de sua época, já que ele conhecia outras línguas e poderia ter feito sua própria tradução.
    .
    Que o ser humano falha, sim, é natural, mas um conjunto inteiro de historiadores… é bem mais difícil. Muita coisa teria que estar errada sobre o nosso conhecimento do povo e das regiões citados em “Há Dois Mil Anos” para “salvar” o livro. O que é, na prática, virtualmente impossível.

  28. Alê Wolf Diz:

    É, mas me parece falho, já que deveria ser utilizada a edição da época, que é menos parecida…. alguns trechos bem menos. Comparar o Há dois mil anos de 1939 com uma edição de Renan de 2004 é estranho.

    Sabe o que é insula?

  29. Vitor Diz:

    Alê,
    repito que eu nem precisaria ter posto qq tradução para afirmar que o trecho foi extraído de Renan. O próprio Chico “confessa” ter lido Renan, embora colocando tais palavras na boca de um “espírito”.
    .
    Sobre insula, eu não sei, mas você pode consultar aqui:
    .
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Insula
    .
    Só que o texto acima não cita qualquer fonte confiável.

  30. José Carlos Ferreira Fernandes Diz:

    Sobre as “insulae”:

    A palavra significa, literalmente, “ilha”. Também significa uma unidade habitacional num prédio coletivo, dotada de individualidade jurídica – ou seja, um “apartamento”, por assim dizer. Difere de “domus”, que é um edifício que abriga uma única família (uma “casa”, no sentido atual – na época, a melhor tradução seria “palacete”, ou mesmo “palácio”), lar das famílias mais abastadas. Enfim, a palavra “casa” significa “choupana”, e deu a nossa palavra “casa”, em língua portuguesa.

    Os trechos a seguir, da obra clássica de Ferdinand Lot, “O Fim do Mundo Antigo”, ajudam, creio, a esclarecer melhor a questão.

    Trechos de “The End of the Ancient World”, Ferdinand Lot (translated by Philip Leon and Mariette Leon), “The History of Civilization”, Routledge, 1996.

    Pág. 69-70:

    Of the towns, the most important was Rome. The [population] estimates proposed by the scholars of the sixteenth and seventeenth centuries are simply absurd. It is difficult to believe that even in the period of her greatest extension the number of the inhabitants of Rome can have exceeded half a million. Justus Lipsius attributed to her 4,000,000 inhabitants and Isaac Vossius 14,000,000 (sic). Other estimates range from 1,000,000 to 2,000,000. Beloch brings these figures down to 800,000 and Ed. Meyer to 700,000. These are still too high. Dureau de la Malle has shown that the only certain basis must be sought in the relation between the known area and the unknown population. The Rome of Aurelian, extending over 1,230 hectares, and including many empty spaces, cannot have been more populous than modern Rome (population 538,000 in 1901), which covers a larger space (1,411 hectares). E. Cuq has proved that the “insulae” (46,602 in number) enumerated by a document of the period of Constantine, beside 1,790 “domus” (“palaces” [individual houses]), were storeys with a juridical individuality and not houses, still less “blocks”. […] Reckoning four or five persons per apartment, we get for Rome the figure of from 200,000 to 250,000 inhabitants, which is quite close to that which Dureau de la Malle obtained (261,000) by supposing ancient Rome to have had the same population density as the Paris of his time. […]

    Pág. 73

    The population of the large towns was crowded into rented houses divided into mutually independent stories (“insulae”). They were gloomy dwellings with insufficient or no heating, even in winter, except by means of “braseros”. For lighting a primitive oil lamp was used, a mere wick floating in oil. The furniture was very perfunctory, consisting of a bed (a tressel with cushions thrown on it), chests, tables and chairs. The citizen lived as little as possible inside his gloomy swelling; when his work was over, if he worked, he walked in the streets, under the porticos, in the forum, or frequented the circuses, the theatre and the baths where he was forced to bathe frequently, owing to the lack of linen. Speaking generally, the psychology of the man of Antiquity differed appreciably from ours. He had few wants and his tastes were very stable. Fashion scarcely existed, and it exercised its influence only on the upper classes and not on the whole of society, as it does in our day. Moreover, it changed very slowly. Dress, dwelling homes, furniture, objects of art, all tended to become stereotyped into almost unchangeable forms. […]

    Pág. 74

    Between extreme luxury and resigned or snarling poverty, there was nothing. At Rome, the richest and most splendid of all towns, over against the 1,790 “domus” (palaces [i.e., individual houses]”) there were about 46,600 apartments warming with a starving population. People of good birth, without any means, lived on “sportulae”. Rome was a town of beggars, and remained so almost up to contemporary times.

    Igualmente esclarecedoras são as considerações de Colin McEvedy, em “The New Penguin Atlas of Ancient History”, pág. 16, nota

    Calculations of Ancient Rome’s population depend on four bits of information. The first is the result of a survey of the city’s housing taken in Constantine’s day. It gives the number of houses [“domus”] as 1,790, and the number of apartments [“insulae”] as 46,000. On the basis of 10 persons to a house and 4 to an apartment, this yields a population figure of 1,790 x 10 + 46,000 x 4 = 201,900. The second is the number of people who got a free wheat ration from the State. When the rosters were monitored properly, as they were by Julius Caesar and Augustus, they totaled 150,000 and “a few more than 200,000”, respectively. The third is the census at 1526 AD, when 45,178 people lived in the 220 hectares of the “abitato”, the inhabited quarter of the city. Applied to the walled area of ancient Rome (1,380 ha), this yields a population figure of 283,000. However, something of the order of a third of the classical city was public space of one sort or another (gardens, temples, baths), which brings us back to 200,000 again. Finally, there is the size of the city when it did reach the million mark in 1931: at 6,780 ha it was bigger than ancient Rome by a factor of 4.9, suggesting a population of 204,000 for the classical city. The “million men” deal with this data in some pretty contorted ways. First, they say that apartment (“insula”) is really an apartment block, which enables them to use any multiplier they fancy. This is not allowable. The minimum ground floor space for an apartment block is of the order of 300 m2 (0,03 ha); 46,000 of them would occupy the entire area within the Aurelian walls, leaving no space for streets between them, let alone the city’s grander houses and the gardens and public buildings that figure so prominently among the city’s amenities. As to the 200,000 or so who got the wheat ration, the “million men” say that they were adult males and need a multiplier of 4, plus a bit more for slaves. This won’t do either; the only recipient we know of is a woman, and reliefs on the Arch of Constantine show that the queues for imperial handouts included women and children (even infants). As to slaves, there must have been very few in Rome, because giving them their liberty made them eligible for the handout too: masters will surely have opted to be served by freedmen at the State’s expense rather than by slaves maintained out of their own pockets. It may sound surprising, but there were even cases of non-Romans voluntarily entering slavery so they could be set free and thus, as Roman citizens, qualify for the dole. So 200,000 it is, as Augustus said, and indeed who ever heard of a dictator who put a smaller figure on his largesse than he needed to? If he had fed a million Romans, he would have said so”.

    Os regionários que elencam os monumentos de Roma, bem como seus “domus” e “insulae”, podem ser consultados no endereço abaixo:

    http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Gazetteer/Places/Europe/Italy/Lazio/Roma/Rome/_Texts/Regionaries/home.html

    Creio que isso deve esclarecer, ao menos em linhas gerais, a situação. Sds,

    JCFF.

  31. Alê Wolf Diz:

    Eu sei o que é Insula.
    Anos atrás, escrevi uma matéria sobre habitações ao longo da História.
    Vocês se aprofundar no assunto.

    Obrigada por todos os esclarecimentos.

    Cordialmente,
    Alê.

  32. Alê Wolf Diz:

    p.s. Sr. José Carlos sugiro ao senhor que verifique o que significa os colchetes nestas inscrições epigráficas. Eles são mais importantes do que muitos imaginam por aí.
    O senhor faz uma pesquisa interessante. Cuidado para não cometer erros primários, como o deste Lúcio no lugar de Públio.

  33. José Carlos Ferreira Fernandes Diz:

    Indagou-se o que era “insula”; se se sabia, não havia necessidade de se perguntar sobre o assunto.

    O significado dos colchetes (e o cuidado necessário quando se trata de reconstituir inscrições muitas vezes fragmentárias) foi mencionado na pesquisa.

    Grato pelo conselho, mas não considero o erro como “primário” – e, muito menos, como de molde a influenciar nas conclusões.

    JCFF.

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